Finance symbols of stock market

Por João Bernardo

6

Afirma-se com frequência nos estudos económicos que a função dos preços é a transmissão de informações. Ora, daqui até à noção dos preços como elementos de uma linguagem medeia um passo pequeníssimo, mas que raramente é dado, porque implicaria consequências porventura incómodas.

Neste ensaio limitei-me até agora a remeter para a definição do dinheiro enquanto linguagem, sem praticamente nunca a ter desenvolvido e desdobrado nas suas virtualidades, e se na quarta parte do manifesto Sobre a esquerda e as esquerdas (aqui) escrevi que «do estruturalismo linguístico podem extrair-se lições teóricas proveitosas para o estudo dos fenómenos pecuniários», não explicitei nenhuma dessas lições. Avancei um pouco no artigo Capital fictício? (aqui), quando considerei que «as articulações entre unidades mínimas de som e entre unidades mínimas de significado, critério indispensável para a definição de linguagem, são transpostas no dinheiro para a articulação entre unidades pecuniárias no interior de sistemas pecuniários». Porém, a partir daqui outros problemas surgem, porque não basta definir o dinheiro como linguagem. O movimento inverso torna-se também necessário e devemos partir do campo linguístico para reinterpretar o dinheiro. É o que tentarei em seguida, prosseguindo uma reflexão que, afinal, deixara só esboçada.

Cada um de nós nasce sem saber falar e, no entanto, a linguagem é-nos natural e distingue-nos. Homero caracterizou os seres humanos como aqueles que articulam a voz, o que inevitavelmente me lembra uma passagem do Faust. Li algures, não sei onde, que Gœthe, já bastante idoso, dissera que não lhe agradava reler aquela sua obra-prima, excepto na tradução de Gérard de Nerval. Então, vejamos essas linhas do drama transpostas pelo genial poeta francês. «Il est écrit: Au commencement était le verbe! Ici, je m’arrête déjà! Qui me soutiendra plus loin? Il m’est impossible d’estimer assez ce mot, le verbe! il faut que je le traduise autrement, si l’esprit daigne m’éclairer. Il est écrit: Au commencement était l’esprit! Réfléchissons bien sur cette première ligne, et que la plume ne se hâte pas trop! Est-ce bien l’esprit qui crée et conserve tout? Il devrait y avoir: Au commencement était la force! Cependant, tout en écrivant ceci, quelque chose me dit que je ne dois pas m’arrêter à ce sens. L’esprit m’éclaire enfin! L’inspiration descend sur moi, et j’écris consolé: Au commencement était l’action!». (Quem não souber francês encontra esta passagem aqui, na pág. 103 da tradução publicada por António Feliciano de Castilho em 1872 e que suscitou uma enorme polémica.) Passar do verbo, a palavra, para a acção, não é apenas a expressão concentrada do romantismo. É uma reflexão profunda sobre aquilo a que a linguagem se destina.

Mas como se passa do verbo para a acção? A linguagem não nasceu como uma soma de palavras isoladas, resultantes de iniciativas individuais, que depois se foram organizando e articulando em conjuntos, progressivamente unificados. A linguagem é desde início social e gerada socialmente. Enquanto sistema convencional de signos convencionais, a linguagem não pode deixar de ser social, porque só a sociedade estabelece convenções, que pressupõem redes estáveis de relações entre indivíduos. Embora a sua utilização seja individual, a linguagem é estritamente social e, aliás, ela constitui a condição de articulação da estrutura social.

A denominação, que é passiva, é um simples corolário desse carácter fundamentalmente social, que tem na frase a sua expressão originária. Na génese da linguagem não estão palavras isoladas, mas frases. O dicionário é um acessório da gramática. Depois de resumir os conhecimentos actuais sobre as origens fisiológicas da fala, Christopher Ehret observou que «por si só, a aptidão para emitir qualquer tipo de sons vocais não transforma a comunicação. A capacidade sintáxica é o complemento essencial» («Early Humans: Tools, Language, and Culture», em The Cambridge World History, Cambridge: Cambridge University Press, 2015, vol. I, pág. 345). A génese social da linguagem fê-la nascer como sintaxe. As palavras foram geradas em relação recíproca.

