Por João Bernardo

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Poderia imaginar-se que na sequência da publicação do artigo «O Dinheiro: da Reificação das Relações Sociais até o Fetichismo do Dinheiro» eu iria ficar atento a todas as modalidades de dinheiro e que a amplitude das suas funções no capitalismo nunca mais me passaria despercebida. Mas foi o contrário que sucedeu. Decorridos oito anos em que publiquei sobre temas variados mais de uma dezena de artigos e livros, um desses artigos em co-autoria com Rita Delgado, o dinheiro só teve obrigatoriamente lugar no Crise da Economia Soviética (1ª ed., Coimbra: Fora do Texto, 1990). E que lugar? Ao longo desse livro analisei os problemas económicos em completo alheamento do sistema pecuniário, como se o dinheiro fosse transparente, em vez de ter mostrado que sem ele as contradições internas daquela economia não teriam sido articuladas num conjunto coerente.

A ausência de tratamento do dinheiro é especialmente flagrante na análise da época de estabilização que decorreu entre 1964 e 1982, quando se tornou evidente a fragilidade económica do regime soviético. Escrevi no subcapítulo dedicado à economia oculta: «Desenvolveu-se na União Soviética uma forma de dupla economia em que, sob a inflexibilidade cada vez mais aparente do plano central […] os gestores das empresas passaram a tomar um número crescente de iniciativas, em âmbitos que legalmente lhes não competiam. Os técnicos de contabilidade servem para adequar a imagem da empresa aos imperativos […]» (pág. 112). Mas faltou-me aqui lembrar que os contabilistas manipulam números, que neste caso são símbolos pecuniários, e era graças a estes símbolos que se adequava a imagem da empresa.

Na realidade, a teia era muitíssimo mais ampla e estendia-se a toda a sociedade. «O relacionamento oculto entre as administrações das empresas serve de quadro a uma categoria muito vasta de intermediários, que se encarregam, mediante a apropriação de uma percentagem do lucro, de multilateralizar estas transacções» (pág. 112). E não se parava aqui. «Os mecanismos ocultos da economia funcionam também num segundo campo, relativamente aos consumidores particulares. […] A oferta em mercado negro de um suplemento de bens de consumo cumpre a função de completar o nível material de vida de muitos trabalhadores […]». Assim, a sociedade soviética ficou envolvida por uma rede que a ligou de cima a baixo. «Desde que, com o 1º Plano Quinquenal, se instituiu o regime de planificação central, os mecanismos da economia oculta têm constituído parte integrante do funcionamento económico. Mas a actividade dos intermediários ilícitos e dos agentes do mercado negro desenvolveu-se muito ao longo das duas décadas de estabilização, acabando por ser imprescindíveis à própria economia oficial» (pág. 113). E adiante sublinhei: «É isto que a economia oculta permite, adaptando às condições reais as normas estabelecidas pelos organismos de planeamento, de maneira que estas, para se manterem formalmente em vigor, tiveram de ser violadas praticamente» (pág. 114). Dissimulada sob os antiquados chavões ideológicos, que constituíam a sua expressão audível, aquela teia de relações tinha no dinheiro o articulador silencioso da sua consistência. Foi isto que me faltou dizer.

