Por João Aguiar

Há muitos anos, quando instado dos porquês da eficácia das ideologias no capitalismo, um militante da minha geração sacou da caderneta e disparou um dos mais conhecidos axiomas do marxismo, “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”. Portanto, uma conclusão seria suficiente como explicação. No bom espírito da tradição marxista ortodoxa é relativamente comum confundir os resultados com os processos subjacentes de produção das ideologias, com as premissas.

Pode-se avançar com a formulação de que as ideologias combinam a inevitável produção de significados, necessários e inevitáveis para a vida em sociedade, com as constelações de conflitos e relações entre as classes sociais e as instituições. Mas este é, ainda, um nível muito genérico, apesar de adicionar um elemento relevante: a produção simbólica. Este elemento é importante porque chama a atenção para dois aspetos. Por um lado, confere alguma autonomia ao domínio ideológico, permitindo perceber que a ideologia não se resume a um epifenómeno da infraestrutura económica. Por outro lado, permite refutar as teses identitaristas de que tudo seria político.

Mas o que unificaria essa dimensão simbólica com as manifestações políticas dos interesses das classes e de outros grupos sociais? Não havendo resposta suficiente, tentarei trabalhar o assunto a partir da relação de alguns grupos sociais e políticos com o tempo.

  • Os gestores clássicos, o capitalismo e o futuro em função do presente

O capitalismo é frequentemente apresentado na economia neoclássica como equivalente do mercado. Nesse sentido, tudo o que seria prévio ao capitalismo seria simplesmente um embrião institucional do mundo que conhecemos hoje. Portanto, a sua eternidade estaria garantida pela sua inevitabilidade natural-histórica. Contudo, na factualidade concreta da vida das classes capitalistas, as reflexões sobre a origem e o destino do capitalismo ocupam pouca relevância. Isso fica para alguns, poucos, académicos.

O que motiva e propulsiona os capitalistas é a necessidade de aprofundar os negócios e os investimentos em mãos, atendendo à equação custo-benefício. O realismo das classes dominantes alicerça-se precisamente nessa fusão entre a sua ação e a prática quotidiana nas empresas, no Estado e nas organizações internacionais de todo o tipo. A realização de investimentos não é a mesma coisa que a gestão corrente. Investir no plano económico implica um diálogo entre as condições materiais do presente e os resultados que se esperam alcançar num futuro palpável, próximo.

Esta questão do futuro palpável tem muita importância porque a projeção do futuro nos capitalistas coaduna-se com a expansão do existente para domínios mais vastos, seja uma mera expansão quantitativa (para aumentar o volume de negócios), seja uma expansão que vá alterar aspetos do perfil produtivo da sociedade. Isto significa que o futuro para os capitalistas é necessariamente uma projeção que vai do presente para diante.

Naturalmente existem muitos cambiantes neste quadro, desde as vastas modificações de paradigma produtivo (fordismo, toyotismo, etc.) até aos balanços e planos de atividades de qualquer empresa. O que importa perceber é que quando Schumpeter falava de “destruição criadora”, o que sobressai é esta dinâmica global do capitalismo, que encadeia ações ligantes de atos rotineiros e projeções para o futuro próximo, para um futuro palpável. O futuro palpável não depende de visões de uma sociedade mas da interceção entre investimentos financeiros e, o que não é menos relevante, de adaptações ao existente. A resposta dos capitalistas às lutas sociais dos séculos XIX e XX com o aumento da produtividade é o caso canónico da adaptação dos capitalistas ao existente. Com os olhos colocados no amanhã num sentido literal e não figurativo como os marxistas ortodoxos. Amanhã, de manhã. Não “um” amanhã abstrato.

O pragmatismo dos capitalistas é a sua resposta – enquanto coletivo – às lutas sociais. Claro que, ao longo dos anos, existiram inúmeros episódios de repressão a mobilizações dos trabalhadores. Mas se os processos históricos fossem uma mera sucessão de lutas dos explorados e de repressões, a classe dominante seria uma polícia… Ora, o maior ou menor sucesso dos capitalistas enquanto classe social depende incomparavelmente mais da expansão das suas instituições nos ciclos da vida económica e social. A complexidade da arquitetura empresarial – da produção até aos ócios – é muito mais vasta e multidimensional do que simplesmente prender ou matar. É desta complexidade, e da capacidade de a projetar num ambiente concorrencial, que surgem alterações nos processos de trabalho, novos ramos de atividade e novos interfaces para futuros investimentos. Só para dar um exemplo, da luta pelo direito ao descanso e às férias explodiram o turismo, as viagens e um sem-número de atividades comerciais que o capitalismo aproveita para criar novos espaços de rentabilidade. Dito de outra maneira, o lazer que todos passaram a usufruir é também o trabalho para muitos e a expansão dos negócios e da acumulação para outros.