Se consideramos a realidade material e social interligada numa estrutura unificada, isto deve-se ao facto de a própria linguagem consistir num sistema de inter-relações. Tal como Kant escreveu, «de todas as noções mentais, a da conjunção é a única que não pode ser dada pelos objectos, podendo ser gerada apenas pelo próprio sujeito» (apud Ernst Cassirer, The Philosophy of Symbolic Forms, 3 vols., New Haven e Londres, Yale University Press, 1955, 1957, vol. I, pág. 161). E Einstein afirmou o mesmo quando observou que «a ciência é a tentativa de fazer com que a caótica diversidade das nossas experiências sensoriais corresponda a um sistema de pensamento logicamente uniforme» (apud Bruce Gregory, Inventing Reality, Nova Iorque: Wiley, 1988, pág. 143). É a estrutura da linguagem que nos oferece a inspiração para a noção de combinação ou de uniformidade. A sintaxe é o modelo do universo.

Ora, como não é possível nenhuma percepção sensorial sem ser formulada em palavras nem nenhuma visão integrada que não esteja modelada pela sintaxe, a linguagem é sempre o filtro e o écran de todas sensações e percepções. Sem a linguagem, a realidade material seria um caos. Só vemos as coisas através das palavras que as designam, e quando descobrimos uma coisa ou a inventamos, atribuímos-lhe uma palavra. E as relações que estabelecemos entre as coisas são as relações imbuídas na sintaxe. A linguagem, no sentido corrente do termo, tem uma ilimitada capacidade expansiva. Ela cobre todo o universo, e o que lhe escapa tem o estatuto da coisa em si kantiana, ou seja, algo que para nós não existe. Quando as sucessivas correntes científicas foram desvendando a realidade que hoje conhecemos, não o poderiam fazer se para isso não tivessem inventado linguagens próprias. Em suma, a realidade que nós vemos, só através da linguagem a vemos. E como não se pode pensar sem a linguagem, então ela não é um objecto específico, mas uma forma geral. Um céptico, num momento de desalento, quando exclama que uma dada realidade não é senão a palavra que a designa, está a reconhecer a função da linguagem como écran, inelutável utensílio da nossa percepção e imaginação.

O empirismo estrito é quimérico, porque diria apenas respeito a imagens, recebidas pelas sensações. Não é desse modo que nós pensamos, mas com conceitos representados por símbolos. A articulação entre imagens e símbolos corresponde à articulação entre a realidade material e a linguagem, ou seja, corresponde à noção que a linguagem nos oferece da realidade material. Ora, as palavras, enquanto elementos componentes da linguagem, abstraem as diferenças empíricas. Na parábola filosófica Funes el memorioso, Jorge Luis Borges contou a história de Funes, que «não só recordava cada folha de cada árvore de cada mata, mas também cada uma das vezes que a tinha visto ou imaginado». Funes «era quase incapaz de ter ideias gerais, platónicas. Não só lhe era difícil compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares, de diversos tamanhos e diversa forma, mas incomodava-o o facto de que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e um quarto (visto de frente)». Esta vítima da singularidade da memória «era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso». E como é através das palavras que nós unificamos num quadro geral a realidade empírica diferenciada, Borges acrescentou, referindo-se a Funes, que «suspeito, no entanto, que não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No tumultuoso mundo de Funes havia apenas detalhes, quase imediatos». O vaivém da denominação é uma operação de abstracção.

Convém aqui lembrar que Faust, que começara por escrever «o verbo», terminou escrevendo «a acção». Com efeito, a formação da linguagem não ocorreu consoante um percurso em sentido único, só das sensações para os símbolos, porque a linguagem serve, por seu turno, para planificar a acção prática, que modifica a realidade material, indo, portanto, dos símbolos para as sensações ou para aquilo que as suscita. A linguagem como relato é indissociável da linguagem como instrumento. Neste sentido, a linguagem é formadora do mundo, ela estabelece o quadro mental em que se define uma orientação para mudar o mundo. Uma invenção que altere a realidade subjacente é, antes de mais, a invenção de uma linguagem que se há-de materializar, e é através dessa linguagem que ela se irá materializar.

Criação social, a linguagem é um instrumento que serve para executar as funções requeridas nas sociedades em que se desenvolve. Se as mãos e o cérebro estão intimamente ligados, então a linguagem é um utensílio de ambos. As mãos transformam em operacional uma linguagem que sem elas seria apenas conceitual. E de novo recordo Funes el memorioso, porque Funes, que não concebe as abstracções, é inerte e incapaz de actuar, «tinha-o derrubado um cavalo bravo na fazenda de São Francisco e ficara paralítico, sem esperança». E assim permaneceu Funes, «imóvel, de olhos fechados». Enquanto instrumento, a linguagem tem sempre de ser avaliada em função das operações a que se destina, por isso cada linguagem é uma expressão da sociedade que a criou e permanentemente a remodela.