Perdi também a oportunidade de estudar o sistema pecuniário no capitalismo de Estado da esfera soviética em contraste com o sistema vigente no capitalismo concorrencial da esfera americana. E, pior ainda, em lugar nenhum me apercebi desta lacuna, já que nem sequer mencionei o dinheiro. A omissão é talvez mais flagrante quando, ao abordar as relações comerciais entre a esfera soviética e alguns países então menos desenvolvidos, e sendo difícil aos soviéticos obter o meio de pagamento em vigor no mercado mundial, expliquei que eles recorriam a «uma gama de formas de pagamento que podem ir desde trocas a curto prazo até acordos de compensação, mediante os quais a importação de tecnologias, de meios de produção, por vezes mesmo de instalações completas e prontas a laborar é paga a longo prazo por uma parte dos produtos fabricados graças a essas tecnologias e investimentos materiais». E prossegui. «Este conjunto de processos, desde as trocas a curto prazo até às compensações a longo prazo, implica prestações de crédito sempre que se verifiquem desfasamentos [defasagens], quer nos montantes trocados, quer nos prazos envolvidos» (pág. 73). Ora, para entendermos aquela versatilidade e plasticidade dos meios de pagamento e as possibilidades que lhes eram inerentes tornava-se necessário explicá-los em termos pecuniários, tanto mais que sem isto também não eram plenamente compreensíveis os seus limites. A propósito das relações económicas entre os países da órbita soviética e a Índia, escrevi: «Quando nenhum dos intervenientes dispõe de suficientes quantidades de divisas fortes, o saldo positivo de um dos países na balança comercial com o outro não pode ser convertido em disponibilidades de importação a partir de um terceiro e fica bloqueado, possível apenas de usar para importar bens a partir do país em deficit. […] Desenvolveram-se neste contexto oportunidades para a acção de empresas intermediárias comerciais e financeiras que compram, por divisas fortes, créditos nas balanças bilaterais que o credor não deseja utilizar […] esses créditos são depois vendidos pelo intermediário a empresas de outros países, que desejem importar do país em deficit produtos pagáveis por essa forma. Mas tudo isto se faz a um preço […]» (págs. 74-75). E assim ficaram sem estudar os mecanismos pecuniários que permitiam e articulavam estas transacções e mais uma vez não aproveitei a ocasião para analisar a plasticidade do dinheiro.

Curiosamente, num artigo publicado no ano seguinte, onde o dinheiro não surge nem precisaria sequer de ser evocado, «Internacionalização dos Capitalistas e Nacionalismo dos Trabalhadores», Revista de Administração de Empresas (XXXI, 1, Janeiro-Março 1991) (aqui), escrevi duas linhas que devem servir de eixo a qualquer reflexão sobre o tema. «A música, a mais abstracta das artes, e o dinheiro, o mais abstracto dos instrumentos económicos, são os primeiros e os mais sensíveis dos indicadores capazes de dar conta das transformações sociais» (pág. 11). Foi esta inspiração que me orientou num livro publicado pouco depois, Economia dos Conflitos Sociais (aqui).

Esse livro permitiu-me dar o salto que faltava desde a publicação de «O Dinheiro: da Reificação das Relações Sociais até o Fetichismo do Dinheiro». Uma vez mais, retomei o impulso seminal emanado do Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista, quando estabelecera que a produção se eleva do particular ao geral directamente no âmbito do processo produtivo, o que implica que o conjunto dos trabalhadores produza mais-valia para a globalidade dos capitalistas. Numa visão retrospectiva, vejo agora que a concepção de capitalismo que tenho defendido desde então até hoje se baseia neste modelo de globalidades. Ora, «é porque afirmo que os produtos, no capitalismo, adquirem o carácter social no próprio processo por que são produzidos, que posso deslocar o dinheiro da esfera da circulação, onde tradicionalmente é analisado, para a da produção. Referindo o dinheiro ao desequilíbrio das relações sociais, reporto-o directamente à dinâmica social, e não indirectamente, como fazem os que o consideram expressivo de relações congeladas em valores» (pág. 242). Foi nesta óptica que dediquei ao dinheiro a Quinta Secção do Economia dos Conflitos Sociais (aqui).

O ponto de partida foi a definição do capitalismo como um sistema contraditório, com permanentes desequilíbrios e desfasamentos. Nestas circunstâncias, a principal operação das formas pecuniárias vigentes no capitalismo, em que todas elas são reciprocamente convertíveis, consiste em homogeneizar desarmonias e colmatar hiatos, transformando as contradições qualitativas em gradações quantitativas. Para nos apercebermos das implicações desta operação, convém recordar que houve sociedades em que as formas pecuniárias não eram reciprocamente convertíveis, até porque veiculavam relações sociais imiscíveis e percorriam circuitos distintos. A função do dinheiro no capitalismo é específica deste sistema económico e não devemos transpô-la simplesmente para outros sistemas, nem proceder à operação inversa.

