Por Manolo

O Passa Palavra me chamou para colaborar pontualmente com sua coluna “Cidades”. Não sabia bem o que fazer em tão pouco tempo. Resolvi dar continuidade a um diálogo iniciado aqui mesmo nesta coluna, a partir de um aspecto aparentemente marginal que, para mim, tem grande importância, e permitirá situar de onde pretendo prosseguir o diálogo iniciado.

Em comentário ao artigo “Favela pós-pandêmica”, de Isadora de Andrade Guerreiro, criei de propósito um certo suspense em torno de uma afirmação que repito sempre ao dizer algo sobre a interferência da luta de classes nas formas e modos como o espaço é produzido nas cidades:

Capítulo de política urbana na Constituição, Estatuto da Cidade, sistema nacional de habitação de interesse social, MCMV, tudo isso eu leio, no longo prazo medido em décadas, na ótica da tentativa de captura desse mercado de terras complementar ao dito “formal”. Mistura de mobilização social com correção de distorções de mercado e com disputa intracapitalista. Mas isso é assunto para outro dia, quem sabe.

Pelo nível e qualidade das reações que percebi a este ponto do comentário em mensagens privadas, parece que o dia chegou. Espantou a alguns que eu considere a reforma urbana como “mistura de mobilização social com correção de distorções de mercado e com disputa intracapitalista”.

Explicarei melhor os pontos a que me referi, embora não pretenda nada além de pintar um panorama do assunto em pinceladas largas por não ter conseguido – mais uma vez! – roubar à exploração nossa de cada dia o tempo necessário para aprofundar certos elementos cruciais deste assunto. Gente formada por Kropotkin e Reclus costuma dar atenção a detalhes, mas hoje, infelizmente, não vai dar.

As premissas do que tenho a dizer são bem simples.

Em primeiro lugar, heraclitianamente falando, “nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”. Tudo muda. Nada daquilo que é hoje é como era ontem. Nada do que se verá amanhá é como é hoje. Especialmente no que diz respeito às relações sociais, a impermanência é a única constante. Neste campo, há o que mude completamente de um dia para o outro. Há o que perdura séculos ocultando mudanças de conteúdo mediante formas semelhantes – ou, num tempero lampedusista da mesma premissa, o que muda de forma para manter o conteúdo. Mas nada, literalmente nada, permanece o mesmo o tempo inteiro. A mudança, quem a promove é a luta, o conflito, a polêmica, a discussão. Ou, ainda heraclitianamente: “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres.”

Em segundo lugar, no plano social a mudança resulta da luta de classes. Mas, ao contrário da retórica inflamada e simplificadora dos panfletos, e das descrições estáticas e assépticas dos manuais de ciências sociais onde pouco há de História, a luta de classes, na prática, é bem mais complexa: convergências e divergências se produzem ao sabor dos interesses do momento, vitórias aparentes pavimentam o caminho para o aprofundamento da exploração, soluções para os problemas de ontem criam as condições para os problemas de amanhã. Nada é, na prática, tão limpinho e organizado quanto se diz. Mesmo as classes sociais só se pode apreender enquanto tal mediante a ação de sujeitos que se entrechocam; vê-se tais entrechoques inclusive quando estes sujeitos confluem contra outros que, também por sua ação, formam classe social distinta e antagônica. No que diz respeito à mudança social, disputas dentro da mesma classe social são tão produtivas quanto disputas de uma classe social contra a outra; mas só as lutas entre classes sociais antagônicas promovem mudanças sociais de alcance mais amplo, capazes de remodelar completamente a própria sociedade como resultado.

Em terceiro lugar, as cidades são a expressão concreta – literalmente – de sucessões de momentos nestas lutas. Não se consegue moldar o espaço físico tão facilmente quanto relações sociais. Pedaços de argamassa, concreto, pedra, betume, argila, cobre, madeira, ferro e aço dispostos deste ou daquele modo demoram séculos para se decompor (quando o fazem); sua presença incontornável impõe-se aos conflitos sociais do presente, quer como limite, quer como possibilidade. Os resultados destes conflitos não raro passam por fazer isto ou aquilo com esses grandes pedaços do passado, inserindo-os no presente como novos limites e possibilidades para o futuro. Daí ser possível conceber o espaço – tanto em seu aspecto físico quanto no componente social que lhe dá sentido – como uma sobreposição de conjunturas.

Estabelecidas as premissas, vamos ao que interessa.

