Por Primo Jonas

Faltando uma semana para a cerimonia de posse de Milei na Casa Rosada, a principal central sindical, a CGT, e as principais organizações sociais “piqueteiras” realizaram uma renião onde afirmaram que seriam “os primeiros a sair às ruas” cada vez que se queira tocar num direito dos trabalhadores.

Esse desafio verbal dos grandes gestores do afamado “campo popular” não é apenas uma típica bravata, ele expressa um estado de vigília, um desafio ao consenso que vai sendo costurado após os resultados finais das eleições. Em menos de 24 horas ficou claro que a figura de Mauricio Macri voltava ao cenário principal. Seus vínculos com o submundo do futebol internacional, com a ditadura militar, com os serviços de inteligência clandestinos, com as finanças mais rapinantes, são certamente um motivo para preocupação. Mas seu peso como fiador principal do governo Milei, colocando importantes ministros em seu Gabinete e ordenando as fileiras no congresso, também trás certa tranquilidade psíquica às militâncias argentinas despreparadas para encarar uma versão nacional da nova direita que irrompe pelo mundo nos últimos 10 anos.

Em termos de comparação com o Brasil, talvez o governo Milei tenha mais de Temer que de Bolsonaro. As diferenças no entanto falam mais alto. Estamos falando de um governo com terceira força em ambas casas legislativas, dominadas pelas bancadas do recente bi-partidismo argentino (peronismo contra juntos por el cambio). De fato, a principal força de oposição, o peronismo, no Senado tem quase maioria simples. Isso é um fato bastante novo desde a volta da democracia no país, os presidentes sempre contaram com uma importante base parlamentária própria.

Por outro lado, por mais que Milei tenha estimulado todos os setores da direita e da extrema-direita em uma campanha “anti-esquerda”, não parece haver na Argentina, ainda, um clima social tão ideologizado como na vitória de Bolsonaro. Os festejos magros quando da vitória dão conta de um contingente votante pouco apaixonado pelo novo presidente. Espera-se dele, mais que nada, os poderes tecnocráticos para resolver o nó monetário do país. Efetivamente, foi para essa missão que seu falecido cão o convocou, nunca imaginando que ser presidente em realidade se trata de fazer alianças, negociar, suportar pressões, etc.

Se Plutarco fosse ainda vivo e habitasse no Rio da Prata, poderia produzir duas novas obras. A primeira versaria sobre as vidas de Macri e Cristina Kirchner. Sobre como ambos planejaram, de diferentes maneiras, deter o poder sem ter o cargo presidencial. É uma fórmula com história: “Cámpora al gobierno, Perón al poder”, gritavam já em 1973. Tida como enxadrista política de alta performance, Cristina vice-presidenta logo decidiu pela estratégia de criticar seu próprio governo, colocando todas as culpas nos outros. Não parou por aí, passou ao boicote ativo, sofreu uma tentativa de assassinato político e hoje talvez esteja em seu pior momento em mais de vinte anos. Parte de sua militância mais direta perdeu confiança na chefa durante as eleições, com os movimentos confusos e as situações humilhantes as quais ela os expôs, ora defendendo uma candidatura, ora outra, para terminar pedindo voto àquele que anos antes havia apontado como grande traidor. Não seria surpreendente que em menos de 2 anos vejamos Cristina presa ou exilada. Macri tentou se esconder após o fracasso da reeleição, se ocupou da FIFA e outras atividades nobres. Havia um momento em que todos comparavam Macri com Trump. Se tratava de um erro básico de análise internacional, mas a simultaneidade dos mandatos ajudava o simplismo. A campanha eleitoral e o governo de Macri em 2016 não eram pautados pelas bandeiras e métodos da nova direita. Ao contrário, era um epígono da tecnocracia dos anos 90, recauchutada com ferramentas digitais. Era a “revolução da alegria”, nada mais longínquo do clamor anti-stablishment de agora. Mas Macri nunca escondeu sua preferência pelas posições de uma direita dura. Quando Milei aparece como candidato forte agora no começo de 2023, ainda naquele momento longe de ser favorito, Macri imediatamente o apadrinha. Desta forma, Macri se tornou o fiador das duas candidaturas à direita: a do seu próprio partido e a do outsider. Resta saber como seguirá essa aliança, se as semelhanças com Cristina se aprofundarão ou se distanciarão.