No âmago destes problemas reside a constatação de que «no capitalismo o dinheiro está sempre presente, porque sem ele não podem funcionar as defasagens» (pág. 257). É o dinheiro que «permite o funcionamento desequilibrado e imprevisível deste modo de produção» (pág. 241). Uma vez mais, pretendi deixar muito claro que esta função do dinheiro se restringe ao capitalismo, sem que possamos projectá-la para qualquer plano supra-histórico. «O dinheiro é — no capitalismo, e é dele só que aqui me ocupo — a condição para o funcionamento dos desequilíbrios, das defasagens e das imprevisíveis irregularidades» (pág. 240). Assim, sendo o dinheiro indispensável à operacionalidade dos desequilíbrios, não o considero uma ficção e recuso-me a reservar a classificação de real à parte não pecuniária da economia. Na perspectiva que defendo, o dinheiro é «precisamente a condição para que a economia possa funcionar e possa, portanto, ser real» (pág. 241). Aliás, a medalha tem um reverso. «Condição operacional das contradições, o dinheiro é por isso também um objecto das lutas sociais» (pág. 259).

O dinheiro não se circunscreve ao mercado, em transacções específicas e separadas umas das outras. «O significado do dinheiro não reside em cada um dos actos do seu emprego, mas precisamente nas variações que ocorrem de acto para acto. É nelas que o dinheiro cumpre a sua função prática» (pág. 241). Assim, se «na articulação entre a esfera monetária e a esfera dos valores, devemos raciocinar exclusivamente em termos de séries, e não de montantes», devemos também pressupor que essas séries são sempre inconstantes e desfasadas, o que significa que «o dinheiro não existe sobre os valores, mas na irregularidade das relações entre eles» (pág. 241). E o que sucede quando estas variações se precipitam em saltos bruscos e imprevisíveis? Então o dinheiro «é uma condição operacional adequada à existência de crises, tal como permite o funcionamento de todas as formas de defasagem e de irregularidade que caracterizam qualquer momento da vida económica» (pág. 240). Em suma, se diacronicamente o dinheiro no capitalismo serve, como Keynes definiu, para estabelecer um elo entre o presente e o futuro, ele cumpre esta função porque, sincronicamente, é a condição operacional dos desequilíbrios estruturais.

Antes de mais, o lugar crucial das operações do dinheiro no capitalismo é o desfasamento entre o tempo de trabalho incorporado no trabalhador e o tempo de trabalho que ele incorpora no produto. «[…] o dinheiro é uma condição operacional da luta dos capitalistas pela extorsão e apropriação da mais-valia. Sob este ponto de vista, a função fundamental do dinheiro consiste em dissimular no salário a existência de um tempo de trabalho não pago […] a negação de que o tempo de trabalho se cinda numa porção paga e em outra não paga é veiculada pela homogeneidade monetária do salário» (pág. 267). Sem esta operação de ocultamento da mais-valia, todas as outras funções do dinheiro no capitalismo são incompreensíveis e misteriosas. «O dinheiro é, em suma, o véu com que o capitalismo encobre a fundamental contradição da mais-valia» (pág. 268).

Mas a extorsão de mais-valia não é estática, porque a própria contradição social que ela implica, levando os trabalhadores a permanentes lutas e pressões para reduzir o grau de exploração, leva igualmente os capitalistas a recuperar os resultados desses conflitos em formas que lhes mantêm a aparência, mas reforçam a exploração. É este o mecanismo que tende a desenvolver a mais-valia relativa, mediante outra heterogeneidade que consiste, no interior dos mesmos limites horários, em multiplicar o trabalho simples para aumentar o trabalho complexo. Mas será possível classificar como simples um dado tipo de trabalho, de modo a adoptá-lo como padrão que permita quantificar o grau de complexidade de outros trabalhos? E como poderá isto ser feito, se um trabalho simples é qualitativamente distinto dos trabalhos complexos? Estas noções têm um conteúdo apenas aproximado, mas não deixam por isso de ser reais, porque servem de eixo à dinâmica económica e porque os trabalhadores as sentem nos músculos ou no cérebro. Ora, assim como a função fundamental do dinheiro consiste em dissimular no salário a clivagem da mais-valia, também aqui o dinheiro oculta no salário a diferença entre o trabalho simples e o complexo.