***

A reforma urbana no Brasil tem como pano de fundo, inicialmente, a migração em massa de trabalhadores para as cidades. A industrialização deslanchada no início do século XX decerto intensificou, exponenciou e multiplicou a tendência migratória pelas centenas e milhares, concentrando-a ali onde burgueses haviam conseguido redirecionar capital excedente via sistema bancário e implementar infraestruturas mais propícias à produção industrial (eletrificação, portos, navegação, ferrovias, etc.). Apesar disso, quem preparou a cama para esta urbanização desenfreada não foi só a industrialização, mas também a lenta transição da exploração escravista para a exploração assalariada do trabalho. A urbanização já era tendência verificável ao menos desde o último terço do século XIX no Brasil, ainda que em ritmo e intensidade infinitamente inferior ao segundo pós-guerra do século XX. Se faltam dados censitários para confirmá-lo (o primeiro censo geral brasileiro é de 1872), sobram narrativas jornalísticas, literárias e mesmo biografias, hoje reconstruídas pela pesquisa historiográfica, a demonstrar a tendência. Resultava tanto da falta de perspectivas no campo para ex-escravos e seus descendentes, privados do acesso à terra, quanto da promessa de uma “vida melhor” nas cidades, esta última plasmada no imaginário coletivo dos trabalhadores escravizados quer pelo relativo anonimato com que nelas se podia sobreviver depois de fugir do cativeiro agrícola, quer pelo crescimento da escravidão de ganho (essencialmente urbana).

(Por falar em escravidão de ganho, é necessário um parêntese longo, tão provocativo quanto o que deu origem a este texto: “estratégias de sobrevivência”, para mim, não tem nada a ver com o uso “uspiano-cebrapiano” da expressão, como quis intuir Isadora Guerreiro em sua resposta a meu comentário, talvez a partir de leituras que sintetizou numa excelente resenha. São estratégias de sobrevivência, sem aspas, só isso. É uma forma meio intelectual, meio de esquerda de dizer “gente dando os pulos porque os boletos chegam todo mês”. O uso “uspiano-cebrapiano” da expressão “estratégias de sobrevivência”, e sua recorrente associação à “reprodução da força de trabalho” quando o jargão marxista é mobilizado em reforço, fala muito sobre a baixa capacidade deste campo em reconhecer as tais “estratégias de sobrevivência” como “descendentes sociológicas” dos ofícios associados à escravidão de ganho; fala mais sobre isso que sobre qualquer outra coisa. Assim como é “bonito”, “cultural” para alguns reconhecer a “filiação” entre as atuais baianas de acarajé e as antigas quituteiras de ganho, todos os dias topamos com outros “descendentes sociológicos” dos trabalhadores escravizados ao ganho, alguns sem percebê-lo. São os carregadores nas portas dos mercados e mercadinhos. São as “tias do cafezinho”. São as “empreendedoras” do bolo de pote, do salgadinho de R$ 1,00, do cuscuz gourmet. São os feirantes e verdureiros. São os entregadores – sim, eles mesmos. São as costureiras. Novamente, Lampedusa temperando Heráclito: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. De tão óbvio, deveria fazer algum sentido – mas, sei lá por quê, não faz. Sai mais barato tirar da cartola coisas como as “estratégias de sobrevivência” no sentido “uspiano-cebrapiano”, o mal-formado “trabalho sem forma”, o curiosíssimo “precariado” que só existe em livros… Tudo isso para mim é miopia historiográfica, conceito sem carne histórica, chico-de-oliveirismo acrítico, ornitorrinquismo inconsequente, tudo com um puta cheiro de preguiça intelectual. Mas isso é assunto para outro dia, novamente. Ia até dizer “gente se virando” para falar das mesmas coisas, mas parei ao lembrar que terminaria mais uma vez mobilizando outras referências sem querer. Ô dificuldade, sô! Voltemos ao que interessa. Fecha parênteses.)

