Por Davi

No meio de uma discussão gerada por um artigo publicado oportunamente pelo Passa Palavra sobre as mobilizações contra a escala de trabalho 6×1 no Brasil, senti a necessidade de escrever este artigo para elaborar melhorar algumas reflexões sobre esse movimento, para analisarmos seu contexto e suas possibilidades.

A discussão sobre o fim da escala 6×1 ganhou fôlego no país após um trabalhador chamado Ricardo Azevedo postar um desabafo no seu TikTok criticando a escala, que viralizou em setembro de 2023. Desde então Ricardo tem encampado esta pauta em seus perfis de redes sociais, criando um movimento chamado VAT — Vida Além do Trabalho. O resultado prático disso foi sua eleição como vereador no Rio de Janeiro, após ter se filiado ao PSOL, sendo o mais votado da sigla na cidade, com boa parte de seus votos em bairros periféricos e um relativamente baixo orçamento de campanha dentro do partido. Hoje constam 3 milhões de assinaturas em sua petição pública pelo fim da escala 6×1.

Após esse fenômeno eleitoral, o PSOL resolveu promover de forma oportunista esta pauta no Congresso Nacional, com uma PEC que proibiria a escala 6×1 e implantaria um sistema de escala 4×3, com 36 (sic) horas semanais de trabalho e 8 horas diárias de trabalho. De todo modo, o protesto contra a escala 6×1 manifesta uma demanda real de boa parte da classe trabalhadora brasileira, numa adesão que superou em muito os limites estreitos da propaganda do partido. O tema está sendo um dos mais procurados na internet brasileira nas últimas semanas, conseguiu apoio de partidos de centro e da direita por conta da pressão popular das bases eleitorais destes partidos — sim, houve várias manifestações de trabalhadores de direita contra a escala 6×1.

Tudo isso só demonstra a popularidade atual de um dos temas mais básicos das lutas operárias: a luta pela redução das jornadas de trabalho sem redução salarial. Junto das lutas pelos aumentos salariais, esta luta diz respeito a atacar diretamente o sistema de mais-valia, reduzindo a exploração real sobre os trabalhadores. Isso se mantém ainda que a luta não tenha se tornado uma luta coletiva ativa e predomine uma forma individual ou coletiva passiva, centrada em seguir lideranças promovidas a gestoras do Estado, no modelo que definiu João Bernardo em “Economia dos Conflitos Sociais”.

Mas quais as perspectivas do atual movimento e o que está sendo proposto?

Após a PEC receber um número superior ao necessário de assinaturas de deputados federais para tramitar, irá para discussão na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Congresso Nacional e, caso seja aprovada pela comissão, fica a cargo do presidente da Câmara dos Deputados realizar o prosseguimento da pauta num grupo de discussão que poderá modificar o texto e encaminhar para votação. Dado o cenário político adverso para a esquerda dentro do Congresso Nacional, há muitas dúvidas sobre a possibilidade da tramitação prosseguir. Além disso, é improvável que o texto atual da PEC se mantenha caso continue a tramitar, tendo em vista o medo do choque econômico que causaria nas empresas brasileiras uma semana de 4 dias máximos de trabalho, exemplificado na fala de diversos segmentos empresariais e pelo presidente do Banco Central.

A estratégia de incluir no texto da PEC a exigência por uma semana de 4 dias de trabalho acompanha uma tendência global de discussão sobre a diminuição da jornada entre os funcionários e gestores de grandes empresas nos últimos anos, principalmente nas áreas ligadas ao capital financeiro e de tecnologia. O fenômeno moderno da semana de 4 dias se mistura ao dos Great Places to Work, um selo de uma organização que ajuda a promover as “melhores empresas para se trabalhar”. Essas empresas geralmente disputam profissionais de maior qualificação em “áreas quentes” e que estão no mercado em número relativamente escasso, uma realidade que dá uma vantagem maior de negociação de condições e benefícios para os trabalhadores individualmente considerados.

Além disso, no Brasil e globalmente temos um cenário econômico mais favorável aos trabalhadores, que por conta da diminuição do desemprego, fatores demográficos e tecnológicos, estão com um poder de barganha maior individualmente considerados. Em novembro de 2023, a revista britânica The Economist já anunciava uma “era de ouro” para os trabalhadores nos países ricos:

“Como as coisas mudam. No mundo rico, os trabalhadores enfrentam agora uma era de ouro. À medida que as sociedades envelhecem, o trabalho está se tornando mais escasso e mais bem recompensado, especialmente o trabalho manual que é difícil de substituir pela tecnologia […]

Em um artigo recente, o Sr. Autor [David Autor, MIT] e seus colegas demonstram que os mercados de trabalho americanos apertados estão levando a um rápido crescimento dos salários, à medida que os trabalhadores trocam de emprego em busca de melhor pagamento, e que os funcionários mais pobres são os que mais estão se beneficiando […]

Mercados de trabalho apertados também incentivam os sindicatos a exigir mais tempo livre — para o horror das empresas que já têm falta de pessoal. Os trabalhadores siderúrgicos alemães buscarão uma semana de trabalho de 32 horas nas próximas negociações, abaixo das atuais 35 horas. Na Espanha, um novo governo quer reduzir a semana de trabalho padrão de 40 horas em duas horas e meia. Conforme demonstrado por pesquisas e dados sobre as horas gastas no trabalho, até mesmo os americanos querem trabalhar menos.”