A acção que tem na linguagem o seu instrumento é uma acção em comum, não individual. O objectivo fundamental da linguagem não é o de denominar. A linguagem é um instrumento colectivo, destinado a combinar e planificar acções colectivas, projectadas no futuro. No capítulo que citei há pouco, Ehret escreveu que «a posse de uma linguagem plenamente sintáxica elevou a uma nova escala as capacidades de cooperação social» (pág. 346), e Colin Renfrew deu exemplos flagrantes quando mencionou os colossais monumentos megalíticos edificados por grupos humanos até então desprovidos de qualquer coordenação social conjunta, e que a partir daí começaram a cooperar em âmbitos mais abrangentes, incluindo na esfera económica. Nestes casos, «em vez de reflectirem uma ordem social pré-existente, contribuíram para o aparecimento dessa ordem» (Prehistory, Londres: The Folio Society, 2013, pág. 144). Ao invés do previsto no modelo marxista corrente, a superestrutura, em que esses monumentos megalíticos se incluiriam devido ao seu carácter religioso, teria determinado uma infra-estrutura económica. Ora, a linguagem constituíra ali o factor de articulação dominante, não só por ter permitido uma colaboração em vasta escala, mas ainda porque o carácter estritamente simbólico daqueles monumentos os insere também no âmbito da linguagem.

Enquanto instrumento de uma actividade prosseguida em comum, a linguagem necessariamente subordina o seu carácter descritivo à projecção de um futuro. Mas ela não se limita a constituir o quadro mental de uma previsão, pois é igualmente o quadro organizativo para realizar essa previsão. Por isso nasce como instrumento de relações planificadas no tempo. A sintaxe, por formas variadas consoante as línguas, é construída em torno de eixos temporais, o que significa que a linguagem é fundamentalmente activa. Aliás, é sugestivo que os gramáticos clássicos chineses chamassem aos verbos palavras vivas, por oposição aos substantivos, classificados como palavras mortas. Mas note-se que em muitas línguas, se não na maior parte, a distinção entre verbos e substantivos é fluida, e a noção do decurso temporal é dada de outras maneiras. O que importa aqui sublinhar é que a linguagem, enquanto sintaxe, e portanto enquanto instrumento, se projecta no tempo. Por este viés podemos entendê-la como quadro genérico das formas pecuniárias, que também existem para reproduzir acções no tempo.

Antes de mais, a articulação dos fonemas, ou unidades mínimas de som, em palavras, consideradas como unidades mínimas de significado, e a articulação das palavras em conjuntos sintáxicos, capazes de conceber a realidade e de planificar acções colectivas, podem ser transpostas para o dinheiro como uma articulação entre suportes materiais, mentais ou virtuais na formação de um signo pecuniário, equivalente à combinação de fonemas numa palavra, e outra articulação entre os signos pecuniários, cuja conjugação numa função monetária equivale à combinação dinâmica das palavras na sintaxe.

É curioso que na sua grande obra Georg Simmel se tivesse aproximado várias vezes da definição do dinheiro como linguagem, mas sem pronunciar a palavra. «A projecção de meras relações em objectos particulares é uma das grandes proezas da mente», considerou ele. «A capacidade de elaborar esses objectos simbólicos atinge o seu máximo expoente no dinheiro» (The Philosophy of Money, Londres e Nova Iorque: Routledge, 1990, pág. 129). O dinheiro é estritamente simbólico, pois «o que é essencial no dinheiro são as ideias nele incorporadas» (pág. 198), e assim, exprimindo relações, o dinheiro possui uma sintaxe própria. «O dinheiro é […] uma dessas ideias normativas que obedecem às normas que elas próprias representam» (pág. 122). Afinal, tal como qualquer linguagem, «o dinheiro, seja o que for que o represente, não tem uma função, mas é uma função» (pág. 169, sub. orig.). Só perto do final do livro Simmel afirmou, embora com restrições, que «em alguns aspectos, o dinheiro pode ser comparado à linguagem […]» (pág. 470).