No capitalismo, tudo é aproveitado para criar novas oportunidades de negócio. Não por uma qualquer perversidade ou egoísmo, mas porque essa é uma dinâmica intrínseca ao funcionamento da economia capitalista: aproveitar as oportunidades de investimento surgidas no presente; adaptação das empresas ao contexto social e político; colocar os recursos à disposição consoante as flutuações presentes da oferta e da procura. Em suma, a dinâmica intrínseca do capitalismo alicerça-se no que acima denominei de interceção entre investimentos financeiros e adaptações ao existente.

Com efeito, para o capitalismo o futuro tem sido função do presente, sempre na base da adaptação ao que for surgindo pelo caminho. O progresso é simplesmente a concretização do presente de inovações, aplicações e de adaptações numa linha temporal.

  • A esquerda revolucionária e o presente em função de um futuro pré-definido

Diferentemente dos capitalistas, a alternativa comunista desde 1917 consubstanciou-se a partir de um futuro visualizável e bem definido. Quer dizer, se o socialismo marxista se construiu contra o socialismo utópico, a verdade é que com o passar das décadas, e com as décadas transformadas em quase dois séculos, surgiu uma espécie de figura genérica de uma sociedade socialista e de uma sociedade comunista que guiaria a atividade quotidiana dos marxistas ortodoxos. Ou seja, se para os capitalistas o futuro é função do presente, para a esquerda radical e revolucionária, o presente é função do futuro. Mais, o presente tornou-se cada vez mais função de uma determinada figura do futuro.

Coberta sob os chavões da “sociedade sem classes”, da equivalência entre nacionalizações, estatizações e propriedade coletiva dos trabalhadores, ou da assunção das vanguardas políticas e sindicais como sinónimos da classe trabalhadora, a cristalização destas instâncias políticas transfigurou-as em dogmas. Para ser mais preciso, dogmas e ícones. Pode parecer estranho, mas em termos prosaicos, a forma como na esquerda marxista se passaram a visualizar e a sentir figuras humanas e determinados dogmas políticos não é muito diferente dos santinhos e das rezas para os religiosos. A maneira como a esquerda em geral comemora acontecimentos e processos políticos (1917, revolução de Abril de 1974, etc.), figuras políticas intocáveis (aniversários do nascimento de Marx em 2018, etc) permitiram fazer o caminho inverso do socialismo “científico” para o socialismo utópico.

Os capitalistas mais cultos admiram Adam Smith, entre outras figuras, mas não estão a ver se as suas margens de lucro do trimestre cumprem ou não o que o economista escocês teria escrito sobre o assunto… Para os capitalistas, as figuras empresariais ou políticas da sua predileção vão para o mercado das biografias, não para o altar. Esta desenvoltura de atuação fez dos capitalistas os elementos mais racionais da sociedade contemporânea.

Para os marxistas e para a esquerda revolucionária em geral, o futuro já está relativamente balizado em meia dúzia de enunciados genéricos e, durante muito tempo, não foi muito diferente do preconizado pelo modelo soviético. Houve a discussão se o modelo maoísta, ou albanês, ou outro qualquer seria o medalhão iconográfico predileto que movia milhões de militantes, mas estruturalmente, existia (e para muitos ainda existe) uma modelação a partir da qual aderiam levas sucessivas de xiitas da esquerda.

O caso de lemas políticos serem um espelho da projeção do futuro para o presente chega ao ponto de contaminar e de perverter as reivindicações quotidianas. Por exemplo, quando certa esquerda europeia hoje clama contra o aumento da inflação, facilmente esquece que não foi assim há tanto tempo assim que choramingava pela saída do euro, que teria como resultado imediato um surto inflacionário ainda maior… Numa situação hipotética dessas, a economia passaria a ser nacionalizada e com o Estado a comandar e a interpretar as aspirações dos trabalhadores e do povo, a soberania monetária passaria pela emissão de mais moeda, o que agravaria ainda mais a inflação.

