Por Thiago Canettieri

Este texto será publicado em partes nos próximos meses nesta coluna. Leia as partes  I, III, IV, V, VI e VII.

CENA 1

Eram cinco da manhã quando Carlos escutou a movimentação na rua de sua casa. Vozes de pessoas se misturavam ao vai e vem de carros arrancando e freando. Colocou a cabeça para fora da janela e viu o que acontecia: em frente a sua casa existia um terreno abandonado. Era de uma pequena construtora que faliu há alguns anos e deixou o terreno. Apesar da cerca, Carlos sabia que era uma questão de tempo até que as famílias necessitadas ocupassem. Ele mesmo já havia feito isso, mas hoje vivia numa área de loteamento público, resultado do reassentamento. Algumas dezenas de famílias do Morro do Cabrito, do outro lado do vale que separava o loteamento onde morava, ocupavam com madeirite e lona o terreno da construtora.

Carlos, desde sua atuação política nos anos 1990, não se afastou completamente da pauta da moradia. Frequentava as reuniões do conselho de habitação do município, e mantinha contato com outras lideranças territoriais. Com frequência ia até a câmara de vereadores para debater algum assunto que lhe interessava. Observando aquela movimentação em sua casa, pegou o celular e enviou, de madrugada mesmo, um áudio para uma liderança religiosa que atua com a pauta das ocupações: “Padre, precisamos de você por aqui”. O áudio de alguns minutos descrevia a situação. Carlos sabia que as famílias que moravam no Morro do Cabrito eram muito pobres e a condição de vida lá era muito precária. Como o nome indica, o Morro do Cabrito tinha uma declividade enorme e a época das chuvas já dava sinal que seria forte.

No dia seguinte, o Padre apareceu na comunidade e gravou alguns depoimentos das famílias que ocupavam. Carlos o acompanhava e se apresentava como “movimento das ocupações”. As famílias se sentiam acolhidas e ressaltam: “nós vamos precisar de toda ajuda possível”.

Ao final do dia, ocorreu a primeira assembleia da ocupação. Nesta assembleia um movimento já estava presente e sua bandeira hasteada na entrada da ocupação. Um representante do movimento anunciava no microfone numa caixa de som ligada no gato de eletricidade improvisado:

“A luta por moradia não é coisa de vagabundo! Nós somos o quê, aqui? Todo mundo é trabalhador. Mas quem trabalha não tem direito de morar nessa cidade. Só rico que tem esse privilégio. Por isso que a gente do movimento fala: Enquanto morar for um privilégio, ocupar será um direito. A luta por moradia, a luta das ocupações é uma luta  justa. O povo pobre também precisa morar, ou a cidade não funciona. Vamos fazer dessa ocupação uma luta muito bonita.”

Esse movimento chegava a atuar em várias ocupações da Região Metropolitana. A maior parte do trabalho era desenvolvido de maneira voluntária pelos participantes do movimento. De maneira orgânica, o movimento estava próximo de cerca de sete ocupações, com um número de famílias variando de 50 a 1.500 por ocupação. Contudo, sua rede de apoio era muito mais ampla. O representante brincava que era “atendendente de disque-despejo”. Seu celular tocava com frequência e era chamado por famílias que ocupavam e estavam prestes a serem despejadas. Na nomenclatura da militância, essas eram as chamadas ocupações “desorganizadas”, quando eram empreendidas por moradores sem o apoio de uma “organização”. Algumas, junto à equipe de advogados populares, conseguiam reverter o despejo e, a partir daí, o movimento passava a atuar de maneira mais próxima. Outras não tinham a mesma sorte e as famílias eram removidas. Mesmo nessa ocasião, o movimento atua em manter um vínculo com as famílias para que elas não se dispersem. Assim, inicia-se um novo núcleo que, a depender da conjuntura, iniciará uma nova ocupação “organizada”.