Como o espaço não permite alongar a análise, um resumo muito grosseiro do assunto estabelece que entre o fim do século XIX e os anos 1960, em especial depois da Segunda Guerra Mundial, a produção do espaço urbano das cidades brasileiras deixou de ter seus rumos determinados pelas flutuações da economia agrária de suas hinterlândias, via de regra semiautárcicas, para relacionar-se mais intimamente com dinâmicas econômicas em escala regional, nacional e internacional. Apesar disso, tal produção continuava a resultar da luta entre, de um lado, os milhões de trabalhadores que migravam rumo às cidades em busca de uma “vida melhor”, e de outro os proprietários de casas, prédios e terrenos que, graças a uma correlação de forças bastante favorável, conseguiu manter intacto o regime de apropriação do solo inaugurado pela convergência entre as Ordenações Filipinas (especialmente o livro 2 e o livro 4, mas também o famigerado livro 5), o Código Criminal de 1830, a Lei de Terras de 1850 e o Código Penal de 1891, tudo posteriormente refinado pelo Código Civil de 1916: propriedade privada com direitos absolutos de usar, fruir e dispor, e permanência de formas arcaicas, mesmo medievais de apropriação, como a enfiteuse. Cidades inteiras haviam crescido por toda a primeira metade do século XX no Brasil sobre antigas fazendas, onde o “morar de favor”, alugueis precários e outros arranjos corriam em paralelo com o formalismo jurídico. Além disso, ordens religiosas riquíssimas controlavam terras de onde extraiam rendas para sustentar seu fausto. Aqui e ali, municípios mais antigos que mantinham terras públicas oriundas de seus antigos rocios e termos coloniais viviam atarantados com tamanho patrimônio, recorrendo não raro os prefeitos à venda direta por preço de banana a seus “parças” na tentativa de criar um mercado capitalista de terras lá onde ele ainda não existia.

Enquanto isso, trabalhadores continuavam “dando seus pulos” para ter um teto: moravam “de favor”, “invadiam”, compravam terrenos em loteamentos sem qualquer segurança – enfim, moravam onde dava, onde fosse mais barato, respeitasse isso as formalidades legais ou não. Dane-se, o que importava – e importa – é ter um teto. Quando alugavam suas moradias, eram despejados para que o dono da casa pudesse aumentar o aluguel com outro inquilino.

É neste cenário que surgiu a reforma urbana, cujos resultados mais notáveis destaquei naquela pílula parentética em meu comentário. A historiografia “oficial” da reforma urbana no Brasil costuma estabelecer dia, hora e lugar de nascimento do fenômeno: o Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU) promovido entre 24 e 31 de julho de 1963 pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e pelo Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado (IPASE), autarquia do governo federal vinculada ao Ministério do Trabalho. Esta mesma historiografia indica que se tratou de um evento ao qual compareceram advogados, arquitetos, assistentes sociais, economistas, engenheiros, professores, sociólogos, deputados e – como lembrança da natureza “social” do evento – líderes sindicais. (Não faltavam associações de “amigos do bairro” e grupos de moradores, já naquela época, mas…) Dele resultou, além de interessantíssimo caderno de conclusões, um projeto de lei, adaptado de projeto anterior de 1960, cuja exposição de motivos guarda algum interesse histórico ao demarcar o objetivo último desta reforma: construir mais casas. Sob a justificativa da queda no ritmo da construção civil, e do crescimento do défice habitacional, buscava-se medidas capazes de financiar a indústria da construção civil (pois ao trabalhador, diz o projeto, faltavam-lhe os recursos para poupar).

Para surpresa de… zero pessoas, as recomendações do SHRU para o financiamento da habitação e para o planejamento urbano foram parcialmente incorporadas pelos ditadores em 1964 com a criação do BNH e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). Também – não é? – as recomendações do SRHU continham muitos aspectos “técnicos” aproveitáveis por uma “tecnocracia competente”, mesmo associada ao regime ditatorial de então. IAB e IPASE contra Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES) e Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), como bem demonstrou René Armand Dreifuss; mesmo assim, de um lado e do outro do balcão, tanto o SRHU quanto essa “tecnocracia competente” se viam como gente “a serviço do povo”, intelectuais orgânicos inconscientes de si próprios (Diria um velho peão comunista que conheci: “intelectual orgânico de qual órgão?”). O próprio SRHU, marco fundante da reforma urbana, pode ser entendido como elemento das políticas de “porta giratória” que caracterizam a atuação desta “tecnocracia competente” no capitalismo, e como parte do Estado Amplo cujos aparatos impõem formas de viver e produzir aos trabalhadores, que ora as aceitam, ora a elas se contrapõem.

Vamos a um salto à distância, pois o espaço não permite detalhes.