Providos de uma função, os circuitos pecuniários podem tornar-se cada vez mais complexos e as suas regras não são menos organizativas nem menos exactas do que as da sintaxe. Todavia, se a nossa linguagem não se converte directamente nos resultados da nossa acção, embora sem ela esses resultados não ocorressem, o mesmo sucede com a linguagem pecuniária na vida económica. Enquanto linguagem, o dinheiro é uma condição indispensável de articulações económicas e sociais, é um mediador e um instrumento, que não só exprime, mas também serve para. Trata-se de uma linguagem que permite verificar e corrigir o jogo económico das instituições sociais, e recordarei no último capítulo deste ensaio que ao mesmo tempo o dinheiro permite também dissimular as contradições da economia.

Mas o dinheiro varia consoante as sociedades, e cada estrutura social, para se articular, requer uma dada forma de dinheiro. Se, como Norbert Wiener escreveu, «a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das mensagens e dos recursos de comunicação que lhe correspondem» (The Human Usage of Human Beings, s. l.: Da Capo, 1988, pág. 16), não é então o dinheiro um veículo de mensagens e um articulador de comunicações? Nos diferentes sistemas económicos e sociais pré-capitalistas a função articuladora do dinheiro pôde operar-se tanto mediante o mercado como directamente no plano estrito das relações sociais. É pela sua função que o dinheiro genericamente se define, e não pelo lugar que ocupa nem pelo âmbito da sua circulação.

Do mesmo modo, se compararmos as várias sociedades pré-capitalistas verificamos que a existência de dinheiro não decorria de qualquer tipo peculiar de suporte material, e o dinheiro tanto podia apoiar-se em bens de luxo ou de uso corrente, os quais eventualmente transitavam entre a função pecuniária e outras funções, como podia apoiar-se em formas intencionalmente degeneradas desses bens que, portanto, começavam assim a assumir uma especificidade pecuniária, ou podia ainda apoiar-se em formas estritamente simbólicas e desde início destinadas à função de dinheiro. O dinheiro podia até prescindir de qualquer suporte material, como sucedia com o seu uso na contabilidade. Aliás, em algumas sociedades talvez o dinheiro contabilístico fosse a modalidade originária, porque as primeiras formas de escrita nasceram com a função de registos de contabilidade. Os Incas foram um caso extremo porque, desprovidos de escrita, tinham nos quipus um sistema complexo de registo exclusivamente numérico.

Assim, se não confundirmos o dinheiro com o lugar e o âmbito da sua circulação nem com o seu suporte, podemos proceder ao estudo integrado das formas pecuniárias em diferentes sistemas económicos e compreendemos que não é pelo facto de um dado sistema desaparecer que o dinheiro deixa de vigorar. Apenas muda de funções, e eventualmente adquire outra fisionomia e novos suportes ou se desloca para outros âmbitos de circulação. Para procedermos ao estudo comparativo da diversidade de funções do dinheiro nos vários sistemas económico-sociais basta o uso conjugado de dois critérios — os circuitos e os suportes.

Do mesmo modo que a linguagem esteve e está presente em todas as sociedades, que sem ela não podiam nem podem articular-se, também o dinheiro não pressupõe nem implica um sistema único. As palavras e a sintaxe mudam e as suas representações do mundo alteram-se tanto como o mundo se altera, tal como mudam os suportes monetários e os percursos e o escopo da sua circulação e mudam as formas como o dinheiro exerce as funções de articulador. Mas, se assim é, por que houve sociedades sem dinheiro, se não as houve nunca sem linguagem? Ou será que faltam conhecimentos aos antropólogos em vez de faltar dinheiro a algumas sociedades? Os sistemas de troca de dons exigem necessariamente critérios de avaliação, ainda que rudimentares, e desde que haja armazenamento de bens, nomeadamente de cereais, tem de haver registos. Ora, ambas estas situações implicam a existência de unidades de contagem.

No ponto de fuga daquela perspectiva histórica que elege a antropologia como ponto de vista, há quem pretenda que numa futura sociedade ideal os bens e serviços necessários seriam produzidos em quantidade suficiente e sem dilações, de modo que cada indivíduo teria de imediato acesso a tudo o que precisasse e, portanto, o dinheiro seria inútil. Mesmo reduzindo arbitrariamente o dinheiro à mera função de repartir a escassez, a falácia aqui consiste em imaginar que as necessidades individuais ou sociais possam ser estabelecidas definitivamente a priori, quando, pelo contrário, a efectivação das necessidades se desdobra sempre em novos anseios, ocorrendo uma ininterrupta imaginação e realização no tempo. O que nos distingue das formigas ou das abelhas ou de quaisquer outros animais é a existência de uma História, e a História não é mais do que a construção de novas necessidades a partir de necessidades já efectivadas. Enquanto linguagem projectada no tempo, o dinheiro não se torna desnecessário.

