Por Arthur Moura

A fé no Estado como suporte principal para uma possível emancipação do cinema é algo que por nós, produtores, cineastas e acadêmicos, deve ser pensado com certo cuidado. É claro que o Estado, em diferentes momentos, ao tomar a dianteira no que diz respeito ao fomento e suporte às produções cinematográficas, muitas vezes significou elevar o cinema a um outro patamar no sentido estético, técnico e nos temas abordados, afinal de contas o cinema depende de condições materiais. Esse investimento é também sentido nas relações de mercado, que são aquecidas de uma forma geral, significando aquisição de novos equipamentos, investimento em formação e produção, equipes e distribuição alimentando toda uma rede de relações em torno da produção. Essa disputa está muito presente, por exemplo, no Ministério da Cultura, que é o núcleo burocrático que detém maiores possibilidades de investir em produções culturais.

Há, no entanto, uma disputa mais comprometida e profunda com as instâncias burocráticas do Estado, tornando-o estrutura necessária sem a qual nada seria possível. Essa visão, ligada a tendências progressistas e bolcheviques, orientam e orientaram boa parte dos cineastas muitas vezes ligados a partidos de esquerda de tendências burocráticas. Edmilson Marques, no livro Crítica Marxista ao Leninismo (2018), afirma que:

A classe operária demonstrou em sua luta que o estado nada mais é do que uma expressão do poder de determinada classe sobre outra. Como o objetivo da classe operária é a abolição das classes, então, a abolição estatal coloca-se como o primeiro ato histórico de sua luta. Como colocou Marx (1986, p. 69) “a classe operária não pode limitar-se simplesmente a se apossar da máquina do Estado tal como se apresenta e servir-se dela para seus próprios fins”. (MARQUES, 2018)

Se fossemos pensar rapidamente sobre o que seria o cinema revolucionário, é aquele que se filia a um projeto de sociedade revolucionário. Ou seja, aquele que pensa e luta pela superação do Estado e das classes sociais. Se as formas de se produzir este cinema é baseado em método e teoria contrarrevolucionário (como o burocratismo), ele passa a cumprir outra função. Fatores como relações altamente hierarquizadas, burocracia e comprometimento maior com a mercantilização, produções regressivas e, consequentemente, esvaziadas de caráter transformador não ocupa essa categoria específica.

A revolução neste caso deixa de ser um conjunto de ideias ou ideais meramente representados numa tela por meio de uma determinada linguagem em audiovisual para ser uma das ferramentas que atua de forma propositiva no campo social necessariamente rompendo barreiras impostas pela ordem do capital e suas burocracias. Quando falamos de cinema revolucionário nos referimos também a produtores revolucionários que partem sempre de coletividades quanto mais amplas possíveis, o que acaba por contrastar com a organização empresarial corporativista ou burocrática de partidos políticos em geral.

A autonomia do cinema revolucionário está ligada à autonomia dos trabalhadores envolvidos no processo da produção cinematográfica. O cinema torna-se nesse caso instrumento da luta social, dos setores subalternizados e da classe trabalhadora de um modo geral. Os trabalhadores nesse caso são não só objetos do cinema, mas principalmente produtores, autores, etc. Este cinema não privilegia o Estado e suas burocracias, mas a participação efetiva dos trabalhadores nos processos sociais, não permitindo que a ideia de revolução se resuma a um partido político ou um Estado, ainda que este seja supostamente comandado por trabalhadores, o que nunca ocorre de fato, haja vista a própria história da Revolução Russa de 1917 e demais processos revolucionários arrefecidos pelas burocracias locais. O lugar do comando é ocupado por uma burocracia especializada, uma elite (ou simplesmente uma aristocracia operária), sendo impossível o seu “bom uso” para finalidades supostamente revolucionárias.

Há, nas palavras de Solanas, um aceno para a conciliação de classes, já que ele entende que o poder revolucionário se resume ao Estado, sendo este, portanto, o parâmetro de todas as coisas, refletidas inclusive em suas proposições a nível teórico. Sabemos que no âmbito da diplomacia capitalista não há qualquer aceno para uma revolução. As diplomacias servem justamente para o contrário: para a dominação de classe.

O cinema revolucionário é aquele que pensa a totalidade daquilo que envolve tanto a produção como as relações em torno dessas produções a partir de um projeto político histórico revolucionário pautado pelas lutas populares em auto-organização. Não basta dizer ser revolucionário ou produzir filmes de caráter nacionalista libertador. É preciso que o cinema produzido e seus produtores ou realizadores estejam integrados às lutas de classes munidos não só de boas intenções, mas colocando os seus limites à prova. Esse cinema não é aquele que produz carreiras, mas coletivos e organizações pautando as produções nas necessidades históricas dos trabalhadores. Mas, ora, toda obra cinematográfica é produzida coletivamente, poderiam afirmar. Percebam que aqui falamos de coletividades organizadas não em torno de um empreendimento capitalista, mas de organizações políticas que têm na cultura o front de suas ações. O cinema independente não necessariamente está ligado ao projeto revolucionário, mesmo abordando em seus temas a crítica ao contexto social geral.