O processo de desenvolvimento da mais-valia relativa, pelas sucessivas exigências de remodelação tecnológica e de preparação da força de trabalho para a aquisição de novas qualificações, implica o crescimento da produtividade. Portanto, fica aqui pressuposto outro tipo de heterogeneidade, porque o aumento da produtividade leva necessariamente a uma dupla depreciação, tanto dos bens já produzidos como da força de trabalho cujas qualificações deixaram de interessar e que se revela incapaz de adquirir as novas qualificações. Afinal, é isto mesmo a destruição criativa de que falava Schumpeter. «Assim, os mesmos mecanismos que asseguram a criação exponencial de valor acarretam, ao mesmo tempo, perdas de valor. É por isso desprovida de fundamento a equivalência que Karl Marx tão frequentemente estabeleceu — embora ocasionalmente compreendesse também o contrário — entre o valor do output total e a soma total dos preços» (pág. 238). É este um dos meus principais argumentos contra a famigerada conversão dos valores em preços, que tanto iludiu Marx e, com ele, a corte dos discípulos. «[…] o que, nos termos de Karl Marx, constitui a problemática da “transformação dos valores em preços”, circunscreve-se, no modelo que aqui proponho, à passagem da esfera da extorsão da mais-valia para a esfera da sua repartição intercapitalista» (pág. 239). É uma ironia — triste ironia — que também Marx tivesse sido vítima da ilusão pecuniária, porque «a esfera dos valores não encontra expressão em qualquer sistema numérico homogéneo» (pág. 238). «Não é cada valor que se transforma em um preço; são as relações sociais determinantes dos valores que requerem o dinheiro, na forma dos preços, para poderem conjugar-se de maneira desequilibrada e defasada» (pág. 240).

A heterogeneidade intrínseca ao crescimento da produtividade tem ainda outras virtualidades, porque a produtividade pressupõe uma multiplicidade de processos distintos e simultâneos, de modo que as desvalorizações se verificam em ritmos diferentes e desfasados. Ora, ainda aqui o dinheiro é o articulador indispensável. Em termos muitíssimo simplificados, se o aumento da produtividade leva à diminuição do valor incorporado em cada um dos produtos e, por conseguinte, leva à redução do valor atribuído a produtos similares resultantes de estádios tecnológicos anteriores, então diminui igualmente o valor da força de trabalho que consome esses produtos. Mas este processo é obscurecido, e na aparência invertido, pelo carácter monetário do salário, expresso no seu montante nominal. «Enquanto se subordinarem ao quadro do assalariamento capitalista, os trabalhadores aceitarão o salário como dinheiro, sem referência directa aos valores para cuja aquisição constitui um título. A aceitação da forma salário implica a aceitação da sua homogeneidade e, portanto, a referência à esfera homogénea das unidades monetárias dos preços, e não à heterogeneidade de relações sociais contraditórias. O salário é dinheiro e, como dinheiro, não pode ser senão salário nominal» (pág. 269). Em suma, o salário nominal cobre a disparidade existente entre duas curvas, e «para compreendermos a inflação, não podemos reduzir-nos à curva que exprime a série dos preços, mas temos de observar sempre a sua evolução relativamente à curva que exprime a série dos tempos de trabalho incorporados nas unidades do output. Quando a diferença entre ambas as curvas consiste numa série crescente, existe inflação». E preveni que distinguia esta «inflação real» da «mera subida nominal dos preços» (pág. 270). Resumindo, o dinheiro oculta a crescente disparidade entre a curva do preço dos bens e a curva do valor, ou seja, do tempo de trabalho incorporado nesses bens.

Talvez nada revele melhor a degradação da crítica económica de tradição marxista do que a sistemática sujeição ao lugar-comum que reduz a inflação aos preços, esquecendo a subjacente produção de valores. «A inflação inverte o processo de diminuição do tempo de trabalho incorporado em cada unidade do output, apresentando-o como um processo de diminuição do montante de valor possível de adquirir com um dado título monetário; o declínio do valor das unidades do output é reflectido como um declínio das capacidades do dinheiro» (pág. 271). Assim, pretender lutar contra a inflação no plano estritamente pecuniário, por exemplo reivindicando a indexação dos salários aos preços, só contribui para reforçar o véu de ocultamento. «A inflação não é um fenómeno monetário; ela consiste na crescente defasagem entre a série dos preços e a série dos valores das unidades do output» (págs. 274-275). Depois deste percurso podemos entender melhor a função do dinheiro no capitalismo, transpondo para diferenças de quantidade as clivagens de qualidade. «O processo inflacionário tem […] como consequência ocultar a dinâmica da relação entre os salários recebidos pelos trabalhadores e o valor dos inputs que estes consomem — e é exactamente essa relação que constitui o cerne da mais-valia relativa. Por isso a inflação é uma condição operacional para o desenvolvimento deste tipo de exploração» (pág. 272).