Considerado o dinheiro nesta perspectiva, como linguagem e na multiplicidade das suas formas, o que há de novo no capitalismo não é a relação obrigatória entre os mercados e o dinheiro — num só sentido, porque a relação não é obrigatória entre o dinheiro e os mercados. É que o dinheiro, incluindo o denominado quase-dinheiro, embora se diferencie em modalidades cada vez mais amplas, classificadas tecnicamente de M1 a M5 e distinguíveis pela maior ou menor facilidade com que se convertem umas nas outras ou em bens e serviços, move-se num circuito único ou, se cada modalidade obedecer a circuitos distintos, estes inserem-se num circuito genérico, abarcando toda a população e todos os estratos sociais. Essa possibilidade de todas as formas pecuniárias poderem ser expressas na forma mais ampla e em última instância se inserirem numa esfera de circulação única é uma marca distintiva do capitalismo.

Nos sistemas pré-capitalistas um tipo de dinheiro baseado num dado tipo de suporte não circulava num circuito onde outro tipo de suporte sustentava outro tipo de dinheiro. Mas no capitalismo o dinheiro levou a um grau sem precedentes a independência relativamente ao seu suporte. Embora certos suportes possam ser excluídos de alguns circuitos pecuniários, como todos os circuitos se unificam num circuito único, na sua dimensão mais ampla prevalece a independência do dinheiro relativamente ao suporte, que pode ser apenas fiduciário, como sucede com as notas de banco, tornando-se até cada vez mais comuns os casos em que o dinheiro prescinde de qualquer suporte material não só mediante a renovação de antigas formas de dinheiro contabilístico, mas também mediante o recurso a processos electrónicos, desde os desencadeados pela colocação de cartões magnéticos em máquinas especiais até às criptomoedas. Aliás, a emissão e circulação de criptomoedas levanta problemas novos, que seria conveniente analisar num capítulo próprio, mas não possuo os conhecimentos técnicos necessários para discorrer com segurança sobre o assunto. Uma vez mais este ensaio parece uma Via Crucis de lacunas.

Não é sem ironia que podemos ler hoje o que Simmel escreveu há mais de um século acerca dos suportes da função pecuniária que, na sua opinião, embora tendessem a tornar-se independentes do respectivo valor, nunca conseguiriam atingir tal objectivo. Simmel reconhecia que «mesmo o objecto mais útil tem de prescindir da sua utilidade para funcionar como dinheiro» (pág. 152), mas considerava que essa renúncia seria, por si mesma, uma fonte de valor, que ele entendia numa acepção estritamente psicológica. «É sem dúvida exacto que os outros valores da substância da moeda têm de ser rejeitados para que essa substância se converta em dinheiro; mas o valor que o dinheiro possui, e lhe permite desempenhar a sua função, pode ser determinado por aqueles outros usos possíveis que têm de ser dispensados. […] Em vez de a renúncia aos outros usos reduzir o valor do metal empregue para dinheiro ao de um material praticamente irrelevante, esses usos não efectivados do material contribuem em grande medida para o valor do dinheiro» (pág. 155). Além deste factor psicológico, haveria ainda um obstáculo institucional, porque «embora, em princípio, a função de troca que cabe ao dinheiro possa ser cumprida por dinheiro meramente simbólico, nenhuma potência humana é capaz de proporcionar suficientes garantias que impeçam usos impróprios» (pág. 159). Em suma, «o dinheiro não pode dispensar um resíduo de valor material […]» (pág. 158). E assim «não é viável tecnicamente executar o que é conceptualmente correcto, ou seja, transformar a função monetária num dinheiro puramente simbólico e separá-la completamente de qualquer valor substancial que limite a quantidade de dinheiro, ainda que o progresso real do dinheiro leve a crer que seja este o resultado final» (pág. 165). Mais adiante, depois de recordar vários casos de depreciação de materiais usados como suporte pecuniário, Simmel considerou que «a continuação desta tendência parece pressupor como seu objectivo a completa eliminação da base material do dinheiro». Mas, tal como na caminhada de São Cristóvão, o horizonte sempre fugia, porque «ainda que um dinheiro sem valor intrínseco possa ser o melhor meio de troca numa ordem social ideal, até lá chegarmos a forma mais satisfatória de dinheiro deve ser a que está vinculada a uma substância material. Esta situação não pressupõe qualquer desvio da tendência persistente no sentido da transformação do dinheiro num representante puramente simbólico da sua função essencial» (pág. 191). A segunda edição da obra data de 1907, e afinal os obstáculos que, na opinião de Simmel, impediriam que o dinheiro se reduzisse completamente a uma forma simbólica em nada estorvaram essa inelutável evolução.

