Por Jan Cenek
Herman Melville foi bancário, vendedor, professor, agricultor, marinheiro, palestrante, fiscal da alfândega e escritor. Embarcou como camareiro de um navio que seguia para Liverpool. Atravessou oceanos num baleeiro. Desertou e morou com nativos da Polinésia Francesa. Embarcou novamente. Dessa vez num navio comercial australiano. Participou de um motim a bordo, foi preso e fugiu da cadeia. Também escreveu contos, poemas e romances.
Li apenas três livros de Herman Melville: Moby Dick ou a baleia [1]; Bartleby, o escrevente [2]; Billy Budd, marinheiro [3]. Pouco. Mas suficiente para perceber a grandeza do escritor estadunidense. Moby Dick (1851): o obstinado Capitão Ahab persegue uma baleia branca mar adentro. Bartleby (1853): um escrevente contratado por um escritório de advocacia, em Wall Street, passa misteriosamente a recusar todas as ordens respondendo “preferiria não”. Billy Budd, marinheiro (1891): um belo jovem é recrutado para trabalhar num navio de guerra, acusado injustamente de participação num motim, acaba cometendo um crime, mas sem deixar de acatar incondicionalmente todas as ordens recebidas. De Mobby Dick a Billy Budd, passando por Bartleby, se vai do mar ao mar, com um escritório no meio do caminho, mas sempre com o trabalho como pano de fundo.
Albert Camus [4] definiu Herman Melville como o Homero do Pacífico. Gilles Deleuze [5] discutiu a radicalidade da “fórmula” de Bartleby – eu preferiria não/I would prefer not to –, que confronta a linguagem com o silêncio. A propósito, Deleuze lembra também que Bartleby anuncia o longo silêncio de Melville, rompido apenas por alguns poemas e, no final da vida, pelo romance Billy Budd.
Bartleby é um escrevente. Sabemos já no título do conto. Billy Budd é um marinheiro. Sabemos já no título do romance. A presença do trabalho nos textos é explícita, mas costuma ser ignorada pela crítica [6]. Bartleby é a tese com “eu preferiria não”. Billy Bud é a antítese com “eu preferiria sim”, que ele não diz, mas pratica. O escrevente recusa num escritório em Wall Street. O marinheiro aceita num navio de guerra. É como se, com Billy Budd, Melville invertesse a fórmula “eu preferiria não/I would prefer not to”. O advogado que é chefe de Bartleby sente compaixão pelo escrevente, o que não o impede de demitir e enxotar o funcionário. Ele faz uma série de propostas para o escrevente: exercer outro ofício (vendedor ou atendente), viajar pela Europa acompanhando jovens cavalheiros e até morar sob o mesmo teto, desde que deixe de atrapalhar no escritório. O capitão Vere, responsável pelo navio de guerra em que trabalhou Billy Budd, sabia que o marinheiro não estava envolvido em nenhum motim, o que não o impediu de exigir a pena capital ao tribunal de guerra que julgou o subordinado. “Firmemente inspirado pela lei e pelo dever”, o capitão Vere se dirige aos membros do tribunal que julgou o marinheiro: “Mas lhes suplico, meus amigos, para que não me interpretem mal. Meus sentimentos por esse infeliz rapaz é o mesmo que o de vocês. Se ele conhecesse nossos corações, tenho certeza de que sua natureza generosa o faria até mesmo sentir pena de nossa situação, subordinados que somos a injunções militares tão pesadas.”
Marx [7] notou que o capitalista apenas personifica o capital: “sua alma é a alma do capital”. Melville não definiu o que são personificações da burocracia, nem sequer usou a expressão, mas deixou dois exemplos: o advogado chefe de Bartleby e o capitão Vere. Se é possível encontrar personificações da burocracia nos textos de Melville, é porque há grande concentração delas no mundo do trabalho, que é retratado com maestria pelo escritor estadunidense. Se a alma do capitalista é alma do capital, a alma do burocrata é a alma da burocracia. Não importa quão esclarecido, humano, piedoso e compassivo seja o burocrata, sua alma será sempre a alma da burocracia. Personificações da burocracia são absolutamente incapazes de dizer “eu preferiria não” para ordens que venham de cima, sejam quais forem. Uma personificação da burocracia não hesita em demitir um subordinado ou açoitá-lo em praça pública, no máximo criará justificativas para injustificável. O advogado patrão de Bartleby sente compaixão pelo escrevente, mas não deixa de atuar no interesse do escritório. O capitão Vere era um homem esclarecido, mas não deixa de exigir a pena capital para o marinheiro, em nome da “lei e do dever”. Labirintos do trabalho: a tese de Bartleby e a antítese de Billy Budd conduzem ao mesmo fim. Para piorar, não nos enganemos: como há personificações da burocracia no mundo real.