Em termos de política internacional, o cenário é idêntico. Na medida em que as experiências estatistas do comunismo do século 20 povoaram – e continuam a povoar – o imaginário de inúmeras organizações, e na medida em que esse imaginário se construiu por oposição ao capitalismo norte-americano, criou-se em grande parte da esquerda dita revolucionária a equivalência entre um modo de produção (o capitalismo) e uma entidade política (os EUA). Desse modo, a crítica das relações sociais foi substituída por uma crítica geopolítica, na moda das nações proletárias contra as nações plutocráticas, um dos temas favoritos de Corradini e dos seus sucessores fascistas de há 100 anos. Economias tão ou, para ser exato, muito mais nocivas e repressivas dos direitos dos trabalhadores como a chinesa, a russa ou a venezuelana são olimpicamente ignoradas, enquanto certa esquerda esperneia contra os EUA, num tom propagandístico que, aparte alguns epítetos de ordem religiosa, não se afasta substancialmente do preconizado por uma teocracia como a iraniana. Provavelmente, talvez este anti-americanismo esteja na base do sucesso com que a crítica unilateral ao que chamam de neoliberalismo tenha sido uma das suas pedras de toque. Enquanto muitas outras modalidades de capitalismo e de autoritarismo continuam intocadas pela crítica desta esquerda.

Ainda sobre a política internacional, importa mencionar que só uma esquerda completamente obcecada pelas abordagens geopolíticas pode alinhar com slogans genocidas como “from the river to the sea, Palestine will be free”, desenvolvidos inicialmente por palestinianos da OLP, que inscreviam a totalidade do território atual de Israel e da Palestina na sua bandeira. E que na sua carta de 1964 defendiam “a recuperação de toda a pátria usurpada”, leia-se a reocupação de todo o espaço territorial Israel-palestiniano. Aliás, um slogan que mais tarde seria adotado pelo Hamas e partilhado por todos os radicais islâmicos que querem expulsar os judeus do Médio Oriente e de Israel e até pela extrema-direita israelita, que deseja um projeto similar de sentido religioso inverso.

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A sobrevivência política de modelos estatistas e de determinadas proposições puramente geopolíticas (e nacionalistas) ao longo do tempo transforma erros estratégicos e deformações/irreflexões em dogmas. Dogmas que acabam por orientar e balizar todas as práticas quotidianas de certa esquerda, especialmente em questões estruturais como a transformação do capitalismo num jogo de tabuleiro geoestratégico.

No fundo, o projeto futuro da esquerda sobrepõe-se sempre ao presente. As incoerências entre o presente e o futuro não demovem nunca a esquerda de manter o futuro iconográfico intocado. O presente justifica-se sempre no sentido de tentar arrebanhar mais prosélitos para a missão de um futuro salvífico.

A esquerda revolucionária europeia que, com maior ou menor sucesso, tinha uma dimensão política e social indesmentível, e que tinha uma ligação efetiva à classe trabalhadora, tornou-se hoje numa coleção de seitas com rituais, linguagens e códigos morais apenas compreensíveis por um círculo de fiéis devotos. Na medida em que perdeu utilidade e que perdeu capacidade de atuação junto da classe trabalhadora, essa esquerda só pode justificar o presente na base de ícones e de mitos. A esquerda revolucionária trocou Marx [1] por Sorel, e ainda não deu por isso.

  • Antes de avançar, breve resumo sobre o caso do fascismo e o presente em função do passado

O caso dos fascistas é o inverso da esquerda marxista. Se para a esquerda o presente é um mero instrumento para um futuro pré-determinado, para os fascismos o passado é uma idealização predefinida a que o presente caberia cumprir/resgatar.

Quando Salazar se propunha fazer cumprir Portugal, o presente esvaziava-se do seu sentido concreto para depender da sua relação com o passado, com uma determinada evocação do passado. Este aspeto é facilmente visível na política patrimonial, em que a reconstrução e restauração de monumentos e castelos modelou o regime fascista português. Mas foi muito mais do que isso. A guerra colonial (1961-74) e a obstinação do regime interliga-se com essa conceção do presente enquanto instrumento de resgate do passado, de um passado tido como glorioso. A própria legitimação do Estado Novo nas décadas de 1930 e 1940 decorreu dessa conexão entre a tradição portuguesa e a sua redescoberta da cultura popular (fabricada pelo Secretariado da Propaganda Nacional).