No entanto, já num ensaio de 1752 David Hume escrevera que «o dinheiro não é, a bem dizer, um dos objectos do comércio, mas só o instrumento, com que os homens se puseram de acordo para facilitar a troca de uma mercadoria por outra. Não é uma das rodas do negócio; é o lubrificante que torna o movimento das rodas mais suave e cómodo» («Of Money», em A. A. Walters (org.) Money and Banking, Harmondsworth: Penguin, 1973, pág. 25). E insistiu. «É, com efeito, evidente que o dinheiro não é senão a representação do trabalho e das mercadorias, e serve apenas como meio de as classificar ou avaliar» (pág. 28). Mas, infelizmente, o que há quase trezentos anos parecia evidente para o notável filósofo ainda hoje não o é para muita gente.

O valor atribuído ao dinheiro no capitalismo nunca decorreu de qualquer material, mas apenas do facto de a sociedade o aceitar, tal como as palavras não precisam de ser escritas em pedra para ser aceites por todos os que as ouvem. Aliás, numa perspectiva histórica, a evolução dos suportes pecuniários no capitalismo mostra que o valor intrínseco das cunhagens do ouro e da prata ou das emissões convertíveis a estes metais era meramente psicológico, uma concessão a um fetiche tranquilizador. Foi a criação de sociedades por acções e de bolsas de valores e a emissão bancária de dinheiro, e não a detenção de minas de metais preciosos, que assegurou a prosperidade dos países onde se gerou o capitalismo moderno. É certo que a renovação do sistema bancário e financeiro antecedeu o primeiro surto do capitalismo industrial, mas isto significa que a nova economia necessitava de uma linguagem prévia que a concebesse e articulasse. O único efeito do uso de metal precioso como suporte pecuniário era o de contribuir para limitar o volume da emissão de dinheiro em função da capacidade de extracção das minas, o que equivalia a um mecanismo anti-inflacionário. Quando o aumento da produtividade e a ampliação dos mercados exigiu a flexibilidade dos suportes pecuniários, os requisitos de reservas metálicas nos bancos emissores de notas foram progressivamente diminuindo, até que por fim as moedas de ouro e de prata acabaram nos museus. Só assim se conseguiu a expansão pecuniária indispensável ao desenvolvimento económico. Em suma, o que quer que a quase totalidade das pessoas daquela época pensasse — e o que quer que pensem hoje todos os que se mantêm presos a concepções antiquadas — o valor atribuído às moedas de ouro ou prata não resultava do suporte, mas era, como continua a ser, estritamente simbólico, dependendo de uma convenção estabelecida na sociedade.

Nesta perspectiva, a fatalidade de John Law foi ter tentado aplicar o novo modelo bancário e financeiro, incluindo o papel-moeda, num país como a França daquela época, com instituições políticas disfuncionais e uma economia de base agrícola que, portanto, estava condenada a uma taxa de crescimento muito lenta. Meio século depois, Francisco Cabarrús foi vítima do mesmo dilema em Espanha. A linguagem articuladora da nova economia só podia aplicar-se aos gérmenes dessa nova economia, e não a restos moribundos do sistema pré-capitalista.

Posta assim a questão, os critérios da linguagem permitir-me-ão em seguida analisar melhor tanto a função instrumental do dinheiro (capítulo 7) e a sua projecção no tempo (capítulo 8) como o seu carácter dissimulador (capítulo 9).

O leitor interessado pode encontrar aqui o primeiro capítulo, o segundo capítulo, o terceiro capítulo, o quarto capítulo, o quinto capítulo, o sétimo capítulo, o oitavo capítulo e o nono capítulo.

2 COMENTÁRIOS

  1. Uma crítica possível à exposição da formação da linguagem aqui exposta é a distinção entre signo e símbolo, que no texto aparecem quase como sinônimos quando só o são num vocabulário menos técnico, como foi o de Borges no Funes.

