Por Fagner Enrique

Antes do 8 de janeiro, o único movimento radical de massas existente no Brasil, com uma militância combativa em escala nacional, capaz de desestabilizar a economia e o poder de Estado e inclusive enviar emissários ao exterior, para estreitar laços internacionais, era o bolsonarismo. Algo parece ter mudado com a repressão que se abateu sobre o movimento após o 8/1, quando milhares de militantes invadiram e promoveram o caos na Praça dos Três Poderes, no maior ataque a Brasília já realizado na história do país. Ao que tudo indica, o ataque foi concebido como o rastilho para a detonação de uma revolta popular em todo o Brasil — que não ocorreu —, pensada para coagir aqueles militares que, embora frustrados com a eleição de Lula, mantinham-se recalcitrantes e avessos à “intervenção militar”, exigida pela extrema-direita desde, pelo menos, o segundo governo Dilma. É espantoso que, depois do 8/1, o principal líder e mentor da tentativa de golpe, Jair Bolsonaro, possa circular livremente pelo Brasil e ser recebido como chefe de Estado noutro país, continuando a estreitar laços internacionais, mas aquele movimento radical de massas, com uma militância disposta ao tudo ou nada, deixando a burocracia e o empresariado, no Brasil e no exterior, de cabelo em pé, parece ter sido quase que inteiramente desarticulado. Altas penas de prisão e a inelegibilidade de Bolsonaro até 2030 explicam muita coisa. Mas, enfim, se esse movimento de massas poderá ser rearticulado, e não vejo por que não, já é outra questão.

De todo modo, a iniciativa política está hoje exclusivamente com as autoridades que presidem à tentativa de reconciliação nacional à direita, uma saída conservadora pensada para manter aqueles militares recalcitrantes exatamente onde se encontram, fora da política, deixada nas mãos de civis, e neutralizar a militância bolsonarista radical, cuja razão de ser vinha sendo a de pressionar pela “intervenção militar” por meio de atos de provocação, trazendo de volta a memória da linha dura da Ditadura Militar e sua estratégia terrorista de sabotagem da abertura política. Essa reconciliação conservadora depende da indispensável intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF), que tem se limitado a punir os militantes de base e os colaboradores diretos do ataque. Por outro lado, por intermédio do Congresso Nacional, mas com a anuência do Governo Federal, há uma sinalização às lideranças bolsonaristas, inclusive ao próprio Bolsonaro, para assegurar-lhes que seguirão — ou poderão seguir, dentro de dadas condições — plenamente integrados ao tabuleiro político, tendo como contrapartida a moderação do apetite autoritário e o abandono dos métodos insurrecionais. A garantia é a de que, respeitadas tais condições, ser-lhes-á assegurado um lugar à mesa. As recentes declarações do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, sinalizam exatamente nesse sentido:

[Bolsonaro poderia ter] participado da posse, entregar a faixa presidencial, reconhecendo que perdeu naquele momento, mas que há um futuro pela frente da política em que a direita — não a extrema —, mas que a direita pode ser construída e ter bons propósitos para o Brasil. O presidente Bolsonaro, nesse sentido, poderia ter evitado esse mal maior que foi o 8 de janeiro. Embora, repito, eu não queira ser leviano e responsabilizá-lo juridicamente por esses atos, inclusive, isso cabe à Justiça Eleitoral.

Por ora, a militância bolsonarista parece ter sido, de fato, relativamente domesticada. Não sai às ruas para pedir, pelo amor de Deus, militares, deem um golpe de Estado neste país. Não ataca prédios públicos e promove a desordem, como fizeram, dizem eles, os infiltrados de esquerda no 8/1. Tem presença sobretudo virtual, tornando a participação em qualquer rede social obrigatoriamente insuportável, como os tradicionais almoços de família nos fins de semana, que muita gente tenta evitar hoje em dia. Continuam, é claro, volta e meia, exercitando os músculos em agressões gratuitas, dentro e fora de casa, e as miras das pistolas, especialmente se forem policiais ou CACs (caçadores, atiradores e colecionadores de armas) dedicados a erradicar da face da Terra, em nome de Jesus Cristo, os satânicos representantes do tráfico de drogas e dos crimes contra a propriedade, a saliva eventualmente disseminando o coronavírus em gritarias histéricas contra quem quer que represente a antítese da masculinidade viril, deseducada, autoritária, patriótica, evangélico-sionista e, acima de tudo, antigay que deglutem, excretam e transpiram como se fosse a substância que mantém os corpos nutridos e eleva as almas ao Paraíso. Continuam consumindo e sustentando a indústria do terraplanismo digital e o universo dos memes, dos reels e dos tiktoks, além do compartilhamento de áudios, imagens e vídeos da barbárie social captados no Brasil e mundo afora, insistentemente encaminhados àqueles que sentem o prazer de provocar ou pretendem converter à seita, como que num esforço evangelizador.