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Durante os anos 1970 e 1980, aquele mesmo programa do SRHU ainda estava parcialmente pendente de realização, e o que dele se realizara serviu a outros propósitos. A “crise urbana” agravava-se; a produção de moradias via BNH e cooperativas habitacionais (COHAB) serviu principalmente a estratos sociais de rendimentos médios; a criação em 1966 do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) como poupança compulsória financiadora do BNH flexibilizou o regime de estabilidade laboral, facilitando demissões; o regime fundiário pregresso mantinha-se, em grande medida, intocado; grandes intervenções urbanas (metrôs e trens da CBTU, pontes, avenidas, saneamento básico, etc.) faziam-se ao custo de altíssimo endividamento público, cujos efeitos se sentiriam na “década perdida” dos anos 1980; tudo isso se misturando com desemprego em alta, redução do poder de compra dos salários, inflação galopante, greves, mobilizações de mutuários do BNH, apropriação de terras de especulação por trabalhadores…

É na busca de soluções – à “esquerda” e à “direita” – para as encruzilhadas do labirinto da luta de classes dos anos 1970 e 1980 no Brasil, agora travada majoritariamente em ambiente urbano, que a “tecnocracia competente” formada por advogados, arquitetos, assistentes sociais, economistas, engenheiros, professores, sociólogos, deputados e outros do mesmo ramo deparou-se com fortíssimos movimentos sociais de trabalhadores, com reivindicações próprias, capazes tanto de erodir aos poucos o regime autocrático e derrubá-lo, quanto de botar medo à “esquerda” e à “direita” quanto ao que poderia acontecer se não houvesse algum nível de articulação “por cima” destas soluções. “Atraso”, “marginalidade”, “dualismo”, “desenvolvimento”, “subdesenvolvimento”, “informalidade”, “reprodução da força de trabalho”, “expedientes de sobrevivência”, nada disso faz sentido senão quando vemos, por trás da dança dos conceitos, multidões de trabalhadores que, sem dar tanta importância para as interpretações da realidade apresentadas pela “tecnocracia competente”, faziam as cidades brasileiras a seu modo, na marra, como dava.

Neste contexto, novo projeto de lei, de 1983, resgatou e aprofundou propostas do SRHU, inovando em aspectos importantes que, aprovado o projeto, afetariam diretamente o regime fundiário pregresso, tendendo a substituí-lo aos poucos por outro, pautado pela maior interferência estatal sobre o uso da propriedade privada – ou seja, da “tecnocracia competente”, porque quem lê “Estado” deve ler gestores, pois Estado não tem braços, pernas, cabeça, caneta ou ordens. Embora tal projeto tenha sido de iniciativa do governo Figueiredo, sua concepção resultou, além do aproveitamento de temas e propostas do SRHU, de debates entre a “tecnocracia competente” do governo e entidades da “sociedade civil”, onde se via, novamente, similares opostos em choque: enquanto posicionavam-se a favor do projeto IAB, CNBB e câmaras de vereadores de vários municípios, do outro lado opunham-se a ele, sempre pelo temor da interferência na propriedade privada e das limitações à “livre iniciativa”, a Confederação Nacional do Comércio (CNC), a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), federações patronais da indústria e comércio de vários Estados, além de corretores de imóveis e empresários da incorporação imobiliária e da construção civil. O projeto, entretanto, era bastante modesto: seu artigo 3º afirmava, com todas as letras, que “o princípio da função social da propriedade, cujo objetivo é a realização do desenvolvimento econômico com justiça social, tem por fim assegurar o uso produtivo, para a sociedade, da propriedade imobiliária, seja ela pública ou privada, e a não obtenção, pelos proprietários privados, de ganhos decorrentes do esforço de terceiros pertencentes à comunidade”.

Corta. Agora, um salto triplo.

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Ainda na linha das reformas que se arrastavam desde os anos 1960 – e pedindo mais uma vez desculpas pelo salto histórico – em 19 de agosto de 1987 foi apresentada à Assembleia Nacional Constituinte a Emenda Popular 63/1987, chamada de “Emenda da Reforma Urbana”. No contexto da enorme mobilização social e política vivida no Brasil dos anos 1980, que resultou na apresentação de dezenas de emendas populares à Assembleia Nacional Constituinte, a Emenda Popular 63/1987 contou com assinaturas de 131 mil eleitores, coletadas em campanha nacional coordenada Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento de Defesa do Favelado (MDF), Coordenação Nacional dos Mutuários, Federação Nacional dos Arquitetos, Federação Nacional dos Engenheiros e, mais uma vez, o IAB, cabendo a estas três últimas, por terem personalidade jurídica, apresentar a proposta. Depois de muito debate com representantes da indústria da construção civil, da incorporação imobiliária, da FIESP (contrária à usucapião urbana) e de parlamentares associados a estes setores e ao “Centrão”, a proposta terminou minguada até o formato hoje encontrado nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal.

