Por Joseph Daher
O artigo a seguir, publicado em 4 partes, é o quinto capítulo do livro Síria Depois Dos Levantes, de Joseph Daher. A versão integral do livro foi traduzida pela Contrabando Editorial e será publicada no fim de 2023.
Autogoverno em Rojava
Em novembro de 2013, o PYD assumiu a autoridade governante de facto, gerenciando uma administração transitória no território chamado por eles – e pelos curdos em geral – de Rojava (Curdistão Ocidental). Rojava inclui três enclaves não-contíguos: Afrin, Kobani e Cezire (região da Jazira na província de Hasakah). A administração interina unificada era composta por assembleias legislativas e governos locais, assim como uma assembleia geral incluindo representantes curdos, árabes, siríacos e assírios de todos os três cantões. Tinha, como meta declarada, formar uma administração autônoma dentro de uma Síria federativa.(ICG 2014a: 15) Ao final de setembro de 2017, no sétimo Congresso do PYD, seus membros confirmaram o federalismo como a solução mais apropriada para a região.(Arafat 2017b)
A construção de Rojava enquanto projeto era descrita como uma forma de “autonomia democrática” ou de “autoadministração”, cujas forças militares e policiais garantiriam a segurança, gerenciariam os tribunais e prisões e distribuiriam assistência humanitária. O PYD defendia o autogoverno local, unido na prática mais por uma visão comum de reforma social do que pelo domínio de um governo centralizado.(ICG 2014a: 2, 12)
No entanto, apesar da ênfase pública sobre o pluralismo, o PYD também dominava politicamente as instituições locais. Como descrito pelo ICG( International Crisis Group, 2014a: 13):
Os integrantes e dirigentes dos conselhos populares, teoricamente responsáveis pela administração local, incluindo representantes de todos os partidos políticos curdos, assim como de populações não-curdas das áreas mistas, são nomeados pelo PYD. Da mesma maneira, o movimento mantém a autoridade geral sobre a tomada de decisões, consignando aos conselhos – além da distribuição de gás e auxílio humanitário – um papel na maior parte simbólico (…)
A instituição comunal foi um dos principais elementos no novo sistema de Rojava para a implementação da dominação por organizações ligadas ao PYD. As organizações e ONGs fora da estrutura do PYD precisavam passar pelo sistema das comunas (ou outras instituições de Rojava) para obterem autorização operacional nessas regiões.(al-Darwish D. 2016: 18)
O PYD implementou políticas similares na expansão e institucionalização das suas forças militares. As campanhas de recrutamento eram abertas a indivíduos de diversas origens, mas, ao mesmo tempo, tinham garantido seu comando ao PYD. O YPG abriu academias militares que forneciam aos recrutas três meses de treinamento tático e ideológico. O YPG também tentou integrar não-curdos (árabes, siríacos e assírios) sob a sua direção. Ao final, incorporaram combatentes não-curdos no sistema de segurança de Rojava em brigadas independentes, mantendo direção própria, enquanto atuavam sob o comando do YPG.(ICG 2014a: 14)
As administrações de Rojava também estabeleceram Tribunais Populares, sem promotores ou juízes treinados, já que quase nenhum curdo havia sido aceito nessas profissões no sistema anterior do partido Baath. Criaram-se tribunais junto a uma força policial, o Asaiysh, que trabalhava para implementar a lei e a ordem.(Human Rights Watch 2014: 14) Nomeados pelo PYD, eles administravam a justiça em toda a Rojava, sob um código penal híbrido. Assim como as forças policiais, eles foram duramente criticados por entidades rivais curdas, ativistas e organizações de defesa de direitos fundamentais, por numerosas violações dos direitos humanos.(ICG 2014a: 14)
Em março de 2014, publicou-se o Contrato Social de Rojava, proposto como carta constitucional provisória da região. Seu texto dedicou os artigos de 8 a 53 para princípios básicos de direitos, representação política e liberdades pessoais correspondentes aos ideais da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O PYD também promoveu normas progressivas para a igualdade de gênero em suas estruturas administrativas, com paridade em todos os governos e a criação de um ministério para a “Liberação das Mulheres”, medidas amplamente adotadas, incluindo dentro das forças militares.(Sary 2015: 11-12; Perry 2016) O Artigo 28 declara de forma direta que “as mulheres têm o direito de se organizar e desmantelar todos os tipos de discriminações baseadas no sexo.”(citado em Sheikho 2017)
A carta reivindicava igualdade cultural e étnica para os vários povos em Rojava. Também assinalava a descentralização com resposta aos múltiplos conflitos religiosos, étnicos e regionais na Síria, bem como à ditadura, enfatizando a integridade territorial do país como parte de um sistema federativo.(Sary 2015: 11-12; Perry 2016) Essa política aberta era verificável na diversidade populacional entre moradores nas áreas controladas pelo PYD. Isso, porém, não evitou tensões entre a sua administração e outras comunidades – incluindo as populações árabes sunitas (comentado mais adiante neste capítulo). Igrejas e representantes cristãos também protestaram contra diversas decisões tomadas pelas gestões do PYD sempre que sentiam seus interesses ameaçados.
Em setembro de 2015, 16 organizações armênias, assírias e cristãs publicaram uma declaração opondo-se a um decreto do Conselho Legislativo da região da Jazira, instituição estabelecida pelo PYD para legislar em um dos três distritos sob seu controle. Essas organizações confiscaram as propriedades dos moradores que oficialmente deixaram a região, a fim de “proteger” seus patrimônios contra terceiros e usá-los em benefício da comunidade. Após algumas semanas, o PYD viu-se forçado a recuar e as propriedades dos cristãos foram cedidas às várias igrejas(Ulloa 2017; Yazigi 2017: 10). Na mesma declaração, as organizações também afirmaram ser “inaceitável qualquer interferência nas escolas privadas das igrejas na província de Jazira.”(citado em Ulloa 2017: 10) Em agosto de 2018, as autoridades da zona autoadministrada anunciaram a decisão de fechar mais de uma dezena de escolas privadas geridas pela igreja assíria e outras denominações cristãs em todo o nordeste da Síria, que ainda não haviam adotado o novo currículo estabelecido pelas autoridades curdas. Ao final, após enfrentar diversas resistências, a decisão acabou revertida.(Edwards e Hamou 2018)
A intimidação e a violência contra personalidades da oposição cristã e assíria também ocorreu pelas mãos das forças do YPG, incluindo o assassinato de David Jendo, um líder assírio na região de Khabour, em abril de 2015.(Ulloa 2017: 11) No entanto, essas figuras foram visadas devido às suas opiniões políticas, e não pelas origens étnicas ou religiosas.