    Signo é um significante com contornos muito bem definidos e precisos, como quando se usa “árvore” para designar estritamente o objeto vegetal formado por raiz, tronco, galhos, folhas, flores e eventualmente frutos. Símbolo, por sua vez, é um significante que suporta tanto o significado literal, porque evidente por si só, quanto um sem-número de evocações, relações implícitas, imagens, etc., como quando se usa “árvore” para evocar “natureza”, “fertilidade”, “família” (via “árvore genealógica”), etc.

    Signos e símbolos têm a mesma plasticidade, podendo ser pictóricos, gestuais, sonoros, etc.; um mesmo objeto pode ser interpretado tanto como signo quanto como símbolo, a depender do contexto; entretanto, como signo, um significante tem significado bem preciso e delimitado, ocorrendo o inverso ao ser lido como símbolo, quando o significante remonta a significados além da estrita literalidade.

    Esta distinção entre signo e símbolo, fui buscá-la no Dicionário de símbolos organizado por Jean Chevalier e Alain Gheebrant (35ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2021). Por esta definição, especialmente quando se trata de linguagem conceitual, que por definição exige rigor e precisão, está a se falar de signos, não de símbolos. Frege, ao discorrer sobre a necessidade de concisão para a construção de uma conceitografia a partir de sinais gráficos, diz quase o mesmo (cf. Sobre a justificação científica de uma conceitografia – Os fundamentos da aritmética. São Paulo: Abril, 1983). Inversamente, se recorrermos a certos filósofos que buscam reconstruir as origens da linguagem com base em achados arqueológicos (p. ex., Tran Duc Thao, Estudos sobre a origem da consciência e da linguagem. Lisboa: Estampa, 1974), o gesto, significante altamente simbólico, precede o tipo de convenção consciente necessária à formação de um signo.

    No sentido que apresento, o símbolo tem quase o mesmo significado atribuído à alegoria, embora a alegoria seja uma espécie de simbolização e, sendo figura de linguagem, pressuponha a própria existência de linguagem da qual é figura, não o contrário.

    Claro, este é um aspecto conceitual bastante marginal ao ensaio, porque estritamente técnico e sem capacidade de interferir no núcleo do argumento: o dinheiro, pelo argumento do ensaio, seguindo a linha da conceituação do dinheiro como símbolo anunciada por Georg Simmel, pode ser concebido como signo monetário e como símbolo de relações sociais outras (usando a distinção signo/símbolo que apresentei). Simmel, aliás, orbitou nos mesmos círculos da intelectualidade berlinense (Tönnies, Weber, etc.) em que a distinção entre signo e símbolo, tal como a apresento, foi primeiramente enunciada. Mesmo assim, o flanco está aberto, e é necessário apontar a brecha antes do ataque.

    Já que falei em Simmel, abro outro comentário marginal: volta a me surpreender a afindade com os neokantianos (Simmel, Cassirer) e sua centralidade para alguns argumentos do ensaio. É questão recorrente em sua obra inteira. A tendência kantiana no cerne de certos argumentos deste ensaio já vem delineada no prefácio ao Marx Crítico de Marx:

    “É sem dúvida por isso que ao longo deste livro oscilo pendularmente entre os dois grandes filósofos no meio dos quais Marx situou o seu sistema: Kant e Hegel. […] Relendo as páginas que se seguem, verifiquei que trato sempre com maior simpatia as correntes hegelianas do marxismo do que as kantianas; no entanto, quando cito ou invoco os escritores marxistas de tendência hegeliana, ou quando utilizo eu próprio formulações de conotação hegelianizante, faço-o sempre para chegar a conclusões que se aproximam do terreno de Kant. Creio ser esta a forma peculiar por que o presente livro oscila entre os dois autores. Será ocioso tentar definir aqui as razões desta forma de oscilação, nem tãopouco o saberia fazer. […] Aliás, se todo o marxismo pode oscilar entre Kant e Hegel, isso deve-se ao facto de ambos responderem, embora de maneiras bem distintas, a um campo de problemas materiais que lhes era comum e que, numa parte considerável, é ainda aquele sobre que hoje vivemos.”