A outra obra de Plutarco seria sobre Alberto Fernandez e Dilma. Ambos escolhidos a dedo pelo chefe, ambos detentores de um perfil mais próximo das intrigas e tecnicismos dos Gabinetes que das bases sociais. Dilma foi menos traída em exercício que Alberto, se é que podemos dizer que o foi. Incapacidade ou falta de sorte? Ambas as coisas entram na conta dessas vidas paralelas: fim do boom das commodities, pandemia, pouca habilidade política, erros na política econômica, etc etc. Tudo terá uma carga de verdade, adicionando temperos aos destinos trágicos. Dilma cai de forma épica, em meio a gritos em defesa de milicos torturadores. Alberto apaga lentamente, escondido em compromissos internacionais que a midia quase nem cobria. Traído, esquecido, descartado, ele que foi um dos líderes mundiais que tomou as medidas mais ousadas contra a pandemia, e por alguns meses gozou de forte apoio popular.

Existe um aspecto do governo Milei que o aproxima de Bolsonaro. É sua vice-presidente, Victoria Villaruel. Advogada defensora de genocidas da última ditadura argentina, bem apessoada e hábil para os debates, se mostra como figura de uma nova direita “séria”. Seu interesse em controlar aspectos das políticas e das forças de segurança e inteligência é um dos maiores temores dos militantes de esquerda. Mas a luta entre os próprios arrivistas garante que nem tudo seja tão fácil para eles, e um cenário possível é que Villaruel seja colocada em escanteio em favor dos quadros vinculados ao macrismo, como a candidata derrotada Patricia Bullrich. De todas as formas, Villaruel já mostrou que não lhe falta ambição, tendo criado já antes mesmo da vitória um logo próprio, sinal de que seus projetos pessoais na política argentina não são para papeis coadjuvantes.

A pauta econômica que se desenha não traz grandes novidades. Cortes importantes nos gastos estatais, preservando algo da obra pública e do assistencialismo, para evitar a deflagração de revoltas populares – que diferente de Bolsonaro, ele não saberia, ou não teria como, capitalizar. Existe uma missão monetária que a população espera com certa impaciência, que já foi desfigurada e que segue sendo um mistério: seus sócios principais são contra a dolarização. Mas se Milei não dolarizar, ficará exposto ou como fraco ou como mentiroso. É provável que sustente de forma retórica esse seu objetivo, alterando o conteúdo e a forma do que seria uma dolarização para ele. O mesmo ocorrerá com a não destruição do Banco Central, sua outra promessa, muito menos concreta para a população que o votou.

Os desafios para a classe trabalhadora são muitos. Será necessário acompanhar de perto cada caso, pois o cenário de federalização das eleições mostra que a realidade vivida em cada província pode variar muito entre si. Por outro lado, haverá enorme pressão para realizar reformas como a previdenciária, trabalhista, tributária, de aluguéis, com efeitos diretos e indiretos ao conjunto da classe. É bastante possível que alguma delas ou o seu conjunto dinamize a mobilização de oposição nas ruas.

Existirá, sem dúvida, uma grande batalha sobre o significado das mobilizações futuras. E não é uma batalha nova, mas uma nova etapa desta batalha. A degeneração sindical e o refluxo dos movimentos piqueteiros invariavelmente levaram à setorização das lutas. Esse é o fundo de verdade mobilizada por aqueles que agitam na população o ódio aos protestos sociais, ressaltando o lado “egoísta” das lutas por melhores salários, contra demissões, por mais assistencialismo, etc. Contra a luta de todos contra todos só é possível oferecer a solidariedade de classe. O ocaso do kirchnerismo se apresenta como uma oportunidade, dado a sua posição rebaixada para controlar os movimentos de classe. Assim como nas eleições, o governo tentará apresentar qualquer resistência política e social como produto do kirchnerismo, como uma forma de oportunismo político. Que certamente existirá. O desafio da classe será superar o setorialismo e o oportunismo político. Mas também será necessário convencer a milhões de eleitores que votaram por um ajuste fiscal duro de que a solução não necessariamente passa pela penúria e pobreza de todos por igual. Os servidores públicos já estão em alvoroço, realizando assembleias e programando manifestações. Os trabalhadores de empresas estatais também. Será difícil conseguir qualquer apoio popular às suas causas sem propor algo diferente, algo que, como semente ao menos, transforme o sentido da luta coletiva.

As imagens que ilustram o artigo são de Louis Wain.

2 COMENTÁRIOS

  1. O malandro “libertário” já está se ajoelhando para os “comunistas” mais cedo do que eu esperava.

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