Acontece que o movimento que resultou nesta emenda fragorosamente derrotada constituiu-se enquanto Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU), depois transformado em Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU); seus integrantes – seja individualmente, seja por meio de suas entidades de classe – mantiveram-se atuantes por todos os anos 1990 na experimentação de formas alternativas de lidar com os “problemas urbanos” com poucos recursos. Datam daí as “dicas”, “experiências inovadoras” e outras “boas práticas” de gestão urbana participativa, urbanização e regularização de favelas e assentamentos precários, participação popular na administração, conselhos de políticas urbanas, construção de moradias novas por mutirão e autogestão, apoio à autoconstrução, intervenções em cortiços e em habitações nas áreas centrais e assistência técnica e jurídica para a população de baixa renda em questões ligadas a moradia: bloqueadas as possibilidades de uma reforma urbana “por cima” (via leis federais e Constituição), a “tecnocracia competente” tentaria uma reforma urbana “por baixo” (nos municípios), para – gramsciana e paulatinamente – construir hegemonia também em meio a políticos conservadores. Com isso, retomaram a ofensiva: entre 1989 e 2001 pautaram uma difícil negociação com parlamentares conservadores, e obtiveram a aprovação da Lei 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade.

Agora sim, começava a colocar-se um panorama em que a “questão urbana” poderia ser adequadamente resolvida. Poucos anos depois, em 2003, foi criado o Ministério das Cidades, permitindo a centralização de esforços pela “tecnocracia competente”. As mudanças sucederam-se muito rapidamente: foi criado o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) em 2005; várias Conferências das Cidades foram realizadas para debater os rumos do desenvolvimento urbano no Brasil; foi instituída em 2008 a assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social; mesmo o enorme retrocesso que foram o programa Minha Casa Minha Vida (e seu sucessor, o Casa Verde e Amarela) e a regularização fundiária urbana representam enormes vitórias para essa “tecnocracia competente”.

Agora sim, estaria tudo pronto para deslanchar uma vida melhor nas cidades. Quase todo o programa do SHRU de 1963 estava implementado. Será?

Corta. Jump cut.

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Enquanto dava forma escrita a essas reflexões que rumino há muito tempo, só conseguia me lembrar da velha canção do José Mário Branco: Sempre que se rompe o casaco do pobre / Aparecem uns doutores que descobrem / Que assim não pode ser, há que achar remédio / Seja lá como for / Vão então negociar com os senhores / Enquanto cá fora os trabalhadores / Ao frio esperam que eles voltem triunfantes / Com um belo remendo / Remendo sim, pois bem, mas onde é que ficou / O casaco todo?

Por quê?

Porque um conjunto de medidas voltadas à correção de distorções de mercado na produção do espaço urbano foi transformada em pauta principal de mobilizações intensas, potentes, multitudinária, por décadas, como se de revolução se tratasse.

“Distorção de mercado”, como se sabe, é o que acontece quando as forças de um mercado capitalista qualquer não funcionam eficazmente, resultando em distorções nos preços, em problemas na alocação de recursos, em concorrência imperfeita. Na Economia, a expressão é usada para indicar que a realidade não se adequa à teoria, e deve ser conduzida à adequação. Em toda a história da reforma urbana, a distorção é evidente: do ponto de vista estritamente capitalista, terras e imóveis necessários a milhões de trabalhadores estavam amarradas a um marco jurídico ultrapassado, incapaz de colocá-las à disposição de quem delas precisava, gerando externalidades negativas em cascata. Colocar a própria apropriação capitalista do espaço como um problema está fora de questão; o problema é o nó da terra, é o déficit habitacional, são os “aglomerados subnormais”, é a retenção especulativa, é a coabitação, é o controle do preço dos alugueis, é o zoneamento urbano adequado, é o controle do solo… Está tudo bem, cabe implementar ajustes, instrumentos redistributivos, parâmetros técnicos adequados, e tudo terminará bem.

Será mesmo? As perguntas começam a ficar difíceis, talvez as respostas também.