Enfim, apesar de tudo parece que, embora continuem a ser, para nós, verdadeiramente insuportáveis, reduziram-se a não mais que um incômodo que precisa ser exemplarmente punido e devidamente monitorado, seguido de perto para que não saia de limites bem estabelecidos, mas não completamente aniquilado. É que o bolsonarismo está tão entranhado ideologicamente na sociedade brasileira, bastante na classe trabalhadora e ainda mais nas “classes médias”, na burocracia e no empresariado, que é um incômodo que não se pode cogitar erradicar. Seria cortar a própria carne. Será necessário empreender grande esforço para, sacrificando uma vanguarda de peões dotada de verdadeiro fervor messiânico, forçar reis, rainhas, bispos, torres e cavalos de lados opostos a jogarem do mesmo lado: contra quem, já sabemos. Essa é a mensagem de Rodrigo Pacheco, em seus votos de uma recomposição política à direita, com “bons propósitos para o Brasil”.

É claro que o ministro do STF Alexandre de Moraes continuará a ser — numa fantasia hoje recalcada em muitos deles, para evitar uma visita da Polícia Federal — enforcado em praça pública. É claro que muitos deles devem ter quase gozado de prazer com o megadecreto desregulamentador de Javier Milei e a proibição de manifestações com fechamento de vias, ou talvez o orgasmo tenha sido frustrado pelas primeiras decisões judiciais contrárias ao presidente argentino. Mais um presidente, eleito pela maioria da população, mas que não consegue governar! É a conspiração esquerdista-globalista que se move contra a direita no mundo todo! Democracia relativa! Sim, continuarão exclamando coisas do tipo, em toda parte e nas redes sociais, sua indignação expressa em maiúsculas, muitos sinais de exclamação, emojis e figurinhas animadas, ou com um desgosto amargurado, na fila de um comércio qualquer, no ponto de ônibus, aguardando atendimento numa repartição pública… mas aparentemente, pelo menos no momento, o bolsonarismo converteu-se de um movimento que estava disposto a enfrentar a tudo e a todos, partindo para a guerra civil, se necessário fosse, numa multidão dispersa, desiludida e desenganada, que só não se considera orfã de pai porque acredita firmemente que o pai fez tudo o que podia e estava a seu alcance… foi vencido, como eles, os filhos e devotos, por forças inigualavelmente superiores e bem articuladas. O Brasil está perdido! Será agora um narcoestado de esquerda!

Por ora parece ser assim. Mas será que essa recomposição conservadora logrará êxito? Será que, numa outra conjuntura, aquele movimento de massas não conseguirá se rearticular? As eleições municipais se aproximam. Serão um termômetro, certamente. Seja como for, o que causa mais espanto é que, mesmo com a forte desarticulação da militância bolsonarista radical, não há nada na esquerda que se lhe oponha, da mesma forma que não há nada, à esquerda, que se oponha à reconciliação nacional à direita, que tem como um de seus principais atores o governo Lula. Sim, porque a esquerda passou por um processo de desarticulação muito semelhante, que teve como consequência, inclusive, o surgimento de um terraplanismo de esquerda, além da pulverização da militância de rua, de coletivos e movimentos sociais, e da emergência de outra insuportável militância virtual, a do identitarismo politicamente correto, cujo único horizonte — e nesse ponto converge com os partidos e organizações de esquerda remanescentes — é a reedição, ad aeternum, do pacto conservador e suas políticas de promoção da ascensão social.