Em diversas ocasiões, as forças do YPG foram acusadas de promover políticas discriminatórias e repressivas contra as populações árabes em certos vilarejos no nordeste da Síria, um ponto refutado pelo YPG, que alegou relações com o Estado Islâmico entre alguns moradores.(Nassar e Wilcox 2016) As ofensivas militares lideradas pelo YPG resultaram, em diversos momentos, no deslocamento forçado de populações. A captura, pelas Forças Democráticas Sírias da cidade de Tal Rifaat, por exemplo, com a ajuda do esquadrão aéreo russo, após a derrota dos grupos de oposição árabe, em fevereiro de 2016, levou a população árabe local (cerca de 30 mil pessoas), a fugir para a fronteira turca.(al-Homsi 2017) No entanto, em março de 2017, a Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Síria, vinculada à ONU, não encontrou evidências para apoiar as acusações, feitas por alguns integrantes da oposição árabe síria e por membros do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) na Turquia, de que o YPG ou forças das FDS procuraram sistematicamente mudar a composição demográfica nos territórios sob o seu controle.(Rudaw 2017a)
A eficácia do PYD na provisão de serviços sociais também valeu como um fator central em sua construção de legitimidade no território. As administrações locais do PYD, chamadas de Administração Autônoma Democrática (AAD), foram capazes de prover bens e serviços, incluindo combustível, educação, empregos, eletricidade, água, saneamento, alfândega, saúde e segurança. A AAD teve resultados exitosos ao atender as necessidades locais, compensando a escassez de itens essenciais como botijões de gás e alimentos, indisponíveis no mercado. Ao prover tais produtos, o PYD tornou-se indispensável à população local e fortaleceu sua posição em sua jurisdição.(Khalaf 2016: 17-20)
Ao mesmo tempo, novas instituições foram criadas para licenciar investimentos em negócios, escolas e veículos de imprensa. O PYD também ergueu novas estruturas educacionais, como a Academia Mesopotâmica de Ciências Sociais. A primeira universidade da região foi criada no distrito de Afrin em outubro de 2015, com 180 estudantes.(Yazigi 2016c: 5; Khalaf 2016: 17) No verão de 2016, inauguraram em Qamishli a Universidade de Rojava, com aulas em árabe, curdo e inglês. O projeto incluía uma faculdade de medicina, uma de educação e ciência, e outra de engenharia.(Abdulhalim, Mohammed, e Van Wilgenburg 2016) Em setembro de 2015 introduziu-se no sistema escolar, em Qamishli, um currículo inteiramente em curdo para os primeiros três anos de alfabetização, que depois foi estendido a outras áreas, substituindo o antigo arcabouço didático oficial da era Baath.
A esmagadora maioria das escolas no estado de Hasaka, no nordeste da Síria, eram administradas pelo PYD. As exceções ficaram por conta de um conjunto de escolas dentro das áreas controladas pelo regime e alguns estabelecimentos privados cristãos em Hasaka e Qamishli.(Shiwesh 2016) Segundo o jornalista Mahir Yilmazkaya,(Mahir Yilmazkaya, 2016) simpatizante do PYD, o Instituto de Língua Curda cresceu, em 2012, de um professor e 12 estudantes para, em maio de 2016, 1700 docentes e 20 mil alunos em 200 escolas.
A administração das AADs também promovia os direitos e a participação das mulheres em todos os níveis – uma conquista admitida até por seus críticos, apesar das contradições. A ativista civil Mahwash Sheiki,(Sheiki 2017) de Qamishli, uma das fundadoras da associação Komela Şawîşka, reconheceu as melhorias na área de direitos das mulheres, apesar de caracterizar o PYD como um “partido ideológico totalitário, que não aceita outros com ideologias distintas”:
Segundo a teoria, as leis e os princípios gerais publicados pela AAD, as conquistas são enormes. Enquanto mulheres ativistas, talvez nos acostumávamos a exigir esses direitos sem muita esperança em vê-los reconhecidos (…) o que a AAD aprovou equivale às leis de países de primeiro mundo com relação aos direitos das mulheres (…)
No entanto, o princípio mais importante ao qual a AAD aderiu foi o da participação igualitária em todas as instituições. Ele foi seguido ao pé da letra, e também ocupa o centro da estrutura do PYD (…)
O PYD foi capaz de mobilizar e incluir grupos marginalizados da região, incluindo as mulheres, que foram impelidas à vida militar e política. Longe de natural, essa mudança foi forçada, e não acompanhada pelo desenvolvimento das mulheres enquanto entes independentes, com suas próprias necessidades, direitos e obrigações. Além disso, a mudança não ocorreu devido a uma transformação no sistema socioeconômico. Na realidade, foi resultado de uma decisão vinda de cima para baixo, ditada pelo partido, disposto a ganhar mulheres para seu campo ideológico. Constituiu uma política vitoriosa (…)
Sheiki explica que os direitos e a participação das mulheres em Rojava é único e diferente das outras regiões na Síria, estejam elas sob controle do regime ou ‘libertas’ e controladas pela oposição. Em relação às leis ligadas aos direitos das mulheres e o seu empoderamento militar e político, ela argumenta que “isso não significa que as mulheres são plenamente emancipadas, porque o empoderamento do povo e dos indivíduos também significa empoderamento econômico e social, assim como a ampliação da democracia.”(Sheiki 2017)
Esse testemunho poderia ser estendido às outras áreas de intervenção do PYD nos três cantões de Rojava. Essas caracterizavam-se por dinâmicas vindas do alto, em vez de mudanças radicais e participação pela base, apesar de nem sempre haver a completa separação entre ambos. Segundo a ativista Shiyar Youssef,(Shiyar Youssef 2016) comentando o controle do PYD sobre tais áreas:
Parece, por um ângulo, que a experiência começou a produzir ganhos dignos de celebração, como a administração laica do aparato estatal, maiores direitos garantidos às mulheres e a integração de minorias no governo, assim como participação maior e mais autonomia para a população local no gerenciamento de seus assuntos – especialmente com a ausência de um Estado forte e consolidado.