Vejam, formei-me eu mesmo num ambiente em que correções de distorções de mercado se mostravam tão difíceis que chegavam a parecer revolucionárias. Em meados dos anos 1990, início dos anos 2000, falar de função social da propriedade – fundamento básico da encíclica Rerum Novarum (1891) e do liberalismo lockeano! – era coisa de “comunista”. Ocupar terras, ocupar prédios, era caso de polícia. Não era difícil, num ambiente assim tão duro, confundir as coisas. Num lugar como esse em que vivemos – dizíamos – até reforminhas social-democratas como essa têm de ser arrancadas na marra. As pautas dos “tecnocratas competentes” parecem convergir com as dos movimentos de luta por moradia. Complementarmente, sem a força dos movimentos, nenhuma conquista dos “tecnocratas competentes” seria possível. Chegava-se a um ponto em que os “tecnocratas competentes” assumiam a frente institucional, os movimentos continuavam suas lutas, e tudo parecia bem.

Ninguém parecia entender corretamente o que acontecia: uma disputa por hegemonia dentro desse movimento mais amplo, com os “tecnocratas competentes” fazendo o possível para enquadrar em seus planos as forças políticas das multidões de trabalhadores que queriam fazer as cidades a seu modo, mesmo sob condições dificílimas. Uma questão menor, prosaica, mostra as disputas pela hegemonia dentro dos próprios movimentos sociais daqueles tempos: definir o ato da apropriação de imóveis ociosos como “invasão” ou “ocupação”. Transcrevo longa reflexão sobre o assunto, apresentada por Milton Moura, que acompanhou de perto tais movimentos urbanos dos anos 1970/1980 em Salvador:

A entrada num terreno é o que dá o nome e o caráter ao ato continuado de permanecer ali. […] O sentimento de poder e identidade dos moradores no ato de invadir vem dessas formas limitadas e efetivas de gestão. A legitimação coincide com a percepção de que invadir, além de oportuno, conveniente e necessário, é justo e desejável. Em suma, é normal invadir. É a maneira de prover a habitação. O movimento bem-sucedido, por sua vez, realimenta esse sentimento, continuando a história da moradia antes da modernização/industrialização, quando era relativamente tranquilo e consensual instalar-se num terreno ocioso. A antiga estratégia permanece ainda, passando a ser chamada também invasão a partir das novas condições de apropriação do solo urbano. O verbo invadir recapitula estes significados no universo popular de Salvador. Não tem a conotação criminal que recebe em outros círculos. Por outro lado, assume a conflitividade da divisão do espaço urbano. Seus dictores concordam com a burguesia no sentido de que se trata de uma transgressão da estrita legalidade burguesa, pois, mesmo quando o terreno é posse ‘garantida por lei’, dificilmente essa legalidade garante a posse… Afirma-se que ‘todo indivíduo sem teto tem direito à moradia e no ato de ocupar um terreno vago está apenas tomando posse de um lugar que já é seu’. Contudo, esse direito só alcança existência fática no momento em que um grupo se organiza para efetivá-lo para além da ordem jurídica vigente, ou seja, o conjunto do aparelho jurídico, burocrático e político que sanciona e zela pela lei, governando e administrando o sistema extenso de procedimentos e consentimentos em cujo espaço se assenta o estatuto dessa lei. Como a lei burguesa está fundada numa concepção estrita da propriedade privada, tudo o que ultrapassa os limites dessa instituição e pode ser chamado de invasão é por ela considerado ilegítimo. É o passo ao qual oficialmente se poderia chamar ‘clandestino’ que permite sentar à mesa de negociação com os adversários e a própria Justiça e alegar a legitimidade de sua ação. Precisamente porque transgrediu uma norma efetiva é que o morador de invasão pode ser interlocutor na busca de estabelecer uma nova normalidade. […] A intelectualidade universitária e os agentes de modo geral visualizam a pertinência e o valor de movimentos populares mediante um aparelho teórico e de linguagem que o apresente como válido e admirável. […] O termo ocupação é usado por muitos agentes como proposta de uma legitimidade ao mesmo tempo alternativa e inserida no universo do direito burguês. A tentativa de fortalecer sua utilização coincide com o surgimento e a consolidação das articulações de associações de moradores, nos anos 1980. A partir daí, convencionou-se seu uso em entrevistas, congressos, documentos, livros, cartilhas etc. Isso contribui para viabilizar o acesso dos moradores a alguns direitos garantidos pela Justiça e facilitar a reciprocidade de compreensão em encontros ampliados (regionais e nacionais) de moradores e agentes, onde as lideranças acumulam experiências e ensaiam uma composição de forças para além de sua localização imediata. Por outro lado, sua adoção em Salvador tem como contrapartida uma certa criminalização do termo invasão justamente nas invasões, causando às vezes perplexidade: aquilo que nas conversas comuns e descontraídas é uma experiência de que se fala com naturalidade e humor teria que ser nomeado por um termo que não reúne a mesma força de expressão. Os moradores que convivem mais frequentemente com os agentes e costumam falar com os vizinhos sobre ‘os problemas da invasão’, quando compõem uma mesa ou tomam de um microfone, pronunciam-se sobre ‘o problema da nossa ocupação’.” (Milton Moura, “Notas sobre o verbo invadir no contexto social de Salvador”. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 125, p. 25–41, jan.-fev. 1990)

