Por Liv
MOTIVO DA OBRA
Em uma ocupação de tipo artificial, quatro ou cinco elementos organizativos são os primeiros a surgir.
O primeiro são os barracos cobertos majoritariamente por sacos de lixo preto (lona plástica não é um produto tão acessível quanto parece). Barracos fictícios, pois não servem para morar e sim apenas para contabilizar uma demanda. Uma demanda aferida sem a menor seriedade, já que com o tempo verifica-se que muitos sem-teto que assinam a lista não se enquadram no perfil dos programas de financiamento habitacional (é isso que é o MCMV, por exemplo, e o é em todas as suas modalidades, até mesmo na modalidade Entidades) que dão acesso a moradia popular (a provisão pública do acesso a moradia é sempre vinculada a um financiamento bancário de alienação fiduciária… interessante, não?). Nestes casos a luta, ou seja, o ranking da lista de presença em atos e assembleia é transferido para o nome de algum filho/parente/companheiro amoroso.
O segundo elemento são as contraditórias cozinhas coletivas que servem de palco tanto das perversas formações políticas, quanto das intrigas mesquinhas e das disputas por protagonismo. Assim como para o florescimento de sinceras relações de solidariedade. Relações de solidariedade que são posteriormente instrumentalizadas por uma direção que privilegia o vínculo pela dependência afetiva em detrimento do vínculo político (e há quem defenda a boa-fé de uma tese de pós-graduação cujo tema é a superação do estado depressão de mulheres que passam a integrar o grupo dos sem-teto).
O terceiro são as plantações de chuchu. Planta de crescimento acelerado cuja colheita do fruto começa em 90 dias após o plantio.
O quarto são gatos, que existem ali para se alimentar da própria caça (ratos, baratas, escorpiões, etc).
E existe ainda um ocasional quinto elemento. Este só surge quando há matéria-prima disponível no próprio terreno. São os fornos a lenha construídos em cupinzeiros. Bem-vindos para mitigar o peso econômico do gás de cozinha e do desinteresse da direção, que frequentemente fila refeições sem retribuir nem com um bom dia e que jamais forneceria este item quase indispensável para as cozinhas coletivas das ocupações. Questionados, eles certamente diriam que não fornecem por motivos pedagógicos (intimamente alguns se auto-perdoam pensando que a gasolina gasta da Santa Cecília até a distante ocupação já é contribuição suficiente).
A foto que deu origem a obra aqui apresentada foi tirada em uma ocupação sem-teto no extremo sul da cidade de São Paulo. O senhor da foto estava transformando um cupinzeiro em um forno à lenha. Este senhor era um dos raros moradores de uma ocupação com centenas de barraquinhos supostamente de lona. No barraco de 4m² (nunca maior do que isso) moravam ele e a esposa. A renda do casal era o equivalente a uma aposentaria por invalidez que este senhor recebia desde o tempo em que caiu de um poste de luz. Ele trabalhava para uma companhia de energia que não lhe fornecia treinamento e EPI adequado. Levou um choque e despencou. Se quebrou todo. Foi remendado para passar o resto de seus dias tremendo da cabeça aos pés, assinando listas de controle social, assistindo assembleias de conformação (tal qual um crente assiste à pregação de um líder religioso) e caminhando sem precisar entender o rumo de suas passadas pelo centro da cidade em longas e obrigatórias passeatas de mil motivação (afinal incluíram no rol da luta dos sem-teto lutas estranhas às necessidades imediatas desse senhor, como por exemplo aquelas que gritam: meu-corpo-minhas-regras).
DADOS DA OBRA:
Título: Cupinzeiro
Ano: 2022
Ano do texto: 2024
Material: Madeira, tecido, papel, prego, palha de aço, cola e tinta óleo.
Descrição do ato: A plataforma de sustentação da obra foi retirada de uma caçamba. Trata-se de um compensado plastificado sujo de cimento e barro. No compensado foi pregado uma pedaço sujo de lona têxtil branca com a imagem de um senhor trabalhando. Pregos foram martelados em linhas horizontais e verticais de forma ordenada. Um emaranhado de palha de aço oxidada foi colada em volta dos pregos e além. Os espaços que restaram vazios foram preenchidos com tinta óleo.