A concepção do dinheiro como articulador dos antagonismos e das heterogeneidades sociais levou-me igualmente a encarar de outro modo os suportes da função pecuniária. «Se as relações sociais se estabelecem directamente, e não mediante mercadorias definidas como tal na esfera da circulação, então o dinheiro, como veículo operacional dos desequilíbrios, nem é expressão de mercadorias, nem ele próprio constitui uma mercadoria. Esta concepção está nos antípodas da seguida por Karl Marx» (pág. 242). E mais adiante insisti. «O dinheiro não é uma mercadoria, não tem valor, não tem preço» (pág. 283). Ficou assim colocada a questão do suporte pecuniário, e na sua resolução deixei explícitos vários traços do muito que entretanto já pesquisara para elaborar o Poder e Dinheiro, atribuindo à moeda metálica o mesmo estatuto simbólico do papel-moeda ou do dinheiro de crédito. Marx, pelo contrário, ao reduzir teoricamente o dinheiro ao metal precioso, assimilando uma forma económica ao seu suporte material, caíra num fetichismo que noutros lugares ele tanto havia criticado. Ora, na minha perspectiva só é relevante discutir o suporte da função pecuniária se considerarmos as circunstâncias associadas à evolução do capitalismo. «Quaisquer que sejam os seus tipos, o dinheiro no capitalismo adquire validade apenas porque e na medida em que se reproduz a actividade produtora de mais-valia» (pág. 244). É deste modo que devemos apreciar a importância relativa dos diferentes tipos de dinheiro. «Se concebemos, como proponho, que a mais-valia é previamente apropriada pelo conjunto dos capitalistas, para ser depois desigualmente distribuída entre eles e só finalmente apropriada por capitalistas ou grupos de capitalistas em particular, podemos então entender a importância do crédito e a variedade dos seus efeitos». Marx, porém, «alheio a qualquer modelo que globalize os capitalistas na apropriação da mais-valia, foi incapaz de elaborar uma teoria geral do crédito. As sociedades por acções são, junto com as operações de crédito propriamente ditas, elementos constitutivos dos sistemas financeiros e, assim, também escapou a Marx a importância das sociedades por acções […]» (pág. 244).

O relevo que conferi a este assunto levou-me a dedicar aos diferentes tipos de dinheiro o segundo capítulo da Quinta Secção do livro (aqui). «Se o dinheiro é a condição para o funcionamento de uma economia desequilibrada e rasgada por antagonismos, então a esfera monetária não é homogénea; a sua heterogeneidade permite a operacionalidade prática das contradições sociais […]» (pág. 247). É tão acentuada a diversidade de tipos pecuniários no capitalismo que qualquer deles necessariamente presume a existência dos restantes, mesmo quando não são visíveis. «Nenhuma das relações económicas contemporâneas em que não se vê circular dinheiro pode ser considerada como um caso de escambo. Trata-se apenas de uma forma física específica assumida por um ou outro tipo de dinheiro e caracterizada pela ausência de suporte material próprio e autónomo» (pág. 257). E quando a sua presença for reduzida à contabilidade, o dinheiro pode pressupor qualquer tipo de suporte. Aliás, já que no capitalismo as classes não se comportam como castas e existe mobilidade social, ascendente e descendente, «a condição operacional dessa mobilidade consiste na ausência de margens rígidas entre os vários tipos de títulos monetários» (pág. 262).