No caso do nazismo, a conexão entre o resgate do passado e o presente (do regime) é ainda mais pronunciada. Como é evidenciado no capítulo sobre a génese do racismo nacional-socialista nas diversas edições de Labirintos do fascismo, os vivos seriam meros depositários do sangue dos mortos. O presente seria, assim, um recetáculo da matéria viva do passado. Ou seja, a vida expressar-se-ia no sangue oriundo dos passados, e não no presente. O sentido do presente estaria em criar condições de higienização para deixar fluir a eternidade do passado. A definição dos eslavos como sub-humanos seria uma inevitabilidade da luta rácica milenar, ao qual a política nacional-socialista de escravização seria uma mera atualização desse pressuposto natural. Ao mesmo tempo, o extermínio dos judeus (a anti-raça) seria o culminar de um processo histórico de luta entre a supremacia da raça nórdica e os seus inimigos históricos e poluidores do sangue nórdico.

  • A esquerda identitária e a confluência do presente em função do passado e em função do futuro

A esquerda identitária retoma, em certa medida, as asserções temporais do fascismo. Por exemplo, a valorização das “pessoas racializadas” contra o universalismo retoma a discussão do colonialismo no presente. Por outras palavras, a luta que defendem pelo que consideram ser a descolonização das instituições corresponde a uma certa atualização do passado. Mas onde os fascistas pretendem resgatar unilinearmente um passado mítico e glorioso, os identitários pretendem alterar o passado no presente. A reescrita do passado, transformando o passado num mero exercício colonial (como se não tivesse existido escravatura noutros espaços geográficos ou esquecendo o papel dos regentes africanos na constituição de mercados de escravos), ou a transformação do universalismo da cultura contemporânea num falso particularismo ocidental são exemplos da busca pela modificação do passado no presente. Chamo modificação ao temque, na realidade, é uma reescrita. A fixação da esquerda identitária por estátuas, as discussões intermináveis e panfletárias sobre um passado que já não existe, demonstra a vitória do pós-modernismo dentro dessa esquerda, em que a ação sobre as relações concretas do presente é substituída pelos debates sobre as linguagens e os rituais (moralmente) certos e puros a adotar. A obsessão com a política de-colonial e a translação automática de contextos horripilantes passados para a atualidade, como se esta fosse uma reactualização do colonialismo europeu, vai desde a descontextualização de figuras históricas do passado até à incapacidade de distinguir o colonialismo do capitalismo. Ora, o colonialismo baseado no trabalho escravo era uma prática transversal a diversos modos de produção e assente na transformação do ser humano escravizado num objeto de pleno usufruto pelo senhor. Pelo contrário, no capitalismo o trabalho assalariado notabiliza-se pela separação entre pessoa e força de trabalho, o que implica o controlo do tempo de trabalho na execução de tarefas laborais, mas não necessariamente as vontades e a liberdade de movimentos extra-laborais. Aliás, convém reforçar que, apesar de não ter sido bem-sucedido, o capitalismo tentou transformar os espaços coloniais baseados em trabalho forçado e escravo, em espaços de trabalho assalariado, ao longo do século XIX.

Esta projeção do colonialismo baseado em trabalho escravo para os dias de hoje esquece admiravelmente os cerca de 27 milhões de escravos existentes na atualidade, com particular incidência em países como a Rússia, China, Coreia do Norte, Uzbequistão ou no Sudeste Asiático, movimentando pelo menos 32 mil milhões de dólares (dados de há 10 anos), e podendo atingir os 150 mil milhões de dólares, se se incluir o tráfico humano. A maior atenção conferida às tentativas de reactualização do passado no presente pela esquerda identitária face ao trabalho forçado e ao tráfico humano que existem pelo mundo fora, demonstra a substância do seu projeto político.

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Adicionalmente, a constituição de uma sociedade em gavetas identitárias constitui o arquétipo do futuro desejado por essa esquerda. Aqui, a esquerda identitária recupera uma dimensão da esquerda marxista, mas em vez de um modelo global, fossilizado mas global e abrangente, oferece-nos uma tela composta por vidrinhos colados. A multiplicação de identidades até à exaustão e, acima de tudo, a defesa da incomunicabilidade entre as diversas categorias identitárias, correspondem ao mundo que esta esquerda pretende desenhar. Um processo de engenharia social baseado no puritanismo da linguagem certa e unívoca (o contrário da comunicação e da linguagem), no controlo dos mecanismos de entrada do mercado de trabalho em determinadas áreas profissionais e na hierarquização de categorias identitárias. A superiorização das categorias identitárias substituiria a prática humana per se, na medida em que a condição de universalidade da modernidade seria menorizada. O padrão valorizado numa sociedade contemporânea tem sido o valor da prática humana, independentemente da cor da pele, sexualidade ou outro. No âmbito do identitarismo, os traços biológicos e culturais ganhariam progressivamente precedência sobre as práticas individuais. Os movimentos cívicos do passado clamavam pelo fim da discriminação dos traços biológicos e culturais em favor do direito a cada um poder aceder a empregos, à ciência, à cultura e à participação política, independentemente desses traços. Pelo contrário, num movimento simétrico ao da direita identitária, para a esquerda identitária os traços biológicos e culturais tomariam centralidade.

