Por Liv
Essa obra começou com um emaranhado de nós. Nós agora quase imperceptíveis. Esse é o vício das obras que produzo: Dispostas à experiência, elas jamais permanecem presas a uma primitiva concepção de si. Todas elas, no fim, engolem a barata oferecida por Clarice:
“Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era, por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois ‘eu’ é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. Minha vida não tem sentido humano, é muito maior — é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido. Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos. Mas agora, eu era muito menos que humana — e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano.” [A Paixão Segundo G. H.]
Clarice e o Não-Eu (que, por não ser um Eu, nada teme, nem mesmo a impermanência da vida) dizem muito sobre o conjunto das obras (uma série de telas iniciada em 2018). Mas sobre esta obra especificamente quem diz mais é Victor Hugo. Algo neste quadro foi retirado da vida e preservado em material negro e viscoso. Eu usei tinta óleo, Victor Hugo usou betume:
“Era o que já não é mais.”
“Era para sempre o paciente. Sujeitava-se.”
“Era um simulacro. (…) Ele era a prova da inquietadora matéria, pois a matéria diante da qual estremecemos é ruína da alma. Para que a matéria nos perturbe é preciso que o espírito tenha vivido nela. (…) Posto ali pelo homem, esperava por Deus.”
“O homem teria visto o cadáver, o menino via o fantasma.”
“O fantasma estava untado de betume.”
“Logo abaixo, no mato, viam-se os sapatos (…). Eles haviam caído do morto. O menino, descalço, olhou os sapatos.”
“O betume dava àquele rosto um aspecto molhado. (…) o que o menino tinha diante dos olhos era algo que recebera cuidados. Aquele homem era evidentemente precioso. Não fizeram questão de mantê-lo vivo, mas faziam questão de conservá-lo morto.” [O Homem Que Ri]
Lambuza-se o morto de betume para que não se esqueçam da morte. O espírito transgressor da ordem, agora morto, é mantido vivo na forma de um espectro macabro o suficiente para inibir um porvir disruptivo. Essa é uma forma de comunicação não verbal bastante efetiva, não? Hoje há formas análogas a essa. Repararam que ali, no pé do quadro, tem uma mancha mais clara? Ali, pensando no menino descalço, optei por preservar algo mais para vivo do que para morto.
Mas essa foi uma decisão a posteriori. Primeiro eu preservei a estrutura do corpo com uma técnica que depois me impediu de fixar os galhos sem quebrar. Colei, costurei, no fim, lambuzei. Quase morreu. Na verdade, morreu. Mas morreu menos do que o morto do betume.
O betume, o morto mais morto e o morto menos morto, servem para quê? Ou servem a quem? Servem aos oradores que têm por ofício salvar Deus. Servem para te confundir te esclarecendo, ou para te esclarecer te confundindo (como nos ensina o curioso Tom Zé). Servem para que você não repare que essa obra é um retrato apagado. Está vendo naquele outro canto? Ali, na cabeça da tela? Lá está o retrato do morto. Esse retrato foi tirado em terra de tradutores (*). Lá a oralidade (o betume) é a forma de comunicação mais efetiva. Lá eles contorcem, distorcem e matam espíritos. Para depois sugar. É assim que eles se alimentam. É esse o costume da ordem daqueles que caminham por estradas pavimentadas por mortos-vivos que ruidosamente movimentam-se em silêncio cantando cantigas folclóricas enquanto esperam por Deus. Deus, que é a imagem de um homem branco e barrigudo carregado pelos ombros de mulheres pretas.
(*) Certa vez questionei a razão da tradição exclusivamente oral do setor de formação política de um importante movimento social por moradia. A resposta que recebi foi a seguinte: os formadores, que precisam necessariamente ser bons oradores, não produzem, reproduzem. Falam a respeito de coisas que já foram ditas. Coisas que já foram ditas e determinadas em outras esferas, em restritas esferas deliberativas. Por estas bandas os formadores serão sempre meros tradutores. Eles, que são os que andam pelo barro, treinados para disfarçar suas origens, traduzem as decisões da cúpula para a base. Salvam seu Deus ao tornar mais palatável a dominação.
SUB SPECIE DURATIONIS
a 3ª margem do rio só
a 4ª pessoa do singular
consegue alcançar
transdividu@
UBUNTU
wir-ich
now & here
ION XUCRO &
ZEROWORKER