Os nomes nos títulos dos livros somados à radicalidade das apologias e dos rechaços empurram o foco para Bartleby e Billy Budd. Alguns chegam a procurar, candidamente, os personagens no mundo real. Žižek [8] viu Bartleby como um precursor do movimento Occupy Wall Street… Mas, se não há Bartlebys nem Billy Budds no mundo real, as personificações da burocracia, como os chefes de ambos, estão em todos os cantos: das multinacionais ao serviço público, das universidades ao trabalho precarizado, das igrejas aos partidos de esquerda. As almas das personificações da burocracia são as almas da burocracia. As justificativas são diversas – ordens superiores, a lei, o dever, não posso fazer nada, está fora da minha alçada, sinto muito –, mas as práticas pouco variam: atuam em nome da burocracia e para resguardar interesses rasteiros. O capelão que acompanhou Billy Budd antes da execução também estava ciente de que o marinheiro não participou de nenhum motim, mas se calou: intervir “teria sido uma audaciosa violação dos limites de sua função” – justificou. Espécie de princípio fundamental das personificações da burocracia: jamais contrariar ordem superiores! O capitão Vere afirma, contra o marinheiro, que “a Lei do Motim, filha da guerra, imita a mãe. A intenção ou a ausência de intenção de Budd não vem ao caso.” O advogado chefe de Bartleby e narrador do conto homônimo conclui dizendo: “Ah, Bartleby! Ah, humanidade!” O capitão Vere morreu murmurando palavras incompreensíveis para o enfermeiro que o atendia: “Billy Budd, Billy Budd.” São indícios de remorsos do advogado e do capitão, que não os absolvem, apenas reforçam que ambos atuaram como personificações da burocracia. Provocação de Melville, as últimas palavras de Billy Budd são: “Deus abençoe o capitão Vere!” O que atesta e reafirma a fórmula do marinheiro: “eu preferiria sim” – incondicionalmente.
Jorge Luis Borges [9] afirmou que “Kafka projeta sobre Bartleby uma curiosa luz posterior.” Acrescento que o inverso é verdadeiro – Bartleby projeta uma curiosa luz antecipatória sobre Kafka – e o mesmo se aplica a Billy Budd. A explicação é a presença do trabalho nos textos. Só que Melville é direto e explícito, enquanto Kafka é indireto e implícito. Ambos se completam. O escritor tcheco faz uso literário e genial do idioma da burocracia: sobressai o absurdo e as personificações da burocracia se esquivam atrás de normas e portarias, como se fossem engrenagens incapazes de intervir sobre os acontecimentos. Melville faz uso apenas circunstancial da linguagem burocrática, resultado: expõe a cumplicidade sem véus das personificações da burocracia. A burocracia pode ser absurda, mas ela tem seus cúmplices. O caso Billy Budd, por exemplo, teria ocorrido em momento “complicado”, após motins duramente reprimidos e contestação da autoridade naval, o que exigiria prudência e rigor de homens como o capitão Vere – segundo o próprio… É a tal cumplicidade sem véus das personificações da burocracia: a justificativa para o injustificável. O fato é que o capitão Vere atua na defesa da posição que ocupa e, como não poderia deixar de ser, da burocracia. Um marinheiro terminar enforcado é só um detalhe, ainda que inconveniente, uma parte do jogo a que o capitão é incapaz de se opor por covardia e, sobretudo, por interesse próprio.
Camus [10] registrou que Melville “não escreveu senão o mesmo livro indefinidamente recomeçado.” Acrescento: Melville pode ter escrito o mesmo livro indefinidamente recomeçado, mas com variações. Se é assim, a recusa de Bartleby e a apologia de Billy Budd se completam e servem, sobretudo, para desmascarar as personificações da burocracia, que diferem na forma, mas não no conteúdo. Ainda e por fim, registrei dois exemplos de personificações da burocracia nos textos de Melville, fecho com um contraexemplo, para contrastar e problematizar. O obstinado capitão Ahab perseguiu impiedosamente a baleia branca. Mas sua alma não era alma da burocracia. Ele caçou uma baleia e não um cargo na burocracia. O capitão Ahab seguia, sobretudo, a lei do coração, por mais violenta e irracional que fosse. Alguém pode argumentar que ele foi terrível, quase uma personificação do mal. Ao que eu perguntaria, mas o “cruel” capitão Ahab faria com um de seus homens o que o esclarecido capitão Vere fez com Billy Budd? Moral da história: as personificações da burocracia podem ser tão perigosas quanto os homens mais terríveis e, para piorar e encerrar: é difícil encontrar Ahabs no mundo real, mas as personificações da burocracia estão em todos os cantos.
Notas
[1] Herman Melville. Moby Dick ou a baleia. Editora 34: São Paulo, 2019.
[2] Herman Melville. Bartleby, o escrevente. Grua livros: São Paulo, 2014.
[3] Herman Melville. Billy Budd, marinheiro. Porto Alegre: L&PM, 2010.
[4] Albert Camus. Herman Melville. In: Camus, A. A inteligência e o cadafalso. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 25 – 30.
[5] Gilles Deleuze. Bartleby, ou a fórmula. In: Deleuze, G. Crítica e clínica. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 91 – 117.
[6] Bartleby: insegurança, adoecimento e morte de um trabalhador.
[7] Karl Marx. O capital – Livro I. São Paulo: Boitempo, 2014.
[8] Slavoj Žižek. O ano em que sonhamos perigosamente. Boitempo: São Paulo, 2011
[9] Jorge Luis Borges. Bartleby, o escrivão de Herman Melville. Acesso em 09 de jul. 2023
[10] O trecho seguinte, entre aspas, está no texto referenciado na nota 4.
Tenho a impressão de que o trabalho como categoria relevante para a cultura só se consolida depois da crítica marxista, que fecundou como ninguém o solo da crítica cultural. Até aí é um reino hipostasiado, rebaixado e útil às necessidades. Noção cujo espasmos de sobrevivência pode ser uma pista para o desprezo de certa crítica.
A leitura de seu texto evocou em minha memória o conceito de “banalidade do mal”, de Hannah Arendt. O que é essa banalização senão a personificação da burocracia? Mas me parece que o mal é a categoria central do conceito de Arendt, enquanto a personificação da burocracia enfraquece essa metafísica retirando a centralidade do mal em favor da hierarquia do poder que o produz e relativiza. Em ambos os casos, mais uma conquista da civilização.