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Em paralelo, e para ser breve, no plano do ecologismo, confunde-se a necessidade de combater o aquecimento global com o recurso à edição genética na agricultura (OGM) e à energia nuclear, com o regresso a um passado mítico de uma natureza pura e imaculada, que mais não seria do que um universo de decrescimento, escassez e repasto ritualístico de fetiches orgânicos contra o plástico, o nuclear e a ciência. Numa época que recorre aos mantras da sustentabilidade, não deixa de ser paradigmático o peso de obstáculos relevantes a essa mesma sustentabilidade por parte da esquerda identitária e ecologista.

No choque entre um passado desprovido da complexidade dos processos históricos e um futuro estilhaçado em múltiplos fragmentos, a esquerda identitária consegue a proeza de colocar o presente tanto em função do passado como do futuro. Em nome de um futuro conveniente e impecavelmente etiquetado e linguisticamente insípido, o passado unidimensional é o seu imprescindível contraponto.  O presente mais não é do que a arena das aspirações para o avanço da agenda classificatória, enquanto o passado liquefaz-se numa mistela descolorada de uma História quase reduzida ao colonialismo.

  • A adaptação assimétrica: capitalismo, as esquerdas e os gestores ideológicos

O capitalismo responde à luta entre os fascistas e a esquerda identitária, entre as duas extremidades dos gestores ideológicos com tentativas de adaptação. Por um lado, existem as políticas de recuperação institucional das elites de ambos os extremos, incorporando-as em empresas, universidades, etc. Por outro lado, a segmentação dos processos de globalização económica, com a possível valorização de blocos continentais ou regionais em detrimento da articulação supranacional.

Contudo, o aspeto mais notório nestes processos de adaptação contínua do capitalismo é a ausência de lutas sociais. Nos séculos XIX e XX, o principal fator que motivava a readequação do capitalismo encontrava-se nas lutas sociais dos explorados. Com a sua substituição pelas “guerras culturais” entre gestores ideológicos, o fator de pressão à adaptação do capitalismo passou das alterações do processo de trabalho (a mais-valia relativa) para as alterações no plano cultural das identidades.

No passado, em termos da estrutura e das instituições, as derrotas operárias tinham pelo menos o condão de incrementar os mecanismos da mais-valia relativa, com as inevitáveis consequências nas condições de vida e de trabalho dos trabalhadores. Todavia, com a ascensão dos gestores ideológicos (subsequente às derrotas proletárias dos anos 1970), a pressão deixou de se centrar nos mecanismos de produtividade. Isso não apenas tem impactos nos trabalhadores, cada vez mais fragmentados.

Tudo isto também transporta impactos para os capitalistas, quanto mais não seja porque o seu ajuste institucional não os pressiona apenas no plano nuclear do capitalismo. Ora, se é verdade que a importância das lutas autónomas dos anos 1960 e 1970 foi de tal monta que o paradigma toyotista ainda hoje continua válido nos seus traços centrais, também é verdade que, nos últimos 40 anos, o (quase) único fator que tem pressionado os capitalistas é a concorrência inter-empresarial.

Sendo assim, a dinâmica do capitalismo nas últimas décadas tem sido assimétrica, na medida em que dos dois fatores de pressão, só a concorrência entre as empresas tem imperado na propulsão do capitalismo. Apesar de à concorrência se somar impactos transatos das lutas autónomas na reorganização institucional das empresas (papel do trabalho intelectual e do trabalho em equipas, etc.), a verdade é que o fator de pressão das lutas sociais dos trabalhadores foi substituído pelas lutas entre identitários de direita e de esquerda. Ou seja, têm sido os gestores ideológicos (anti-vacinas, extremistas islâmicos, populistas, supremacistas, esquerda identitária, ecologismo) a pressionar os capitalistas. Mas não têm pressionado a produtividade do trabalho.