O PYD, é preciso lembrar, carrega uma experiência muito rica de autogoverno, acumulada no Curdistão turco. Ao mesmo tempo, suas práticas podem levar à consolidação do partido no poder e a um aumento da repressão em defesa dessa nova ordem, o que seria um verdadeiro desperdício. Um risco que segue real e possível.
Thomas Schmidinger,(2018: 135) especialista na questão curda e autor do livro Rojava: Revolution, War, and the Future os Syria’s Kurds, afirma, de maneira similar, que suas pesquisas de campo resultaram em uma situação intermediária, na qual “o quartel-general do PKK nas montanhas Qandil tem a palavra final nas questões decisivas”, ao mesmo tempo que “o sistema de conselhos assume um papel importante nas pequenas decisões diárias e no suprimento da população.”
No entanto, alguns não reconhecem as entidades administrativas do PYD, ou os enxergam com desconfiança. A maioria dos partidos do KNC condenava essas instituições por considerá-las dominadas pelo PYD e compostas por uma variedade de personalidades curdas, árabes, siríacas e assírias que tinham pouco a perder ao engajarem-se na iniciativa.(ICG 2014a: 15)
Essas novas instituições careciam de legitimidade aos olhos de segmentos significativos de árabes sírios vivendo sob sua jurisdição. Por exemplo, o sheik Humaydi Daham al-Hadi al-Jarba, chefe da tribo árabe al-Shammar, foi nomeado em 2014 cogovernador do Cantão da Jazira, em Rojava. Seu filho tornou-se comandante das forças al-Sanadid, uma das principais milícias árabes que combatiam junto ao YPG. Al-Sanadid era conhecido previamente como Jaysh al-Karama, tendo sido acusado de expulsar e aprisionar apoiadores da revolução.(Orient News 2015) Ainda em 2013, Daham al-Hadi al-Jarba havia feito uma aliança com o YPG para manter os grupos de oposição e as organizações salafistas e jihadistas fora das áreas de Shammar, na fronteira entre Iraque e Síria.(Orton 2017) A Al-Shammar de Humaydi Daham al-Hadi al-Jarba, na província de Hasaka, mantinha vínculos com a população curda da Jazira, uma das poucas tribos que se recusaram a participar na repressão ao lado das forças de segurança do regime durante o levante curdo, em março de 2004. Daham também cultivava boas relações com o líder curdo Masoud Barzani antes de sua nomeação como presidente da região autônoma do Curdistão iraquiano, em 2005.(Van Wilgenburg 2014c) Ele residiu em Erbil entre 2003 e 2009, retornando depois à Síria.(Orton 2017) A colaboração com o PYD permitiu-lhe manter controle sobre os recursos do petróleo, mesmo após a retirada das forças do regime Assad e das agências de segurança locais.(Khaddour 2017b)
No entanto, o papel de Daham al-Hadi al-Jarba era relativamente simbólico, voltado a exibir a inclusão de diferentes etnias no projeto político de Rojava. O poder real permanecia nas mãos do PYD. Até mesmo Ciwan Ibrahim, comandante geral da polícia curda no norte da Síria, argumentava que apenas uns poucos árabes apoiavam a tribo al-Shammar.[1] Do ponto de vista político, eles tinham pouco ou quase nada em comum, expresso na resposta de Hadiya Yousef, copresidente do Cantão da Jazira, sobre as visões políticas de Daham al-Hadi al-Jarba. “Hadi certamente não é feminista (…), mas ele nos apoia.” Quanto à sua colaboração com Hadiya Yousef, Daham al-Hadi al-Jarba respondeu, “Não pedi para compartilhar o poder com uma mulher (…) Eles, do PYD, me obrigaram.”(citado em Enzinna 2015)
De maneira parecida, após a conquista de Manbij pelas FDS em agosto de 2016 e de Raqqa em outubro de 2017, ambas cidades até então ocupadas pelo EI, os novos conselhos nomeados pelo PYD, que representavam a diversidade étnica e religiosa da cidade, tinham cota de gênero,(Ayboga 2017) nas quais alguns dos dignatários da cidade estavam representados. O conselho civil de Raqqa conservava dupla liderança: Leila Mustafa, mulher curda da cidade fronteiriça de Tal Abbyad, e seu equivalente masculino árabe, Mahmoud al-Borsan, ex-membro do parlamento sírio e líder da influente tribo Walda, de Raqqa.(al-Hayat 2017; Lund 2017e) Também foram delegadas 20 das vagas no conselho a prepostos das tribos árabes locais.(al-Maleh e Nassar 2018) Em Manbij, o principal representante dos árabes era Faruq al-Mashi, primo de Muhammad al-Mashi, membro do parlamento sírio. A família al-Mashi, que havia colaborado com o PYD antes que as FDS recapturassem Manbij, voltando à área depois disso, foi acusada de ter atacado violentamente os manifestantes no início do levante de 2011, cumprindo o papel de shabiha na cidade.(Khalaf 2016: 20) Em uma entrevista, Faruq al-Mashi negou ter dado qualquer apoio ao regime, declarando:
(…) junto à minha tribo, posicionei-me contra o regime, mas rejeitei a agressão armada. Porém, muitos a apoiavam e os árabes tinham opiniões divididas. Quase ninguém estava ao lado do regime (…)(citado em Ayboga 2017)
Em ambos os casos, no entanto, prevaleceu o PYD. Expressando a importância simbólica do momento, enormes retratos do fundador do PKK, Abdullah Öcalan, foram erguidos na praça central de Raqqa, Naeem. Enquanto isso, os comandantes das FDS, após a conquista da cidade entre meados e final de outubro de 2017, dedicaram a vitória a Öcalan e à Coalizão de Mulheres,(Reuters 2017f) após expulsarem o Estado Islâmico com apoio militar aéreo dos EUA.[2]
Nesse arranjo, preservou-se a relevância dos líderes tribais nas instituições de Rojava, sem grandes contestações. O pesquisador Khedder Khaddour(Khedder Khaddour, 2017c) explicou que o YPG:
contava com o apoio das tribos locais para se relacionar com as populações sob o seu controle, porém os líderes das comunidades tribais frequentemente usavam esses grupos armados para garantir seus próprios interesses materiais e ganhar vantagens em relação a outros atores tribais (…) os esforços do PYD para tratar separadamente com cada tribo árabe – estratégia similar à adotada pelo EI – reflete um legado das políticas do Estado sírio que visavam criar divisões entre os grupos e até mesmo entre seus membros. Isso demonstra uma preocupação com a ameaça, mesmo remota, do que uma população tribal unificada possa representar para atores externos.