Neste contexto deparo com uma estranha omissão. Afirmei que «a exclusividade da emissão de dinheiro cabe, no seu conjunto, às classes capitalistas» (pág. 247), ou seja, na minha terminologia, cabe a uma articulação entre o Estado Restrito (as instituições de soberania oficiais) e o Estado Amplo (as empresas enquanto poder soberano). Aliás, a emissão pode ocorrer plenamente no âmbito do Estado Amplo, o que leva ao aparecimento de fricções entre as duas modalidades de Estado. Abordei extensamente o assunto neste segundo capítulo e ainda nalguns lugares do terceiro capítulo. Mas omiti os casos em que a emissão pecuniária é suspensa ou sofre uma hiperdepreciação que na prática a anula, e difunde-se então o recurso a formas alternativas de dinheiro devidas à iniciativa particular, deixando sem efeito o monopólio capitalista da emissão. A lacuna é ainda mais flagrante quando, em crítica às teses monetaristas, afirmei que «se as autoridades monetárias oficiais reduzissem a emissão de dinheiro contra os interesses dos capitalistas particulares, estes poderiam recorrer a um complexo de medidas que deixariam sem efeito as pretensões governamentais» (pág. 255), o que é indubitavelmente correcto, mas esqueci que as pessoas comuns podem também pôr em circulação formas para-monetárias. Ora, no artigo «O Dinheiro: da Reificação das Relações Sociais até o Fetichismo do Dinheiro» eu já havia tratado destes casos, o que me deixa perplexo com a lacuna.

Aliás, actualmente será necessário definir em que medida a invenção das criptomoedas amplia a possibilidade de emissões particulares e dispersas. Quando escrevi o Economia dos Conflitos Sociais estávamos ainda no século passado, não se sonhava sequer com criptomoedas, mas a forma como apresentei o dinheiro de crédito poderá talvez abrir um caminho. «A principal distinção entre as notas e o dinheiro de crédito resulta da emissão centralizada das primeiras, enquanto o outro é emitido descentralizadamente, por qualquer unidade económica, no decurso do seu funcionamento normal. […] A garantia de que o dinheiro assim emitido mantém a capacidade aquisitiva que lhe foi atribuída consiste unicamente na presumida continuidade das relações sociais vigentes […]» (pág. 251). E adiante sublinhei que «o dinheiro de crédito não é uma criação especificamente bancária» e «qualquer empresa, na sua actividade corrente, pode criar este tipo monetário» (pág. 253). Em suma, como resumi noutro capítulo, «a criação monetária é fácil, o que quer dizer que nem se emite dinheiro se para ele não há necessidade, nem deixa de se emitir quando se verificam pressões que o exigem» (pág. 273). Ajudará esta perspectiva a compreender as criptomoedas?

Se assim for, essa possível antecipação contrasta com uma flagrante miopia, porque estive à beira de conceber o dinheiro como linguagem, quando observei que «as formas ideológicas prevalecentes na sociedade contemporânea constituem, afinal, reflexões sobre o dinheiro». Logo em seguida evoquei um texto de Émile Benveniste, considerando que «Aristóteles, quando julgava ter definido as categorias do ser, procedera na verdade à análise das categorias na gramática grega», e com igual inspiração já Adam Smith, a propósito da filosofia de Platão, observara que «tal como muitas outras doutrinas filosóficas, parecia dever-se mais à natureza da linguagem do que à natureza das coisas» (pág. 268). É deveras espantoso que eu não tivesse extraído a conclusão imediata — que o dinheiro funciona como uma linguagem. Por que motivo os pequenos passos são tantas vezes os mais difíceis?

Nota: Nas citações dos meus textos publicados no Brasil ajustei a ortografia ao uso português anterior ao actual acordo ortográfico.

O leitor interessado pode encontrar aqui o primeiro capítulo, o segundo capítulo, o quarto capítulo, o quinto capítulo, o sexto capítulo, o sétimo capítulo, o oitavo capítulo e o nono capítulo.

3 COMENTÁRIOS

  1. Duas afirmações no Economia dos conflitos sociais, que bem a calhar foram citadas, sempre me deixaram desconcertado: “a esfera dos valores não encontra expressão em qualquer sistema numérico homogéneo”; e “na articulação entre a esfera monetária e a esfera dos valores, devemos raciocinar exclusivamente em termos de séries, e não de montantes”.

