Por Um grupo de militantes

Ao longo de 2017, alguns camaradas tentaram organizar lutas em empresas do setor de telemarketing. Uma parte dessas pessoas precisava de emprego e pensava que ali não seria difícil de encontrar, algumas já tinham trabalhado na área por mais ou menos tempo, e de modo geral todos queriam reorientar sua militância para o local de trabalho. Nos animava a perspectiva de nos aproximarmos politicamente de um setor que identificávamos como “mais precarizado”, que escapa à atenção da esquerda e que tem pouca tradição de organização. Enxergávamos ali a possibilidade de construir formas de atuação por fora do sindicalismo oficial, ao qual tínhamos um conjunto pouco formulado de críticas. A pegada era experimentar essas noções na prática – não houve um planejamento preciso do processo, nem uma formulação tão explícita dos pressupostos.

Essa experiência durou pouco mais de um ano, e foi interrompida conforme aquele grupo inicial de camaradas se desagregou. Por um lado, foi um período muito curto para conclusões; por outro, nesse breve tempo nos deparamos com problemas que colocaram em questão os próprios termos da atuação, fazendo com que algumas das nossas ideias iniciais se transformassem e levando-nos à estagnação. O objetivo desse texto é sistematizar algumas dessas reflexões.

Disk Revolta: boletim e página

De saída, o que ficou decidido é que tentaríamos uma atuação combinada com militantes dentro e fora das empresas, e que faríamos um boletim chamado Disk Revolta, que deu nome também a uma página de Facebook.

Na produção do boletim, havia uma preocupação grande em se afastar, tanto na forma quanto no conteúdo, dos materiais que em geral circulam no meio sindical – que, até quando são de grupos de oposição, falam muito mais do sindicato e de suas campanhas do que do cotidiano de trabalho em si. Queríamos nos focar na crítica da exploração nos call centers, evitando chavões “de esquerda” e discussões políticas que não se relacionassem diretamente com o dia a dia, para que qualquer operador pudesse se interessar pelo boletim, seja qual fosse sua posição ideológica.

Essa proposta era vagamente inspirada por concepções da tradição autonomista do movimento operário das décadas de 1960-70, que voltava seu olhar para o processo de trabalho e encontrava no conflito cotidiano travado pelos trabalhadores nos locais de trabalho (corpo mole, sabotagens, embates com as chefias etc.) uma via de luta. Nessa concepção, o boletim cumpriria o papel de elaborar essa experiência, registrando e divulgando formas de resistência desenvolvidas pelos trabalhadores em diferentes call centers – um exemplo histórico de “jornal operário” nesses moldes seria o Combate, que publicava relatos de auto-organização operária nas empresas durante a Revolução Portuguesa. Mas qual o sentido de um “jornal operário” num tempo em que ninguém lê jornal, muito menos jornal impresso? O boletim precisava ter um ritmo de leitura ao qual as pessoas tivessem acostumadas: o ritmo do celular. Por isso a diagramação era inspirada na timeline do Facebook, com blocos curtos de informações em uma folha A4 cortada verticalmente, alternando entre memes e textos breves.

Boa parte desses memes tinham sido criados por operadores de call center; nós encontramos circulando pela internet e reproduzimos. Aos poucos, fomos conhecendo no Facebook uma série de páginas e grupos de trabalhadores de telemarketing, que reúnem milhares de usuários, como a call center da depressão (99 mil seguidores), Telemarketiano (136 mil seguidores), telemarketing da depressão (296 mil seguidores), Casos de call center (119 mil seguidores), entre outras. Nesses fóruns, operadores do país inteiro discutem e ironizam a rotina nas empresas do setor; compartilham desabafos, piadas, histórias, dicas, zoeiras, conselhos e denúncias. Para nosso trabalho político, essas páginas serviram como fonte de inspiração, informação e contatos. No entanto, num balanço crítico, cabe a provocação: diante delas, qual o sentido de uma pequena página “militante” como a do Disk Revolta, com menos de 2 mil seguidores? Em certo sentido, essa rede subterrânea virtual nacional, feita pelos próprios trabalhadores do setor, parece já realizar, na prática, a proposta organizativa dos operaístas dos anos 1970; sem que isso implique, todavia, na existência de um grande movimento subversivo contra os patrões.

