Por Saulo de Tasso Russo Barreto (*)
A palavra estudantil transbordou tão plenamente, jorrando de toda parte, indo e inscrevendo-se por toda parte, que se teria direito de definir superficialmente – mas também essencialmente, talvez- a revolta universitária como Tomada da Palavra (como se diz Tomada da Bastilha).
(Roland Barthes)
E, via de regra, uma greve se inicia com uma palavra não cumprida. Porque enquanto força de lei, a palavra dada sela um compromisso, uma obrigação ou um pacto. Em um casamento, por exemplo, diz-se: “na saúde e na doença até que a morte nos separe”. Mas, é bem possível trairmos a palavra dada haja vista as contingências. Afinal, o amor pode acabar. Há algo que não tem em sua natureza o amor e possui como princípio a traição à palavra: o Estado. Por isso servidores públicos fazem greves porque greves, via de regra, iniciam-se com uma palavra não cumprida. É o caso da Universidade Estadual do Ceará que completa neste dia 04 de junho dois meses de greve de professores e estudantes. Os salários dos professores, em oito anos do ex-governador Camilo Santana (PT), tiveram uma perda do poder de compra de 35,7%. Hoje, o atual governador Elmano de Freitas (PT) honra a palavra com o seu antecessor (na verdade, honra a sua ancestralidade) e descumpriu o acordo da data base feito com a categoria docente no início deste ano. O Estado: algo que não tem em sua natureza o amor e possui como princípio a traição à palavra. E, via de regra, uma greve é deflagrada por um acordo não cumprido, uma palavra traída.
Menos de uma semana depois, os estudantes em assembleia histórica deflagram a sua greve. A UECE não possui residência universitária. A UECE tem insuficientes e defasadas bolsas de permanência estudantil. A UECE tem poucos bebedouros em seus corredores; salas e laboratórios sem climatização. A UECE possui carência de quase 500 professores. A UECE não tem espaços adequados para alunas mães. A UECE não tem plano de incêndio em seu campus. A UECE é a quinta melhor universidade estadual brasileira e primeira no norte e nordeste, segundo a Times Higher Education. No Centro de Humanidades, salas sem climatização e ausência de Restaurante Universitário; apenas 1 bebedouro para todos os estudantes de Letras e Filosofia. No Centro de Humanidades da UECE, o jantar dos alunos é diariamente uma sopa que vem transportada por um tonel leiteiro e servida em um copo de plástico, sem colher, no pátio onde ficam as lanchonetes. Porque no Centro de Humanidades da UECE não há refeitório. Em todo país, a UECE ocupa a 43 a posição como melhor universidade, a oitava entre as estaduais e a primeira entre as universidades do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, segundo o Ranking Latin America University de 2023.
Obviamente, por se tratar de uma universidade tão requintada, o governador resiste em negociar com os representantes do Sindicato e as negociações ficam por conta dos deputados da base aliada ao governo. Até agora, a proposta elaborada pelos deputados e o Sindicato foi recusada em assembleia docente. Uma contraproposta foi composta e o movimento paredista espera uma reabertura da mesa de negociações. Obviamente, por se tratar de uma universidade tão sofisticada, o reitor, Hildebrando Soares, não assinou o termo de não represália ao movimento estudantil e até o momento não respondeu efetivamente as demandas dos estudantes. Obviamente, nem o governo recebe os estudantes e a reitoria “cozinha” enquanto pode os estudantes famintos, sem-tetos e sem água de uma das mais gloriosas universidades do país.
No meio desta barafunda ainda há a desconfiança por parte de alguns estudantes que, caso o governo envie uma proposta e o movimento docente aceite e se retire da greve, a greve estudantil fique desamparada em forças e tenha de ceder na sua luta. Desconfiança esta que tem suas razões visto que aprendemos da facilidade com a qual a palavra é dada e a rapidez pela qual ela é traída. Isso justifica uma fantasia paranoica em forma de pergunta que ronda alguns do movimento estudantil: deve-se confiar nos professores experts em neoliberalismo, precarização do mundo do trabalho, uberização, violência e violações de direitos? Claramente, o esvaziamento dos professores em assembleias, reuniões e atos deve-se por fatores outros, talvez metafisicamente mais justificados. Afinal, os professores experts produzem artigos, dissertações, teses e papers acerca da precarização da não-vida de todos. Logicamente, os professores experts sabem que garantir seus direitos salariais e, na melhor das hipóteses, zerar a carência de professores da instituição não resolvem os problemas daquilo que deveria ser uma universidade autônoma, gratuita e livre. Sem sombra de dúvidas, os professores experts de universidade tão bem quista sabem que não se assiste aula nem muito menos se pesquisa com fome, sem moradia ou água para beber.
Assim, para aplacar desconfianças e aumentar forças, a Assembleia Autônoma e Selvagem do curso de Filosofia do Centro de Humanidades lançou a proposta da Unificação da Greve. Portanto, a união entre professores e estudantes de modo que todos tenham fala e poder de deliberação nas assembleias. A ideia ainda sofre resistência por docentes e outros estudantes porque cada um deve, pela ordem natural cósmica, respeitar a sua categoria. Afinal, mesmo que saibamos que um não vai sem o outro, professor é professor, aluno é aluno e cada um tem sua carteira de identidade. Cada um tem a sua identidade assegurada pelo Estado: isto que não tem o amor em sua natureza e tem como princípio trair a palavra dada.
Sabe-se que nas próximas quintas-feiras, tanto pela manhã como à noite, a Assembleia Autônoma e Selvagem do curso de Filosofia do Centro de Humanidades continuará discutindo e insistindo na Unificação das greves dos professores e estudantes. Nestas assembleias não há necessidade de cartão de identidade para tomar a palavra e todos participam. Afinal, os participantes da Assembleia Autônoma descobriram o óbvio para não trair a palavra dada: ser palavra. Lá, ninguém possui a palavra, mas é. Às vezes é preciso dizer o óbvio: é da natureza da palavra o amor. Isto que falta ao Estado e a todos que mimetizam as suas formas.
(*) Participante das Assembleias Selvagens e Autônomas do Centro de Humanidades.
A obra em destaque é do artista brasileiro Carlos Zilio (1944 – )
As vezes é preciso dizer o óbvio: escrever contra o neoliberalismo se tornou uma forma de engordar o lattes, fazer carreira universitária e justificar os altos salários dos gestores estatais, que é para onde esse pessoal acaba sendo tragado.
Esses professores citados acima são aqueles que se posicionam contra o neoliberalismo sem serem contra o capitalismo.