Ora, partindo dessa análise e olhando para o contexto brasileiro, em que o desemprego chegou a taxas mínimas históricas e os salários médios estão crescendo acima da inflação, podemos entender melhor a materialidade econômica das reivindicações pelo fim da escala 6×1. Em certo sentido, a escala é um entrave produtivo porque impossibilita o aumento da qualificação dos trabalhadores, que mal tem tempo de fazer suas necessidades básicas, quanto mais estudar. E é um entrave produtivo porque impossibilita o trabalhador de circular e se vender enquanto mercadoria, o que aumentaria seu valor de mercado por conta da concorrência interempresarial.

Sobre a apropriação das pautas de redução da jornada pelos capitalistas, e até mesmo o seu incentivo, João Bernardo já citou várias vezes como o principal papel da administração é o de antecipar conflitos no trabalho:

“Quem ler as análises publicadas pelos teóricos e pelos técnicos do capitalismo sobre os sistemas de produção e os desafios colocados à administração de empresa depara inevitavelmente com a classe trabalhadora. Nenhum estudo económico pode ser feito sem a ter em conta. Os conflitos que ocorrem nas relações de trabalho, desde os mais passivos e individuais até aos mais activos e colectivos visam, ou pelo menos têm como efeito, perturbar ou interromper o fluxo do tempo de trabalho. E as técnicas de administração visam, no fundamental, evitar ou antecipar as insatisfações e os movimentos reivindicativos, de modo que o tempo de trabalho possa fluir sem interrupções.”

Não surpreende, assim, que uma pauta como a semana de 4 dias de trabalho e 3 dias de descanso tenha surgido como discussão nas empresas “de ponta”, como uma forma de antecipar conflitos e de realizar concorrência interempresarial por uma força de trabalho escassa e valiosa. A nível nacional, temos uma jornada menor de trabalho em países com maior taxa de qualificação e produtividade dos trabalhadores. Austrália, Alemanha e Canadá já contam com uma média de jornada próxima de 32 horas semanais, segundo a OIT, o que já seria na prática a jornada de horas almejada pela demanda 4×3.

Esses “benefícios” que os setores mais produtivos possuem não se limitam à redução na jornada, também temos o home office e os modelos híbridos de trabalho — que na prática diminuem as jornadas ao excluir o deslocamento e aumentam o tempo médio de descanso —, auxílio paternidade estendido, dias de folga a mais no ano… Algumas áreas de tecnologia no Brasil já concedem 8 horas de trabalho semanal como “horas de estudo”, reduzindo o tempo empregado diretamente nas tarefas do trabalho, mas com o objetivo de que isso se reverta em maior produtividade no médio e longo prazo. Além disso, houve recentemente a trend virtual da vida do “CLT Premium”, que seriam os profissionais brasileiros que gozam desses benefícios devido aos grandes ganhos dos setores em que atuam.

Tanto a pauta pela imposição da escala 4×3 nos setores mais produtivos quanto a luta pelo fim da retrógrada jornada 6×1 nos setores que exigem menor qualificação refletem um jogo de forças em que os trabalhadores estão lutando de maneira mais individual do que coletiva, mas o movimento pelo fim da escala 6×1 mostra uma oportunidade de coletivização dessa luta, confrontando diretamente capitalistas e trabalhadores em seus interesses de classe. Quem pensa que esta luta se restringe a uma PEC centralizada em políticos no Congresso Nacional, que possivelmente fracassará, tende a se iludir confortavelmente para “não sujar as mãos”. Não entende que há um novo contexto econômico que pode fortalecer as lutas pela redução da jornada de trabalhado em diversos setores, seja através de projetos de lei, convenções coletivas ou mesmo arrancadas em greves selvagens.

A questão que fica aqui é prática: conseguirão os trabalhadores desenvolver novas formas de relacionamento a fim de obter conquistas históricas como a redução das jornadas de trabalho? A atual forma do movimento, com a repetição das velhas fórmulas de atos de rua centralizados rodeados de personalidades políticas, já demonstra um limite claro que tende a levá-lo à burocratização. Há também a dificuldade de construir laços de mais longo prazo no interior das empresas que adotam a escala 6×1 por conta da maior rotatividade. Talvez nos ilumine em algo retomar as experiências de organização que grupos independentes de esquerda tentaram em setores precários, como foi o caso do Disk Revolta. Independente dos resultados atuais, os trabalhadores continuarão lutando pelo seu próprio tempo.

As fotografias são de Juliana Antunes.

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