Como argumentado pelo pesquisador Haian Dukhan,(Citado em al-Maleh e Nassar 2018) “historicamente, a fidelidade das tribos aos diferentes partidos era determinada por relações pragmáticas de clientelismo – acesso à terra para pasto, representação nas instituições de governança local, assim como oportunidades de emprego.” Efetivamente, as FDS não foram as únicas a tentar mobilizar as tribos de Raqqa em função de interesses próprios.
Não obstante, apesar da nomeação de Daham para cogovernador do Cantão da Jazira e de outros líderes tribais para os conselhos civis, muitos chefes de tribos árabes locais seguiam temerosos das intenções do PYD, sentindo-se atraídos pela Operação Escudo Eufrates. Essa iniciativa militar turca coordenada com o ELS e grupos armados islâmicos visavam evitar que as FDS e as forças curdas expandissem seu controle aos territórios oeste do Rio Eufrates, ou permanecessem próximas ao comando do regime. Também não era incomum, durante o levante, que líderes tribais trocassem lealdades e jurassem fidelidade, segundo um equilíbrio incerto de poder e atores dominantes no momento. Em várias ocasiões, as FDS enfrentaram dissidências de tribos locais nas regiões sob sua autoridade.(al-Maleh e Nassar 2018)
Além disso, como explicou o pesquisador Kheder Khaddour, o PYD enfrentou reveses em cooptar as elites urbanas escolarizadas que atuavam com autonomia em relação às tribos às quais originalmente pertenciam, mesmo em cidades como Qamishli, sob o seu controle desde o verão de 2012.(Lund 2017e)
Ao mesmo tempo, o processo descentralizado de tomada de decisões promovido pela administração em Rojava estava longe de ser um sucesso retumbante, à medida em que o Asayish e outras forças de segurança geralmente atropelavam as estruturas organizacionais, alegando motivos de segurança. Isso levou a atrasos na implantação de projetos e afetou negativamente o crescimento econômico.(Sary 2016: 14) O faturamento das áreas administradas pelo PYD dependia, em sua maior parte, da produção de petróleo e gás para cobrir gastos. Segundo um relatório publicado por Jihad Yazigi,(Jihad Yazigi, 2015) as receitas do petróleo chegavam a 10 milhões de dólares por mês. As outras fontes incluíam a provisão de bens e serviços (isto é, fornecimento de água e eletricidade, alimentos e outros produtos comercializados). A AAD também aumentou taxas e impostos sobre autorizações para construções, terras, lucros de negócios, carros, agricultura, comércio fronteiriço e até a entrada e saída de pessoas em Rojava. Além disso, a AAD continuava recebendo apoio financeiro das redes na diáspora e de grupos simpatizantes.(Khalaf 2016: 18)
A administração local do PYD, em 2016, ainda não controlava vastos setores da economia que eram intensamente gerenciados pelo regime sírio. O fornecimento de trigo continuou monitorado de perto pelo novo governo, porém os comerciantes e importadores, assim como aqueles que se beneficiavam da economia de guerra e de monopólios, transformaram-se no poder decisivo do mercado.(Sary 2016: 13) As regiões autoadministradas do PYD, apesar de clamarem por justiça social e pela formação de cooperativas agrícolas, não testemunharam qualquer mudança relevante. A propriedade privada foi oficialmente protegida na carta, em uma provisão que garantia privilégios aos donos de terra, ao mesmo tempo que os encorajava a investir em projetos agrícolas patrocinados pelas autoridades de Rojava.(Glioti 2016) Algumas das antigas elites e homens de negócios também integraram-se às novas instituições criadas pelo PYD, incluindo Akram Kamal Hasu, um dos empresários mais ricos da região, que acabou se tornando, como político independente, o primeiro-ministro do Cantão da Jazira.(Schmindiger 2018: 129)
Proclamação federalista
Em 17 de março de 2016, fundou-se oficialmente o Sistema Democrático Federativo de Rojava nas áreas no norte da Síria controladas pelo PYD, após uma reunião com mais de 150 representantes dos partidos curdos, árabes e assírios na cidade de Rmeilan, no nordeste da Síria. Os participantes votaram a favor da união dos três cantões (Afrin, Kobani e Jazira). Durante a reunião de Rmeilan, elegeu-se uma assembleia constituinte com 31 membros e dois copresidentes: Hadiya Yousef, uma curda, presa por dois anos antes do levante, e Mansour Salloum, um árabe sírio.(Said 2016; Kurdish Question 2016)
O regime Assad, assim como setores da oposição organizados na Coalizão, declararam sua oposição à proclamação, enquanto Washington (apesar de seu apoio ao PYD), a Turquia e a Liga Árabe declararam não reconhecer a nova entidade federal.(Said R. 2016; Sly 2016) Um total de 69 grupos armados da oposição, incluindo Jaysh al-Islam e as várias forças do ELS, também assinaram um documento opondo-se ao projeto federalista curdo.(DW 2016) A maioria das forças árabes sírias opostas ao regime Assad viam no federalismo um passo em direção ao separatismo e à divisão do país.(al-Souria Net 2016a; Syria Freedom Forever 2016)
Reagindo à proclamação, o dirigente oposicionista Michel Kilo declarou que os sírios não permitiriam a formação de uma entidade similar a Israel em solo sírio e que ali inexistiria uma terra curda, mas apenas cidadãos curdos.(ADN Kronos International 2016) A declaração de Kilo lembra os discursos de 1960, que comparavam os curdos a Israel (mencionado acima neste capítulo).
Apesar de a maioria dos partidos curdos no país reivindicar um sistema federativo na Síria, o KNC se opôs à medida, argumentando que tal sistema deveria ser criado após um amplo debate com membros da oposição síria. De maneira similar, muitos ativistas curdos criticaram o processo, descrevendo-o como uma decisão realizada basicamente pelo PYD, sem caráter democrático ou consultas feitas a outros partidos e ativistas curdos.