    O que mais me deixa abismado neste ensaio (também nele, na verdade) é a capacidade de um raciocínio de fundo kantiano sempre, invariavelmente, apresentar-se na forma escrita com o mais rigoroso sentido dialético, no sentido mais fortemente hegeliano do termo, levando o leitor a percorrer argumentos e conceitos profundamente historicizados e interdependentes, que se desenvolvem uns a partir dos outros quase como que por necessidade lógica. Quem sabe algum dia paro de me maravilhar. Por enquanto, me contento em viver mais uma vez meu recorrente espanto.

    Outro comentário, mais longo e bem lateral. Só é correto afirmar que eram “desprovidos de escrita” os habitantes do Império das Quatro Partes (ou seja, os súditos do inca) se não levarmos em conta os estudos mais recentes de Gary Urton, que infere, a partir de extenso banco de dados de quipus de todo tipo e tamanho, existir não apenas números nos quipus, mas também significantes logográficos, registrados por meio da combinação de cores e nós específicos. É sempre difícil recompor a história pré-colombiana com base nos parcos materiais de que se dispõe, mas as pesquisas arqueológicas mais recentes caminham no sentido bastante firme de que os quipus, além de números, contém, no mínimo, signos logossilábicos, quando não logográficos.

    A posição de que os quipus não registrariam dados logográficos, mas exclusivamente numéricos, é precaução crítica bastante justificável, mas parte do pressuposto de que algo como um Popol Vuh estaria integralmente registrado num ou mais quipus – o que não é de se descartar inteiramente, mas ainda não se avançou até aí nas pesquisas arqueológicas. Não se pode afirmar nem que sim, nem que não; só o que se pode afirmar, com certeza, é que quipus contém outras informações além de números, algumas delas possivelmente logossilábicas.

    Afirmo tudo isso com base nos estudos mais recentes sobre os quipu realizados no campo da arqueologia andina. Sabine Hyland já demonstrou que a direção dos nós contém informações não-numéricas, como a posição do nó a indicar se uma família morava na parte hanan ou na parte hurin de Cuzco, sinalizando sua proveniência dinástica. Manuel Medrano reforça a hipótese, mas não avança muito além disso. Mais recentemente, Sabine Hyland encontrou quipus com pelo menos 95 símbolos diferentes, envolvendo cores distintas, fibras animais diferentes, direção dos nós, etc., sugerindo um sistema logossilábico. Entretanto, a base para esta hipótese – além dos relatos dos custódios dos quipus em vilas isoladas nos Andes, onde ainda se guardam quipus intactos, tidos como objetos quase sagrados por sua alegada natureza epistolar – são quipus datados como sendo do século XVIII; por isso, tanto pode ser possível a permanência de formas logossilábicas pré-colombianas, quanto pode ter havido interferência do sistema alfabético na construção destes signos logossilábicos. Daí outros arqueólogos serem cautelosos. Gary Urton, entretanto, é mais incisivo em sugerir uma “notação posicional” dos quipu, ainda que cerque sua sugestão dos mesmos poréns e todavias, por ter como base, também, quipus pós-coloniais.

    A noção de que os quipus continham registros estritamente numéricos e censitários vem, além disso, da administração colonial espanhola, que usou quipucamayocs como oficiais censitários por algum tempo; a interpretação logossilábica/logográfica dos quipu, entretanto, parece ter morrido com eles, restando-nos apenas hipóteses fortes sobre a natureza logossilábica/logográfica dos quipu que infelizmente não conseguem avançar muito no sentido de decifrá-los por inteiro. Não se deve descartar a hipótese, aliás reforçada pelos relatos dos atuais custódios dos quipus, que os quipucamayocs houvessem apresentado os quipu aos espanhóis como puro registro numérico e censitário para poderem comunicar-se em segredo sob as vistas do inimigo. Perder a cifra, se esta hipótese se mostrar correta, é consequência infeliz e trágica desta escolha.

    Um último comentário lateral, desta vez sobre a admiração de Goethe pela tradução de Gérard de Nerval do Faust: ela tornou-se conhecida a partir da publicação das Conversações com Goethe de Johann Peter Eckermann, em 1836. Não sei se foi aí onde leu, mas é certo que Joaquim de Vasconcelos, um dos contendores na polêmica da tradução a que o ensaio se refere, leu a obra de Eckermann, e mencionou a admiração.

  2. polifonia com dissonâncias, no entrejogo linguageiro (linguagem, dinheiro… /&c -rsrs) de Manolo & JB
    melhor para os que, como eu, tanto gostam de aprender quanto sabem que, técnica e metodicamente passapalavrando, não há heurística sem erística

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here