Resta-nos apenas, no momento, continuar a, aqui e ali, de maneira dispersa, tentar reinventar a contestação social, especialmente no âmbito das relações de trabalho. Mas estamos diante de um deserto. Minha geração, a geração dos anos 1990, que no início dos anos 2010 viu o pacto conservador começar a ser questionado e combatido à esquerda, está apta a empreender o esforço hercúleo de atravessar o deserto e reconstruir a esquerda do zero? A nova geração de jovens, que nasceu naquela época e cresceu para ver o mesmo pacto conservador ser agora restabelecido, está apta e sobretudo tem o interesse de empreender esse esforço? É movida pela utopia da transformação social e pela vontade de participar — aceitando a alta probabilidade de decepção e derrota — de uma luta social? Ou será que a desilusão com o primeiro pacto conservador e a primeira tentativa de desmontá-lo terá efeitos permanentes? O futuro dirá.

3 COMENTÁRIOS

  1. Invariavelmente este texto remete à militância da esquerda anticapitalista (ou termo que o valha). Comentava estes dias com um amigo que como eu é ex-militante o quanto é insalubre o ambiente e as relações sociais deste meio. Durante anos de trabalho foi sempre desalentador encontrar sempre entre os mais dispostos e mais aguerridos a completa falta de conexão com a realidade, gerando uma série de dificuldades em ter uma ação minimamente pragmática e organizada do trabalho cotidiano. Quem trabalha e precisa levar uma vida comum, que passa dificuldade para ter recursos e cumprir com obrigações tem extrema dificuldade em atuar nesses espaços e não adoecer. Acredito ser necessário uma discussão que paute a militância anti capitalista e sua forma de organização pensando-a mais como um trabalho organizado e menos como arroubos de heroísmo e autoimolação.

  2. Houve uma época, durou 18 meses, em que eu aguentei militar numa organização, quase que completamente composta por jovens universitários, da qual boa parte dos militantes, da direção à base, fazia tratamento – terapia e remédios controlados – com psicóloga; alguns já há três, quatro e até cinco anos em tratamento. Alguns anos se passaram e um militante daquela geração, que ainda continuava na organização, se matou.
    Não pude não recordar da psicóloga, dos camaradas que viviam medicados, de como aquela direção exortava a abnegação e condenava as ações tidas como de irresponsabilidade diante da construção da revolução mundial, e de quantas vezes eu vi a direção elogiando aquele militante, tomando-o como um exemplo a ser seguido pelos demais.
    Recordei, também, o quanto vários daqueles jovens fugiam de um futuro de trabalho e assalariamento permanecendo por mais e mais anos na universidade, o quanto desconheciam a própria realidade que buscavam transformar, o quanto desconheciam a história, o quanto idealizavam não só a própria realidade na qual viviam como, também, a revolução brasileira e a enxergavam em toda esquina, a espera deles, daquela organização, e de umas outras poucas iguais a ela para a dirigir, o quanto eram diferentes dos camaradas trabalhadores que mal ficavam poucos meses na organização e a abandonavam, o quanto se esforçavam para ser da direção da organização ou ter cargos em entidades estudantis e sindicais, buscando reconhecimento, prestígio, dinheiro para pagar as contas, poder, e tudo o mais que vem no pacote, como as viagens, as festas, os eventos, ou seja, aquilo que é diferente da vida normal dos trabalhadores e que sem dinheiro, ou sem uma família rica por trás, é praticamente impossível ter.
    Eu lembrava daquela direção, lembrava daquela base, e encontrava uma montanha de elementos capazes de estourar a cabeça de qualquer pessoa.
    Depois do suicídio a organização publicou uma carta falando que aquela vida não tinha sido em vão, que o falecido havia sido um exemplo de revolucionário, que a luta continua até a vitória final e que o culpado daquela morte era o capitalismo.

  3. FRACASSANDO MELHOR
    quidam pensava: é a luz no fim do túnel
    fulano percebeu: é só um trem que vem
    beltrano supôs: enfim, o fundo do poço
    sicrano constatou: tem gente cavando lá

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