Até Riza Altun, considerado Ministro das Relações Exteriores do PKK, desaprovou a medida:
Nós, do PKK, também criticamos o anúncio, feito antes de uma sólida discussão na base, e que deu a impressão de um fato consumado, cujo resultado foi danoso [ao movimento]. O plano deveria ter sido explicado antes. Nós preferimos o uso de Federação do Norte da Síria e pedimos a remoção de Rojava do nome, porque isso denota uma federação de identidade curda. O norte da Síria é o lar de todos seus integrantes, a liberdade dos curdos estando sujeita ao mesmo grau desfrutado pelos outros moradores da região (…).(Citado em Noureddine 2016)
Em dezembro de 2016 o sistema federativo mudou seu nome para Sistema Democrático Federal do Norte da Síria. A remoção da palavra Rojava gerou revolta entre os vários grupos curdos dentro do país e na diáspora.
Em julho de 2017, a unidade autoadministrada do PYD anunciou eleições nas três províncias administrativas da federação (al-Jazirah[3], al-Furat[4] e Afrin [5]divididas em três turnos.(Arafat 2017a) O primeiro dia de votação, em 22 de setembro, para cargos de direção em todas as comunas locais (cerca de 3.700), seguiu-se de uma segunda rodada, em dezembro, para representantes das vilas, cidades e conselhos regionais. A terceira e última etapa deveria ter ocorrido em janeiro de 2018, mas foi postergada para uma data ainda não prevista.
A Alta Comissão Eleitoral das unidades autoadministradas anunciou, em 5 de dezembro de 2017, durante uma conferência de imprensa em Amuda, que a participação na segunda fase das eleições para os conselhos locais atingiu 69%. O pleito incluiu 21 partidos que representavam curdos, árabes, cristãos e assírios de Rojava, com mais de 12 mil candidatos. A Lista Nação Democrática Solidária, encabeçada pelo governo do PYD e aliados, conquistou ampla maioria – mais de 4.600 de um total de 5.600 – nas três regiões que participaram das eleições de dezembro. A Aliança Nacional Curda na Síria (Hevbendi), que incluía o partido Yekiti e ex-membros do KNC, também tomou parte, abocanhando 152 cadeiras. Uma terceira chapa, a Aliança Nacional Síria, conquistou oito cadeiras, elegendo também diversas candidaturas independentes associadas ao grupo.(Drwish 2017b; Schmidinger 2018: 133)
No entanto, partidos curdos de oposição fizeram críticas às restrições de liberdades políticas ao longo do processo. O KNC declarou boicote às eleições, taxando-as de ilegítimas. Alguns membros árabes da oposição no exílio também boicotaram o processo. Outro problema ocorreu com os chamados árabes al-Ghamar, ou árabes da enchente (removidos da província de Raqqa para Hasaka nos anos 1970 após a criação de uma represa no rio Eufrates), que foram barrados na terceira rodada de votação. Fouzah Youssef, copresidente do Comitê Executivo da Federação Democrática do Norte da Síria, caracterizou a chegada dos árabes al-Ghamar à província de Hasaka nos anos de 1970 como “uma política racista e injusta contra os curdos.”(Citado em Abdulssatar Ibrahim e Schuster 2017)
Para consolidar-se no poder, o PYD também não deixou de promover campanhas repressivas e atacar seus críticos, fossem eles indivíduos ou organizações políticas em suas regiões administrativas. As forças do YPG chegaram a visar a imprensa local independente, como a Radio Arta, em ao menos duas ocasiões (2014 e 2016).(Human Rights Watch 2014: 1-2) O presidente do KNC, Ibrahim Berro, foi preso em agosto de 2016 num posto de controle da Asayish em Qamishli e exilado para o Curdistão iraquiano no dia seguinte.(Sary 2016: 13) Protestos ocasionais acontecem contra o PYD e suas práticas em Rojava.
Desde outubro de 2014, também decretou-se a conscrição compulsória para cidadãos entre 18 e 30 anos de idade, obrigados a alistarem-se no Serviço de Defesa e integrar o YPG durante seis meses nas áreas sob seu controle. O KNC rejeitou a lei de conscrição, substituindo-o por um apelo voluntário, sob o argumento de que uma conscrição compulsória resultaria na migração em massa dos jovens para fora do Curdistão.(Yekiti Media 2014) Ao mesmo tempo, inúmeros partidos políticos siríacos cristãos, árabes e curdos, assim como organizações da sociedade civil e de direitos humanos, também se opuseram à lei. A medida fez com que setores da juventude de todas as comunidades partissem a fim de evitar serem presos por se recusarem a servir.(Syria Direct 2014; Ahmad e Edelman 2017) Em alguns territórios de maioria árabe sob controle curdo, a conscrição obrigatória foi recusada com frequência, especialmente devido ao aumento dos confrontos domésticos entre o PYD e as forças do ELS. Em novembro de 2017, por exemplo, moradores e ativistas na cidade de Manbij, zona rural ao leste de Alepo, organizaram uma greve protestando contra a nova conscrição decretada pelo conselho legislativo das FDS. As Forças Democráticas Sírias publicaram uma declaração no dia seguinte à greve, em 6 de novembro, suspendendo a decisão de impor a conscrição aos habitantes de Manbij. Ao invés disso, conclamaram os moradores a se voluntariarem “no exército de autodefesa.”(Osman 2017)
Algumas figuras autônomas do espaço político e social curdo, próximas aos PYD, continuaram tentando projetar suas vozes. Esse processo incluiu a construção de uma imprensa independente nas áreas controladas pelo PYD, apesar da forte concorrência com os veículos de comunicação vinculados aos partidos, que tinham mais recursos e maior estrutura(Issa 2016: 13) (como a TV Ronahi, Orkes FM e Agência de Notícias Hawar).
Como mencionado, a AAD era dirigida por uma dinâmica a partir do alto, e controlada pelo PYD de maneira autoritária. Os muitos retratos do líder do PKK curdo, Abdullah Öcalan, que cobriam as paredes dos escritórios do governo do PYD, expressavam essa realidade. No entanto, outras transformações importantes ocorriam, em particular o aumento da participação ativa das mulheres na sociedade, a codificação de leis seculares e a inclusão das minorias religiosas e étnicas. A gestão e os serviços providos pelo PYD também contavam com apoio e simpatia relevantes de amplos setores da população local.