Pensar questões sociais mais amplas guarda as suas dificuldades por conta dos múltiplos processos que definem uma determinada sociedade, cultura, costumes e economia. Sem uma teoria e um método apropriado não conseguimos produzir uma leitura crítica sobre o nosso tempo e nem sobre o passado. Não à toa, Marx coloca o conhecimento histórico como o de maior peso para que possamos produzir uma leitura de mundo correta, coerente, se de fato quisermos transformar a realidade concreta material. Nada do que se desenvolve no presente tem desconexão com o passado. Os olhos que só olham para frente agem conturbando essa relação entre presente, passado e futuro.

As referências produzidas no passado nunca são deixadas totalmente para trás, a despeito das vontades egoístas dos indivíduos. Por isso, nós sempre estamos corroborando ou refutando algo. Isso não quer dizer, em absoluto, que não exista espaço para o novo, para o inédito. Me lembro de um colega de turma no primeiro período afirmar que tudo já havia sido feito no cinema, o que gerava calorosos debates. Esse colega, um profundo conhecedor do cinema nacional e mundial, crítico e escritor, nunca havia apertado o rec. O ato de produzir, no entanto, coloca o criador diante da questão em não se distanciar de tudo que já foi feito, sempre buscando algum movimento propositivo. Talvez esteja aí a nossa busca pelo cinema autoral: a sua singularidade expressa em potência criativa.

Apesar de ser na modernidade onde mais podemos identificar a permanência do velho (principalmente das formas de dominação), da negação do rompimento, do medo do que ainda não se conhece, ela é vendida como progresso, mas sem superar as contradições do passado. Esse paradoxo na verdade faz parte da própria concepção e natureza da modernidade (que na verdade trata-se da sociedade burguesa), que é calcada na manutenção da dominação como elemento indispensável para o funcionamento da sociabilidade capitalista.

Por mais que os discursos muitas vezes sejam divagantes e até muitas vezes sedutores, na prática se encontra pouco espaço para ideias que contrariam o status quo estabelecido, não sendo diferente no campo da arte; e por mais que a modernidade tenha significado o advento do novo, para que se possa ter acesso a ele, é necessário poder aquisitivo. Eis mais uma face do paradoxo da modernidade. Ao passo em que produziu riqueza, a miséria aumentou de forma descomunal.

A modernidade, portanto, se configura como o mais alto grau de desenvolvimento do capital, de suas forças produtivas, do seu ethos em torno do fetiche da mercadoria. Por isso, o rompimento parece ser algo da ordem do impensável, soando como um desprezo aos valores mais genuínos da humanidade. Talvez por isso também seja mais fácil imaginar o fim da humanidade do que o fim do capitalismo. Dessa forma, a luta contra o capital se torna anacrônica, evitável, incongruente, precisando sempre de algum mecanismo que representa o freio das revoltas populares. Esse nó ideológico está mergulhado no chorume da concepção burguesa de sociedade, hegemonizada pela classe dominante e suas classes auxiliares, mas mantida, sobretudo, pelos próprios trabalhadores, que vem se mostrando incapazes de se situar no campo social de outra forma que não seja por meio da submissão. Mas para ser dominado é necessária alguma moeda de troca. Há, nesse caso, uma dominação direta e outra sutil e até mesmo desejada. A dominação nesse caso está ligada diretamente a uma ideia de estabilidade, seja econômica, política, cultural, etc.

A dominação do capital, portanto, se complexificou. Ao mesmo tempo em que ela se manifesta de forma explícita nas suas múltiplas formas de violência, ela também está carregada de simbolismos. Nesse caso, as relações interpessoais estão sempre na iminência de se manifestarem por meio desses preceitos, ainda que a aparência diga o contrário.

Este trabalho tem uma importância pessoal, como autoesclarecimento de diversas questões que me acompanham durante mais de vinte anos de produção no cinema. Mas para muito além da minha mera experiência pessoal, penso haver uma importância do ponto de vista social e histórico. Por isso é muito mais um trabalho de um historiador analisando o cinema político, mas também de um cineasta que pensa a sua própria condição.

Percebemos em nossa prática cotidiana que este debate amplo atende a uma demanda mais abrangente de trabalhadores envolvidos com cinema, que assim como nós, buscam formas alternativas e eficientes de produção de seus filmes. É preciso pensar mais sobre isso. Compreender criticamente as expressões culturais é de suma importância para avançar em processos de transformação social de massa. Se o cinema político independente é aquele que interfere nos processos das lutas sociais, o confronto também está em pensar a si mesmo junto a questões gerais que marcam o cinema como um todo.

As imagens que ilustram este artigo são do cineasta Jorge Bodanzky (1942 —)

A publicação deste artigo foi dividida em 4 partes, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4

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