Esse nonada evidencia a tensão entre o fático e o jurídico, entre a realidade e a burocracia, entre o ato e sua legitimação, entre a força inicial e as estratégias de permanência – tensão que atravessou e atravessa todos os movimentos sociais urbanos. Tensão entre o que podem inaugurar, entre a novidade de que podem – ainda! – ser portadores, e seu enquadramento ao possível. Tensão que, a cada passo, terminou por constituir ao lado da “tecnocracia competente” uma burocracia participativa, nascida e criada pela reiteração de suas performances nos espaços participativos de gestão do urbano, burocracia paulatinamente a distanciar-se dos problemas cotidianos de seus companheiros que, por sua vez, confiavam em sua recém-adquirida “competência”. No dizer de uma “tecnocrata competente” que chegou a conclusões parecidas por outros caminhos, “nunca fomos tão participativos”.

Corta. Corta, corta logo, chega…

***

A reforma urbana faliu – faliu porque venceu.

Venceu, porque os “tecnocratas competentes” vivem hoje de prestar assessoria técnica a qualquer prefeitura. Implementação de plano diretor participativo custa X, criação de lei de ordenação do uso e ocupação do solo custa Y, aplicação de REURB custa Z – tudo em nome da democracia e do bem comum, claro. Venceu, porque mesmo os prefeitos mais conservadores entenderam que cidade “reformada”, no tempo das vacas gordas, recebe recursos federais para todo tipo de obra urbana, aquecendo a economia local com empregos temporários na construção civil que garantirão sua sobrevivência política. (Quem ainda não sabe que prefeito de cidade pequena só sobrevive se trouxer obra para o município, ainda não entendeu como é a política lá onde a imprensa não chega.) Venceu, porque a indústria da construção pesada finalmente entendeu as enormes oportunidades de negócios abertas pelas políticas de reforma urbana, e, em vez de colocar obstáculos à sua realização como no passado, lançou-se de corpo inteiro na disputa pelos novos marcos do setor (p. ex., o marco legal do saneamento básico). Venceu, porque cartórios entenderam que ganham a cada REURB feita, a cada usucapião reconhecida, a cada adjudicação compulsória concluída, eles também saem ganhando. Venceu, porque advogados prometem “resolver os problemas” das casas de trabalhadores, colocando-as no mercado imobiliário dito “formal”, mediante contratos de prestação de serviço francamente intimidatórios, ditos “anticalote”, onde violam tudo quanto é direito desses trabalhadores enquanto consumidores para assegurar seu direito à moradia.

Venceu, enfim, porque no fim das contas, como alguém já disse, “não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder”. Enquanto todo mundo ganhava, ia se formando naquelas áreas das cidades tratadas como objeto principal da reforma urbana uma “cidade do vai todo mundo perder”. Não sobre os “escombros” do trabalho dito “formal”, como querem alguns, porque sobram lugares onde isso nunca fez sentido algum. Não sobre as “faltas” (de moradia, de calçamento, de iluminação, de saneamento básico, de segurança, de comida, etc.), ou não exclusivamente sobre elas, porque essa cidade já anda cheia de presença miliciana e neopentecostal, novos agentes de produção do espaço urbano – à la Roberto Lobato Corrêa remix – que disputam poder, governo e território com outros preexistentes. Nesse novo espaço que se forma, há pouco lugar para “tecnocratas competentes”, burocracia participativa ou outros sujeitos cuja força vinha de formas de regulação de conflito cuja eficácia pressupunha formas coletivas de mobilização; nessa cidade que se forma, cidadãos veem cada vez menos sentido em se mobilizar para disputar políticas públicas, porque as tramas do clientelismo sempre lhes pareceram mais eficientes – e menos “comunistas” – que a ação coletiva.

