Por Wanderson Chaves [1]

Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada no “A TERRA É REDONDA

Eberval Gadelha Figueiredo Jr., em seu “A questão parda”[2], defende — a exemplo do que vem fazendo também a ativista e pesquisadora Beatriz Bueno, ambos, integrantes de uma tendência emergente — alguns temas do movimento da “parditude”. Há o levantamento de pautas relevantes e pendentes: poder e direitos aos não-brancos sub-representados, em particular, os descendentes de indígenas não “indianizados”; e as condições de realização — em mérito e critérios de julgamento — das comissões de heteroidentificação das bancas julgadoras de cotas raciais. A fundamentação dos argumentos, interessantes à primeira vista, porém, são problemáticos — e, é o que tento sugerir — para o desenvolvimento da própria luta antirracista.

Trata-se de um programa político. A opus O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, em suas belas formulações utópicas sobre uma civilização mestiça brasileira farol do mundo, é uma fonte de inspiração explícita. Dessa obra, também provém — na parte que interessa a este argumento — uma fragilidade argumentativa: as premissas analíticas são a de uma célebre visão de história comparada, na qual o Brasil se sobressai sempre como o antagonista (negativo ou positivo) da América. Um recuado e sugestivo antecedente dessa tendência remonta à escravidão nos dois países (e à disputa sobre seus legados). O debate bilateral neste tema geralmente atualiza uma conhecida tradição: Brasil e EUA se constroem como opostos, para, nessa operação, estabelecer — ou, principalmente propor e naturalizar — os princípios de sua própria identidade, e da formação da cidadania em seus países [3]. O argumento em jogo é o da superioridade moral, mas, Brasil e EUA nem sempre (infelizmente) são tão diferentes em matéria racial como se pressupõe ou desejaria. A declaração de Florestan Fernandes, em 1969, de que o Brasil logo estaria em plena posição de vantagem em relação aos EUA em termos de realização democrática; bastava, para isso, haver uma elevação na conscientização e politização racial dos brancos brasileiros, parece ser mais esperança que uma previsão material[4]: há indícios mais de diferenças de grau que de padrão separando os dois países[5].

Quanto à Beatriz Bueno, no artigo “Impedidos de entrar em Wakanda” [6], parece, à primeira observação, propor-se uma altercação, em que se questiona a hegemonia norte-americana no campo das ideias; porém, a sua argumentação contra a subsunção e apagamento do “pardo” é uma aplicação do “colorismo”, justamente, uma tendência estadunidense das últimas décadas. O que é chamado de “colorismo”, é bem verdade, é um tema antigo no Brasil, consagrado na nossa secular noção classificatória de “gradiente de cores”, na qual se catalogava e, por suposto, se hierarquizava uma infinidade de termos de raça, cor e origem. Esse gradiente, até muito recentemente, continha todo o repertório brasileiro de termos raciais, rico em formas que sublinhavam a nossa variedade de “mestiços” brancos, que, nessa grade de estratificação humana, formavam um afastamento do polo em que estavam os “mestiços” mais escuros. De fato, o movimento negro contemporâneo logrou uma transformação: em face a esse gradiente, subsumiu os “pardos” e aproximou-os do polo político negro [7].

Assim, parece haver pouca inovação na aplicação da perspectiva colorista ao Brasil. Em razão de um fato básico: ela chega direto ao coração de nossas profundas tradições. O colorismo recoloca a mestiçagem no centro ético-moral das nossas noções de vida comum e ambições culturais, transportando para a cena da vida privada, para a sexualidade e para a formação da família, o terreno de discussão de problemas de natureza pública, pendentes de solução. A promessa da mestiçagem seria harmonizar, na vida privada, o que na vida pública e social seria caos e conflito. Aliás, não há nada que a mestiçagem possa fazer contra o conflito constituinte da esfera pública que não seja lhe pacificar; postulação que sequer é uma proposta original brasileira, mas, entre tantos exemplos, a aposta do nacionalismo latino-americano em geral, cuja palavra de ordem (inclusive do seu racismo miscigenacionista), desde o século XIX, sempre foi pacificação [8]. Portanto, que conflitos se pretende pacificar?

Minha impressão (quem sabe, de centavos) é de que se fala, nessa tradução do debate colorista, de ressentimento e rivalidade. Fala-se da indisponibilidade em disputar os sentidos da negritude, em compor-se na aliança a esse bloco político. E a razão mais forte — a partir do artigo de Beatriz Bueno, ao menos — é salvaguardar o conteúdo das alianças familiares dos lares “mestiços”; que essa vida da intimidade não seja destruída pelas contradições e imposições externas a ela, e, vislumbra-se, que os fundamentos ético-morais dessa ordem familiar “mestiça” e a ordem pública possam se harmonizar e se espelhar. Outra razão é a expectativa de que a superioridade demográfica “parda” sobre a dos “pretos” corresponda a possibilidades proporcionais de poder, liderança e direitos. Implicitamente, responde-se a um sentimento de humilhação, de se verem os “pardos” excluídos de algo que a eles também caberia, inclusive em termos de liderança e legitimidade, humilhação, aliás, que — para alguns — pareceria piorada porque não são excluídos por brancos, mas por negros.