Isso implica que, de um modo geral, os capitalistas desvalorizem crescentemente visões estratégicas e joguem pelo seguro, pela gestão corrente. Por exemplo, na política económica a aposta para combater a inflação tem-se resumido a apagar fogos, com o BCE a elevar a taxa de juro, mas sem que o conjunto das instituições capitalistas ou dos Estados sejam capazes de reformular uma estratégia que não seja meramente esperar que passe a tempestade.

Em conjunto, observam-se políticas públicas de vistas curtas, sem capacidade para infletir os desequilíbrios entre a mais-valia relativa e a mais-valia absoluta. Num âmbito específico, mas estrutural, o aumento colossal dos preços de compra ou de arrendamento da habitação se, por um lado, refletem a captação de volumes de capital e a expansão do mercado, por outro lado, representam sempre um foco de potencial instabilidade social, na medida em que se desprezam os mecanismos de integração da força de trabalho no sistema económico. Singularmente, o fosso entre os dois mecanismos da mais-valia implica um travão da produtividade e um afundamento das condições de vida dos trabalhadores, especificamente contingentes alargados de jovens trabalhadores qualificados.

Quando a gestão corrente se torna hegemónica nas práticas dos gestores, entra-se num campo que extravasa a mera consideração da instalação de dolência e de rotinas nas práticas dos gestores. Quando a gestão corrente se torna prática hegemónica na regulação de instituições ou de empresas, isso significa que o campo de visão dessa parcela de gestores se reduziu enormemente.

Também neste plano, a substituição histórica das lutas sociais pelas reivindicações dos gestores ideológicos (à direita e à esquerda) representa uma desvalorização de visões estratégicas por parte dos gestores capitalistas clássicos. Historicamente, numa situação de colossal recuo das lutas sociais e em que os capitalistas perdem a sua visão estratégica e a substituem por uma gestão corrente, não é difícil adivinhar quem colheu (e tenta colher) os frutos de uma situação deste tipo.

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O capitalismo forneceu níveis de bem-estar aos trabalhadores, na medida em que, paralelamente aos mecanismos concorrenciais e da acumulação capitalista, a ação das lutas sociais dos explorados foi uma constante fonte de pressão. Ou seja, a pressão dos trabalhadores em torno das questões magnas do tempo de trabalho, do salário e da organização do trabalho implicaram que, nesses mesmos terrenos concretos onde o capitalismo se alicerça, tudo tivesse que ser reformulado.

A desconexão das esquerdas (revolucionária e identitária) relativamente à classe trabalhadora de todas as origens e proveniências, não só leva a que hoje o anticapitalismo seja um mero verbete, como deixou de ter qualquer significado para as atuais gerações de trabalhadores. Pior, o que essas esquerdas concebem como anticapitalismo (o antiamericanismo, o nacionalismo, a política das identidades) representa um corte flagrante com as raízes históricas, mal ou bem amanhadas, da esquerda no racionalismo e no Iluminismo.

Se há mais de 100 anos Rosa Luxemburg se preocupava com a cisão entre reforma e revolução na esquerda social-democrata e revolucionária alemã, hoje os dados da equação encontram-se alterados. Por um lado, quase já não existe sequer uma esquerda social-democrata/reformista na Europa. E, por outro, as esquerdas revolucionária e identitária, na sua maioria, esvaziaram o presente. Esse esvaziamento ocorre, em primeiro lugar, por via da sobrevivência e da glorificação de uma excrescência da guerra fria (a equiparação do capitalismo aos EUA e à UE). E, em segundo lugar, por via da aspiração em reconstituir um mundo assente no decrescimento económico e na constituição de categorias rácicas e da fragmentação identitária como modelos da vida em sociedade.

Uma recuperação dupla do estalinismo e do fascismo?

A ilustração em destaque é do artista cubano, Felix Gonzalez-Torres (1957-1996), “Perfect Lovers“. As demais são da artista brasileira Pati Peccin (1975-), da série Imersão no Tempo.

Notas

[1] Evidentemente, Marx elaborou uma teoria cheia de buracos e de armadilhas. Para um resumo das minhas posições sobre o assunto vd. Marx e a nação. Contudo, o marxismo ainda tinha uma conexão com a análise da realidade socioeconómica e a busca por uma compreensão dos mecanismos do capitalismo. Este aspeto relevante da teoria marxista foi obliterado, transformando o próprio Marx num mito. Até neste ponto, o conceito de mito de Sorel permeia a conexão da esquerda que se reivindica do marxismo com o seu fundador.

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