    Estas afirmações remete à famosa “transformação dos valores em preços”, problema posto por Marx que ocupou a cabeça de muitos economistas importantes do fim do século XIX (Eugene von Böhm-Bawerk) e de todo o século XX (Ladislaus von Bortkiewicz, Piero Sraffa, Paul Samuelson, Gayle Southworth, Abba Lerner, Ian Steedman, William Baumol, Alain Lipietz, Duncan Foley, Gérard Duménil, Isaak Rubin, etc.).

    (Para os que não se interessam pelo “diabo da Economia”, um bom resumo do debate pode ser encontrado aqui, aqui, aqui e aqui).

    João Bernardo entra neste debate de modo senão inédito, no mínimo desconcertante. Aliás, ainda lá atrás quando li a quinta seção do Economia dos conflitos sociais pela primeira vez, meu cérebro começou a fritar, pois a partir desta afirmação abrem-se várias linhas de interpretação.

    Uma delas é a de que, não sendo o tempo de trabalho expresso em preços, está rompida a ligação entre tempo de trabalho e valor. Consequentemente, está sem fundamento a teoria do valor-trabalho, pois, para a validade da teoria do valor-trabalho, não existe valor que não seja decorrente do trabalho (Smith) ou do tempo de trabalho (Marx). Em suma: ∄valor(valor≠trabalho) ∵ valor=trabalho.

    Não é este o caso aqui. Também na Economia dos conflitos sociais se afirma que o valor é tempo de trabalho incorporado a um dado input, resultando em certos outputs onde este tempo de trabalho é incorporado. Portanto, permanece válida a teoria do valor-trabalho no âmbito da obra, validade reforçada nesta série de artigos.

    Mas se a esfera dos valores “não encontra expressão em qualquer sistema numérico homogéneo”, ficará por acaso implícito que o valor não é matematicamente mensurável? Se não é mensurável, não serve como medida. É mais ou menos a esta conclusão que chegou Cornelius Castoriadis, contra quem não se pode levantar a acusação de desconhecer os mais complexos avanços da matemática no século XX.

    Novamente, não é este o caso. Para quem pulou as aulas de matemática, se entendermos “sistema numérico homogéneo” pela forma como aprendemos nas aulas de álgebra do ensino médio brasileiro (ou seja, como sistema linear homogêneo), o que está dito não é que o valor não é matematicamente mensurável, mas sim uma entre as duas alternativas: (a) a esfera dos valores só pode encontrar expressão num sistema dinâmico não linear, de natureza instável e aperiódica, mas perfeitamente determinável; (b) a esfera dos valores só pode encontrar expressão num sistema aleatório em sentido estrito, indeterminado, reconstruído somente por meio de processos estocásticos.

    Daí a necessidade de raciocinar “exclusivamente em termos de séries, e não de montantes”. Só inserindo o fator tempo (que as séries matemáticas prescindem, mas séries de preços e valores não) é possível lidar com sistemas dinâmicos não lineares ou sistemas aleatórios.

    Este é um largo distanciamento do problema colocado por Marx, que o concebeu em termos de transformações lineares. E é bom que assim o seja.

    Embora Marx (e também Engels) estivessem a par do debate científico de seu tempo, foi só em 1877 que Ludwig Boltzmann apresentou a definição matemática da entropia; os primeiros trabalhos de Aleksandr Lyapunov só foram publicados em 1884; as obras de Henri Poincaré sobre o problema dos três corpos e sobre o comportamento de soluções foram publicadas entre 1892 e 1910; enfim, apesar do entusiasmo e interesse de Marx (e também de Engels) por ciências naturais e matemática, nem o próprio Marx estava a par destes avanços ao ponto de incorporar a matemática a eles subjacente às suas próprias teorias (cf. os famosos manuscritos matemáticos de Marx), nem Engels parecia muito inteirado destes avanços além de certas discussões ainda superficiais (cf. Dialética da Natureza e alguma correspondência privada sobre a segunda lei da termodinâmica).

    Teria mais a dizer sobre o assunto, inclusive algumas coisas que me tiram o sono no tratamento “não homogêneo” do problema da transformação dos valores em preços, mas o comentário já está longo o suficiente.

  2. Muito interessante o livro apresentado por Anarco-aceleracionista. Ainda não li nada dele além da introdução, mas, pelo que entendi, parte do mesmo problema e do mesmo ponto de partida indicados aqui. Obrigado por compartilhar!

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