O PYD e a arena internacional: da colaboração a ameaças
A falta de legitimidade internacional do PYD – produto de sua relação com o PKK, organização caracterizada como terrorista pelos Estados Unidos e pela maioria dos Estados europeus – foi seu calcanhar de Aquiles desde o início do levante, impedindo sua participação nas conferências de negociação em Genebra. Além disso, a participação do KNC na Coalizão e nos órgãos de oposição isolou o PYD, dificultando seus planos.(ICG 2014a: 21-22)
Em meados de 2015, mesmo que restrito ao campo militar, uma nova dinâmica se abriu, marcada por relações e colaborações mais próximas com atores internacionais. Com a estratégia principal de “foco no Estado Islâmico” e o fracasso absoluto no apoio às forças do Exército Livre da Síria para combater o EI, Washington, sob iniciativa do Pentágono, passou a apoiar cada vez mais o PYD e a Coalizão encabeçada pelo YPG, conhecida como Forças Democráticas Sírias (FDS). Segundo sua declaração, foi oficialmente criada em outubro de 2015 para combater “o terrorismo representado pelo EI, suas organizações irmãs, e o criminoso regime Baath”.(Jaysh al-Thûwar 2015) Esse novo grupo era controlado pelo YPG, enquanto outros que o integravam (grupos siríacos e do ELS, como Jaysh al-Thûwar)(Mustapha 2015) tinham papel auxiliar. Na prática, as Forças Democráticas Sírias surgiram para dar cobertura legal e política ao apoio militar dos EUA ao grupo do PYD na Síria, vinculado ao PKK.(Lund 2015d) As FDS tornaram-se a principal força parceira do Pentágono contra o EI daquele momento em diante.
O predomínio dos comandantes curdos do YPG sobre o resto das unidades armadas gerou alguns problemas nos anos seguintes, principalmente com as unidades árabes das FDS, que se consideravam marginalizadas nas tomadas de decisões. Tal dinâmica levou, ao final, à renúncia de algumas dessas figuras e dissolução de certas unidades. Em junho de 2018, por exemplo, as FDS enfrentaram seus ex-aliados da facção rebelde árabe Liwa Thuwwar al-Raqqa, resultando na prisão de cerca de 200 combatentes da divisão.(al-Maleh e Nassar 2018)
Em dezembro de 2015, formou-se o Conselho Democrático Sírio (CDS), ramo político das FDS. A nova coalizão, também dirigida pelo PYD, era copresidida por Riad Darar, político árabe opositor ao regime de Assad[6], além de Ilham Ahmed, membro do TEV-DEM. O CDS, na sua maior parte, era composto por forças políticas árabes, curdas e assírias, e outras minorias das regiões curdas do norte da Síria. O SDC apoiava um estado federativo, democrático e secular, mas permanecia relativamente fraco em termos políticos.(Drwish 2017a)
Apesar do apoio militar recebido pela Rússia e pelos Estados Unidos desde meados de 2015, o PYD passou a ser submetido a pressões crescentes. Moscou exigiu que as forças curdas do YPG colaborassem de maneira mais sistemática e direta com o regime Assad contra o Estado Islâmico.(Rudaw 2015)
Em agosto de 2016, o exército turco interveio diretamente na Síria, coligada às forças armadas da oposição, que atuavam como agentes de Ancara, numa operação militar chamada Operação Escudo do Eufrates. Contava com o apoio de vários atores internacionais, incluindo os Estados Unidos e a Rússia (ver Capítulos 4 e 6). No início de dezembro de 2016, o Vice-Primeiro-Ministro Nurettin Canikli reconheceu que a Turquia “não teria se movido com tanto conforto”, não fosse sua reaproximação com a Rússia, que efetivamente controlava partes do espaço aéreo no norte da Síria.(Osborn e Tattersall 2016)
As relações entre as autoridades dos EUA e comandantes do YPG permaneceram, em sua maior parte, informais e limitadas ao combate contra o EI. Os Estados Unidos mantiveram o PKK em sua lista de organizações terroristas ao longo de todos esses anos, deixando claro seu suporte ativo à luta da Turquia contra o grupo curdo. Eles também evitaram prover apoio econômico às áreas controladas pelo YPG e o PYD, o que incomodaria ainda mais a Turquia.(ICG 2017: 14) Em diversas ocasiões, Washington chegou a anunciar que tomaria de volta as armas fornecidas ao YPG após a derrota do EI, porém, a medida não foi aplicada.(Reuters 2017c) Como expresso em 2016 pelo líder do PKK, Riza Altun, analisando o comportamento dos EUA frente à questão curda na Síria, “o papel dos EUA, a depender dos seus interesses, funciona como uma faca de dois gumes. A relação com Washington, portanto, é de natureza tática.”(Citado em Noureddine 2016)
O PYD enfrentou os interesses contraditórios dos russos e norte-americanos. Ambos os Estados apoiavam seu braço armado, o YPG, na medida em que isso avançasse seus próprios objetivos.(Barrington e Said 2016) Ao mesmo tempo, nenhuma das duas potências estava disposta a prejudicar sua relação com o Estado turco. A reaproximação, ao final de 2016, entre Irã, Turquia e Rússia, ameaçou ainda mais os interesses curdos. A Rússia foi incapaz, ou não tinha a disposição, de passar por cima do veto da Turquia diante da participação do PYD nos diálogos de paz em janeiro de 2017, no Cazaquistão.(Stewart 2017)
A Rússia tentou controlar as relações entre as forças do PYD e o regime de Assad entre 2016 e 2017.(Yalla Souriya 2016; Haid 2017a) Ao final desse ano, militares russos promoveram uma reunião na sua base aérea em Hmeimim, com diversos representantes dos movimentos curdos, incluindo o TEV-DEM, assim como o KNC, para mediar futuras relações entre eles e o regime Assad. As autoridades submeteram uma lista de condições que regulariam as relações entre Damasco e o enclave curdo, que o regime se recusava reconhecer. Assad, em particular, propôs estender seu apoio aos curdos no país, sob a condição de que abandonassem suas exigências por um sistema federal e erguessem a bandeira síria em todos os edifícios e escritórios públicos.(Rudaw 2016) Como imaginado, as demandas não foram atendidas. A ofensiva militar turca em Afrin, em janeiro de 2018, auxiliada por forças armadas da oposição e com o apoio da Coalizão Síria, concretizou a ameaça crescente às populações curdas em geral e aos territórios dominados pelo PYD.