OCUPAÇÕES URBANAS ORGANIZADAS E MOVIMENTOS SOCIAIS

Considerando o engate subalterno que as economias periféricas possuem em relação ao mercado mundial, nossa estrutura econômica impôs a uma enorme parte da população um regime de superexploração da força de trabalho. Isso significa, segundo Marini (2005), que o trabalhador recebe um salário aquém dos custos de sua própria reprodução. É por isso que vemos, como descreveu Chico de Oliveira[1], uma intrincada combinação de formas “arcaicas” combinadas com a própria expansão da modernidade. Em seus termos, o moderno e o atrasado estão unidos de maneira simbiótica.

Uma das expressões mais evidentes da superexploração da força de trabalho e esse mecanismo de modernização pelo seu contrário é, talvez, o campo da habitação. A população que não vê o custo da moradia contemplado nos custos de sua própria reprodução – e muitos, ainda, nunca se integraram completamente à forma do trabalhador assalariado – não encontra outra opção senão autoconstruir a própria habitação. Isto é, produz a satisfação da necessidade por meio da autoprodução, e, portanto, fora do circuito “normal” do capitalismo. Entretanto, é exatamente essa solução que é o pressuposto para a economia capitalista normal nos países periféricos. Essa forma de provimento habitacional é a exceção vivida como regra pelos estratos mais baixos da população. As ocupações oferecem ganhos como a recomposição do salário desses trabalhadores, muitas vezes já muito baixo. Com a ocupação o indivíduo e sua família se isenta de uma série de custos, sobretudo o do aluguel, que corrói parte considerável de sua renda.

Enormes porções do território das cidades, então, são produzidas num contexto de informalidade habitacional e urbanística, o que garante, por um lado, um déficit no acesso aos equipamentos e infraestruturas urbanas. Contudo, por outro lado, essa experiência se converte num poderoso instrumento de auto-organização. São vários os relatos da organização da população pobre a partir do provimento habitacional[2]. Nasce desse contexto uma cidadania insurgente ou territórios em resistência.

Uma enorme parcela da cidade é, portanto, produzida dentro desses moldes. Circula entre as camadas populares uma certa expertise na produção da própria habitação, afinal, compartilha-se dessa experiência entre gerações e vizinhos. Em muitos casos, a organização ocorre a posteriori.

Foi reconhecendo esse poder aglutinador emergente de uma necessidade concreta da população pobre dos países periféricos que movimentos sociais começaram a atuar nessa pauta. Não se tratava apenas do provimento habitacional pura e simplesmente, mas a mobilização dessa pauta para conquistas políticas mais amplas, se valendo da capacidade de aglomeração para constituir força política. Essa prática se torna então a atuação então em ocupações organizadas, uma forma de expressão da luta social. Raúl Zibechi (2015, p.42) escreve que uma ocupação organizada pode ser caracterizada pela:

organização coletiva anterior à ocupação, com a eleição cuidadosa de um espaço adequado e de uma ação surpresa, preferencialmente durante a noite, na busca de um guarda-chuva legal com base nas relações com as igrejas ou partidos políticos e na elaboração de um discurso legitimador da ação clandestina[3] .

No Brasil, esse tipo de estratégia se torna preferencial dos movimentos de luta por moradia a partir dos anos 1980. Trata-se de uma forma de exigir do Estado providências para garantir a moradia para essa população. A ocupação, portanto, é tanto um instrumento de mobilização e de negociação. Desta perspectiva, as ocupações representam, portanto, um espaço político de luta social.

Notas

[1] Oliveira, Francisco. 1972. Crítica da Razão Dualista. Estudos Cebrap, 2.

[2] Holston, James. 2009. Cidadania Insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Cia das Letras.

Zibechi, Raúl. 2015. Territórios em Resistência: cartografia política das periferias latino-americanas. Rio de Janeiro: Consequência.

Urvoy, Phillipe. 2020. Cidade em disputa: luta de moradores e urbanismo autoritário em Belo Horizonte (Brasil) e Porto (Portual). Tese. Doutorado em História. Belo Horizonte: UFMG.

[3] Zibechi, Raúl. 2015. Territórios em Resistência: cartografia política das periferias latino-americanas. Rio de Janeiro: Consequência, p.42.

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