Acontece que, ao fazer-se enquanto classe, trabalhadores criam não somente suas instituições, mas também seu espaço. Na “cidade do vai todo mundo perder”, a cidade da reforma urbana ficou para trás. Ao mesmo tempo, em meio a ela, há uma cidade que vai se formando todos os dias, gostem os “tecnocratas competentes” disso ou não. Não quero nomeá-la, ao menos não por enquanto, para não restringir-lhe a relativa indeterminação e abertura de sua construção. É a essa cidade que devemos ter atenção, sob pena de, ao centrar a atenção nos aspectos que não nos confortam, deixarmos de lado aqueles elementos de solidariedade e apoio mútuo entre trabalhadores – kropotkiniano/reclusiano tem fixação por essas coisas – que desafiam o presente e criam o novo.

4 COMENTÁRIOS

  1. Caro Manolo, por favor, não deixe de escrever sobre os pontos que dessa vez tu não teve tempo de tratar. Muito obrigado e um abração!

  2. Não, foi erro meu na formatação mesmo. A frase nunca, jamais adicionaria Chico de Oliveira aos que prestam atenção aos detalhes.

  3. Caro Manolo,

    Grata pelo texto. Acho que desfazendo os nós aos poucos vamos nos entendendo – embora “a fortiori”, como Ulisses descreveu nossas atitudes nos comentários ao meu último texto. Sem me perder muito nos labirintos perigosos que você armou, vou direto ao ponto final, no qual parece que concordamos nos novos agentes de produção da cidade. Gostaria apenas de colaborar neste esforço – que precisa ser coletivo, o que demanda respeito mútuo – matizando um pouco o “todo mundo vai perder”, e também o papel da reforma urbana hoje.

    Concordo totalmente com sua análise sobre o papel que a era das políticas públicas cumpriu em relação às cidades. Concordo tanto que não entendi a afirmação de que “a cidade da reforma urbana ficou para trás”. Acho que mais do que uma contraposição no sentido “acabou porque venceu”, a força do argumento está no fato de que esta forma atual de produção do espaço urbano depende organicamente de um tipo de intervenção estatal direcionada a responder a direitos sociais. É aí que as práticas clientelistas, extrativas e criminosas não apenas se justificam, mas onde formam seu mercado e determinam seus preços. O déficit de cidadania e a necessidade de dar resposta a ele é o motor que faz rodar a máquina extrativista – que se move internamente ao Estado, como as milícias cariocas ou mesmo o PCC em São Paulo. Para estes, não se trata de acabar com essa máquina, mas de se apropriar dela, mantê-la funcionando, mas com ganhos privados. É realmente mais difícil identificar a linha entre o virtuosismo e a barbárie, por isso entendo a angústia de teus colegas ao te questionarem, bem como a dificuldade de reorganização de forças coletivistas nesta conjuntura. Nada é tão óbvio assim.

    Nesse sentido, “orwellianamente”, para te acompanhar, eu diria “todos perdem igual, mas uns perdem mais do que outros”. O mais difícil é você dizer pro cara que saiu da miséria e está ostentando sua riqueza supérflua que ele, na verdade, perdeu. Difícil tem sido se contrapor à regularização fundiária privada e miliciana, quando os moradores querem pagar por coisas que teriam direito e acham que quem não paga deve ser expulso mesmo. Difícil manter mobilizadas pessoas removidas que agora ganham casa comprada a preço de ouro no mercado privado. Quem perdeu? Enquanto não soubermos formular direito essa questão – não academicamente, mas nos territórios – vai ser difícil ter luta. Pois fica parecendo que quem perdeu foram apenas aqueles que algum dia acreditaram nas potencialidades políticas da reforma urbana. Quem a entendeu de fato, como maneira de criar mercado onde não tinha, tá ganhando – e muito.

    E, para não perder o ponto: achei muito interessante a relação de “descendência sociológica” entre escravos de ganho e a dita sevirologia. É uma visão que desloca o ponto de vista da relação capital-trabalho contida no conceito de reprodução social – ou mesmo no conceito de salário por peça – que cabe bem à trajetória escravista brasileira. Para além do achado, valeria a pena desenvolver a ideia, talvez à luz das próprias transformações históricas do extrativismo – de agrário à financeiro. E como o espaço urbano é produzido nestes termos. Enfim, temos coisas a discutir aí, Manolo.

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