A intervenção contou com a aquiescência e relativa passividade das principais potências envolvidas na Síria. Moscou, que controlava grande parte do espaço aéreo sírio, deu à Turquia sinal verde para a invasão, retirando suas armas[7] das áreas visadas pelas forças turcas nas cidades de Nubl e Zahra, ambas sob controle do regime. As autoridades russas exigiram que o YPG entregasse Afrin ao regime sírio, condição para cessar os ataques turcos na região.(Asharq al-Awsat 2018; Shekhani 2018) Em meados de fevereiro, Damasco e o PYD chegaram a um acordo que permitiria que milícias alinhadas ao regime entrassem na cidade, mas o grupo curdo recusou ceder o controle total de Afrin, e de entregar suas armas pesadas. O acordo significava apenas que as milícias pró-regime se juntariam aos combatentes do YPG nas equipes dos seus postos de controle. Isso não era aceitável para Moscou nem para Ancara. A Rússia também via a operação como uma forma de aprofundar as divisões e contradições entre Ancara e Washington, à luz do apoio americano ao YPG. Por sua vez, os Estados Unidos permaneceram passivos até o fim, declarando entender as preocupações de segurança de Ancara, que os avisou previamente sobre a operação.(Gall, Landler e Schmitt 2018; Rudaw 2018a)
O YPG condenou diretamente a Rússia e a Turquia pela ocupação, culpando a comunidade internacional pelo seu silêncio frente à terrível situação enfrentada pela cidade. Também prometeu que a resistência em Afrin continuaria até que cada polegada estivesse liberta, e o povo retornasse às suas casas.(Citado em ANF News 2018) Já Erdogan reiterou que as forças turcas estenderiam sua ofensiva contra os combatentes do YPG curdo ao longo da sua fronteira com a Síria e, se necessário, no norte do Iraque.(Caliskan e Toksabay 2018)
Após a conquista de Afrin, os dois principais atores políticos curdos-sírios, o PYD e o KNC, boicotaram a conferência de Sochi, na Rússia, convocada pelo Congresso de Diálogo Nacional Sírio, para promover negociações de paz, no final de janeiro de 2018. A reunião perdeu sentido depois que a Rússia fracassou em se opor à ofensiva militar turca em Afrin, efetivamente colaborando com Ancara. O KNC decidiu não participar depois que Moscou se recusou a aceitar a exigência de incluir a causa curda na Síria como uma das principais questões do congresso, estremecendo suas posições após a cooperação de Moscou com a ofensiva turca.(Rudaw 2018b)
Em junho de 2018, Washington e Ancara firmaram um plano para a retirada dos combatentes curdos do YPG de Manbij, no norte da Síria, para serem substituídos por tropas estadunidenses e turcas. A partir de novembro de 2018 as forças da Turquia e dos EUA iniciaram patrulhamentos conjuntos próximos a Manbij. As autoridades do PYD criticaram cada vez mais Washington e seus acordos, assim como a aceitação da ocupação turca em Afrin. Além disso, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou em diversas ocasiões sua disposição de retirar as forças dos EUA da Síria após a derrota do EI. Isso, porém, sem especificar uma data e, não raro, por meio de mensagens confusas e contraditórias sobre o tema (ver Capítulo 6).(Abdulssattar Ibrahim e al-Maleh 2018) Sua postura incomodou a liderança do PYD, preocupada com o futuro social e político dos territórios sob seu controle.
Confrontando pressões regionais e internacionais e, ao mesmo tempo, premido pela necessidade em responder à crescente ofensiva do regime em reconquistar a Síria por inteiro, as autoridades do PYD buscavam cada vez mais algum tipo de reconciliação com Damasco, a fim de manter suas instituições e preservar sua estrutura organizacional dentro do país. Como argumentado, por exemplo, por Aldar Khalil, copresidente do TEV-DEM, ligado ao PYD, “As condições mudaram. Chegou o momento de encontrar uma solução com Damasco.” Com os ventos soprando a favor de Assad, certos dirigentes do PYD declararam, ao final de 2017, sua disposição em dialogar com o regime.(Zaman 2017) Paralelamente, ao longo de 2018, Damasco permitiu que o PYD organizasse manifestações partidárias e atos de solidariedade por Öcalan em áreas controladas pelo regime, a exemplo dos bairros curdos de Sheikh Maqsoud, em Alepo (novembro) e Zor Afar, em Damasco (janeiro).(Enab Baladi 2018q)
Nesse contexto, junto à crescente pressão externa, e sobretudo da Turquia, o CDS admitiu publicamente, pela primeira vez, dialogar com o regime, em favor de uma agenda que caminhasse rumo a uma Síria democrática e descentralizada. No entanto, como as próprias autoridades dos CDS reconheceram, inúmeros desafios impediram novas conversas – especialmente a contínua recusa em reconhecer os direitos dos curdos e a possibilidade de um modelo político federativo.(Abdulssatar Ibrahim e al-Maleh 2018) Nesse momento, apesar das confabulações contínuas, o regime não aceitou qualquer das condições do PYD, enquanto as autoridades do Estado e da imprensa seguiam atacando o partido curdo. Em janeiro de 2019, após o anúncio de Trump da retirada das forcas da coalizão dos EUA da Síria, o PYD procurou a mediação russa para negociações com Damasco, visando evitar uma invasão das forças turcas nas regiões que administravam (ver Capítulo 6). A Rússia declarou, em diversas ocasiões, que o regime sírio deveria assumir o controle das províncias no norte do país, em particular para retomar o controle das reservas de petróleo.
Conclusão
A erupção do levante popular na Síria abriu um espaço inédito na história do país para a questão nacional curda. No início, os grupos e redes independentes de jovens curdos tiveram um papel importante no movimento de protestos, mas foram consideravelmente enfraquecidos com o passar dos anos.
O PYD viu o levante como uma oportunidade para transformar-se na força dirigente entre os curdos da Síria. As áreas governadas pelo PYD foram celebradas por suas políticas inclusivas e pela participação das mulheres em todos os níveis da sociedade, incluindo a atuação militar, assim como pela secularização das leis e instituições e, em certa medida, pela integração e incentivo à participação das várias minorias étnicas e religiosas. No entanto, as práticas autoritárias das forças do PYD contra atores políticos curdos e ativistas rivais de outras comunidades tornaram-se objeto de crítica.