O antirracismo sofre dificuldades para tornar-se uma verdadeira filosofia de libertação. Fundamentalmente, não conseguiria sair do registro da resistência e vitimização e ingressar no da insurgência e da recriação do mundo. Até o momento, não fui convencido de que reintroduzir a miscigenação como tópico de luta antirracista nos enderece para esse novo caminho [9]. Aliás, tornar a mestiçagem uma “não-questão”, que ela seja apenas um fenômeno aberto da liberdade individual (o que não tem sido muito o caso na história da modernidade) e não uma espécie de graça redentora ou opróbio moral, nos faria enorme bem.

As obras reporduzidas no artigo são da série Retratos Brasileiros, do artista Dalton Paula.

Notas

* Este texto surgiu de uma sugestão de Nelson Job. Obviamente, as opiniões aqui expostas são exclusivamente minhas.

[1] Historiador, é autor de A Questão Negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970), da editora Appris. Contato: [email protected]

[2] In: https://aterraeredonda.com.br/a-questao-parda/

[3] Ao longo dos últimos séculos, Brasil e EUA têm oscilado entre os polos do inferno e do paraíso racial, intercambiando-se. Para uma história das primeiras elaborações do Brasil como paraíso racial, no interior do abolicionismo internacional no século XIX, ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo – Estados Unidos e Brasil, uma história comparada. São Paulo: Annablume, 2003. Nesse jogo de oposições, visões como a de Darcy Ribeiro encontram seu polo opositor na visão norte-americana de que o “norte” encarna as virtudes da civilização, do trabalho e da riqueza enquanto o sul do continente é o cemitério das democracias, esposada por Alexis de Tocqueville no clássico A Democracia na América, de 1835. Vide: CANCELLI, Elizabeth. O Brasil e os outros: o poder das ideias. Porto Alegre: ediPUCRS, 2012, p. 141.

[4] O sociólogo falava ao público anglófono: FERNANDES, Florestan. The Negro in Brazilian Society. New York: Columbia University Press, 1969, p. xvii-xviii.

[5] O antropólogo Peter Fry, um conhecido freyriano, faz uma avaliação contrária à clássica atribuição de Oracy Nogueira de um “racismo de marca” ao Brasil e um “racismo de origem” aos Estados Unidos — e, neste sentido, contra a opinião do próprio Gilberto Freyre sobre as diferenças entre os países. Para Fry, as relações sociais no Brasil seriam estruturadas mais na tensão entre duas taxonomias — a primeira sendo a do gradiente de cores e a segunda a da diferença binária entre brancos e negros, que na oposição entre elas. Para ele, algo semelhante poderia ser dito dos EUA, mas, com o privilégio da taxonomia binária. Vide: FRY, Peter. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, especialmente cap. 7. Certa historiografia estadunidense vai no sentido dessa observação, demonstrando ser pertinente a tensão (e volatilidade) entre estas taxonomias nos EUA desde o século XIX, ainda vigentes no século XXI. Vide: HODES, Martha. The Mercurial Nature and Abiding Power of Race: A Transnational Family Story. In: The American Historical Review, v. 108, nº. 1, 2003.

[6] BUENO, Beatriz e SAINT CLAIR, Ericson. Impedidos de entrar em Wakanda – Reflexões sobre parditude, manifestações midiáticas e desafios de pertencimento. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 4 a 9/10/2021.

[7] Detalho essa transformação temática em: CHAVES, Wanderson. Entre Mendel e Lamarck: o discurso acadêmico sobre raça e a polemica em torno do gradiente de cor. Brasil (1990-2005). Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB / CEPPAC, 2007.

[8] Sobre a nossa tradição de pensamento político, cheia de fortes paralelos com uma literatura novelesca e folhetinesca marcada pelo esforço de tradução de alianças sexuais e matrimoniais em expectativas de alianças sociais e de conciliação política, ver: SOMMER, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. Muito próxima deste argumento está Mary-Louise Pratt, que demonstrou como na linguagem do romance literário se desenvolveu uma perspectiva sobre a mestiçagem dirigida especialmente aos “inassimilados”. Casamentos e uniões afetivas serviam à construção ficcional de um regime de reciprocidade social entre grupos antagônicos e desiguais. Vide: Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, especialmente “Eros e Abolição”.

[9] É conhecida a opinião freyriana de que a “mestiçagem” é um motor “desracializante” da sociedade. Peter Fry, por exemplo, levará essa ideia adiante e dirá que a mestiçagem, por essa razão, criaria o ambiente mais adequado à promoção das liberdades e direitos do liberalismo porque suscita o surgimento de indivíduos plenos (vide nota 5). Neste particular, sigo, na ausência de argumento mais convincente, a posição do historiador e filósofo Pierre-André Taguieff, para quem a miscigenação, alçada à condição de ideologia e filosofia política (e não apenas como uma qualidade descritiva da demografia humana) é uma potente força de racialização das sociedades. Vide: The Force of Prejudice: On Racism and Its Doubles. Minneapolis and London: University of Minnesota Press, 2001.

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