A insularidade crescente do movimento popular curdo dentro da onda de protestos nacional resultou de dois fatores. Primeiro, o fortalecimento da influência política do PYD através das suas próprias unidades armadas, para controlar áreas de maioria curda e aplicar uma forma de autonomia que conectasse geograficamente os cantões isolados de Rojava. Isso deu-se por meio de uma atitude não-confrontativa com o regime – ocupado por batalhas em outras frentes. O regime via a influência crescente do PYD como um instrumento útil para pressionar a Turquia.
Outro fator que explica o aumento do isolamento da questão curda no levante foram as posições beligerantes da oposição árabe-síria no exílio, representada primeiro pelo Conselho Nacional Sírio, e depois pela Coalizão Síria – em ambos os casos, entidades dominadas pela Irmandade Muçulmana e forças aliadas ou simpáticas ao governo do AKP na Turquia. Dentro do país, a grande maioria dos grupos armados de oposição árabe posicionavam-se contra as exigências do povo curdo na Síria e do seu representante político. Eles também apoiavam as ofensivas militares turcas e/ou os grupos armados de oposição contra o YPG, visando a população civil curda. Isso foi acompanhado por declarações chauvinistas de árabes contra os curdos. Em geral, o CNS e a Coalizão foram incapazes de propor um programa inclusivo que pudesse atrair a população curda, resultando no aprofundamento das tensões étnicas entre árabes e curdos. Tal situação empurrou cada vez mais os jovens curdos para os braços do PYD, visto como o único defensor da comunidade na Síria.
A partir de meados de 2016, os cantões de Rojava estiveram cada vez mais ameaçados por mudanças políticas em escala internacional e regional. As sucessivas vitórias das forças pró-regime no norte do país, desde 2016, ampliaram as ameaças ao PYD. Em dezembro de 2018, por exemplo, o YPG anunciou a retirada de Manbij, dando ao regime sírio domínio sobre as áreas da cidade controladas antes pelos curdos,(YPG 2018) após as ameaças de uma ofensiva turca contra as áreas controladas pelo PYD ao leste do Rio Eufrates. Sem apresentar prazos e mais tarde modificando seus próprios planos (ver capítulo 6), Trump anunciou, diante dos avanços do regime Assad, a retirada de dois mil soldados americanos da Síria.
O EAS (Exército Árabe Sírio) não entrou na cidade, mas manteve presença na periferia, enquanto essa ainda era controlada por forças aliadas aos EUA e às FDS. A polícia militar russa também começou a patrulhar a cidade. Ao mesmo tempo, à medida em que o regime consolidava poder no país e as ameaças contra as regiões controladas pelo PYD cresciam, alguns antigos parceiros das FDS passaram cada vez mais a tentar uma reconciliação com Damasco. Em fevereiro de 2019, o Sheik Hamidi Daham al-Habi Jarba, cogovernador do cantão da Jazira, viajou do aeroporto de Qamishli para a base militar russa em Hmeimim, na província de Latáquia, para Assad e tratar da integração de sua milícia ao EAS.(Jear Press 2019)
Da mesma forma que o levante popular empurrou o regime Assad a buscar acordos temporários e ocasionais com o PYD, o desaparecimento dessa ameaça fortaleceu o regime, que passou a recuperar novos territórios com apoio de aliados. Assim, Damasco conseguiu direcionar mais e mais suas forças contra as regiões habitadas pelos curdos ou minar sua autonomia, sobretudo com os atores internacionais, Rússia e Estados Unidos, abandonando ao longo do tempo o grupo curdo conforme seus objetivos mudavam.
Como vimos, o destino do povo curdo na Síria guarda uma ligação umbilical com as causas e condições do levante sírio. Por isso, seu futuro segue ameaçado enquanto enfrenta múltiplos ataques, bem como o resto do movimento de protestos.
Notas:
[1] Citado em Van Wilgenburg 2014c. Hoje em dia, os Shammar são uma tribo relativamente pequena na Síria, e seus ramos principais estão no Iraque e na Península Arábica. Porém, historicamente, eles têm angariado prestígio e poder e, antes do estabelecimento do Estado moderno sírio, exerciam um controle efetivo sobre o nordeste do que é hoje a Síria (Khaddour 2017b).
[2]No entanto, o custo em termos de vidas humanas e infraestrutura foi terrível. Ao todo, pelo menos 1800 civis acabaram mortos na luta, enquanto mais de 80% da cidade ficou inabitável ou completamente destruída (Oakford 2017). Cerca de 312 mil pessoas tiveram que fugir da província de Raqqa como resultado da ofensiva militar (Lund 2017e).
[3]A Jazira incluía os cantões de Hasaka e Qamishli. O Cantão de Hasaka compreende as cidades de Hasaka, Darbasiya, Serekaniye (Ras al-Ayin), Tel Tamir, Shadi, Arisha e Hula. O de Qamishli abrangia as cidades de Qamishli, Derik, Amuda, Tirbesiye, Tel Hamis e Tal Barak.
[4] Al-Furat incluía o Cantão Kobani e as suas cidades (Kobani e Sirrin), e o Cantão de Tal Abbyad e as suas cidades (Ain Issa e Suluk).
[5]Afrin abarca o Cantão Afrin e as suas cidades (Afrin, Jandairis e Raqqa), e o Cantão Sheba e as suas cidades (Tal Rifaat, Ehraz, Fafeyn e Kafr Naya).
[6] Ele foi um ativista político do ano 2000 em diante, trabalhando com grupos da sociedade civil. Preso pelo regime de Assad por cinco anos (2005-2010), devido às suas posições políticas, sendo acusado de apoiar a causa curda. Ele foi membro fundador do Comitê Nacional de Coordenação para a Mudança Democrática, do qual demitiu-se mais tarde, em agosto de 2014 (Drwish 2017a).
[7] Em setembro de 2017, a Rússia mobilizou-se para operar como polícia militar e evitar confrontos e possíveis conflitos entre as unidades armadas da oposição síria apoiadas, de um lado, pela Turquia e o exército turco, e do outro lado, pelas FDS. Assim, forças militares foram enviadas para consolidar uma nova zona-tampão na área de Tal Rifaat (Iddon 2017).
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Parte 4A bibliografia pode ser conferida neste link.
As artes que ilustram o texto são da autoria de Louay Kayyali (1934-1978).