Dificuldades para a organização

A diferença, podemos responder, é que o Disk Revolta se propunha a ser mais do que um canal de comunicação. Propunha um passo além: deveria servir para organizar. Mas como seria essa organização? Via de regra, a atuação da esquerda brasileira em locais de trabalho se volta para a estrutura sindical – o que já pressupõe um caminho a se seguir: aproximar um certo número de trabalhadores para montar um grupo de oposição, inscrever a chapa, disputar eleições etc. Ao negar o aparato sindical, ficamos sem respostas prontas sobre como se organizar.

Ao longo da atuação do Disk Revolta, nunca chegamos a uma resposta definitiva. No entanto, podemos enxergar que existiam misturadas duas perspectivas organizativas, que muitas vezes se confundiam entre si. Uma pensava o Disk Revolta como um instrumento de organização, à disposição dos trabalhadores; nesse sentido, a parte da comunicação e uma “face pública” (boletim e página de Facebook) assumiam um lugar central. A outra ia no sentido de construir um coletivo de trabalhadores de telemarketing; para isso precisávamos “aproximar” operadores que idealmente se tornariam militantes do Disk Revolta.

Essa segunda perspectiva dependia de uma inserção orgânica dos militantes no setor, trabalhando nas empresas, criando vínculos com colegas de trabalho, politizando problemas do cotidiano, formando grupinhos… Porém, logo nos depararíamos com uma questão que se mostrou central nesse setor: a rotatividade. Todo mundo que entrou em empresas saiu muito rápido. Outra parte não chegou a conseguir emprego, contrariando a visão que tínhamos de que era fácil ser contratado no telemarketing, já que o trabalho não exige muita qualificação e a quantidade de vagas seria bastante grande. Essa ideia talvez correspondesse à situação desse mercado na década passada, mas hoje é comum ver pessoas procurando vagas em call centers por muitos meses. Quando encontram, é na maioria das vezes para trabalhar no “ativo” – isto é, no setor que faz as ligações (para vendas, cobranças etc.) –, via de regra muito mais desgastante que a função de “receptivo” (que atende ligações dos clientes). Além da conjuntura geral de altas taxas de desemprego, parece existir uma tendência de migração dos serviços de atendimento ao cliente para a internet, aplicativos ou robôs.

Outro movimento aparente é a retração do mercado na capital e na região Sudeste em geral, com a transferência das grandes empresas para o interior e para o Nordeste, onde há incentivos por parte do poder público e é possível pagar um salário e vale-alimentação ainda mais miseráveis. Cada vez mais, as vagas que conseguíamos em São Paulo eram nos postos mais estressantes – no ativo, ou que demandavam familiaridade com procedimentos e softwares complexos –, ou eram em empresas menores – hospitais ou empresas de crédito que tinham call centers próprios, não terceirizados –, em que o nível de conflito é menor e a perspectiva de construção política também.

Esse cenário pode nos ajudar a entender por que a presença de militantes no interior das grandes empresas terceirizadas acabou sendo sempre inconstante. Ainda assim, as curtas experiências internas foram o suficiente para comprovar a conflituosidade do setor: desde o treinamento, por exemplo, já víamos colegas reclamando, entrando em bate-bocas com chefias… Sem causar grandes abalos, esses conflitos acabavam parecendo um componente normal do funcionamento da produção, quase que já previsto nos cálculos dos gestores. Rapidamente ficávamos sabendo, também, de histórias de mobilização (“no ano passado, os estagiários de TI do andar de cima tentaram paralisar…”) e fazíamos contato com pessoas que se interessavam por se mobilizar – algumas até se aproximaram do Disk, mas logo também elas saíam do call center e iam trabalhar em outros setores.

Entre as histórias de lutas, nos inspirava o relato de um companheiro que em 2007 trabalhara numa empresa na Barra Funda e, diante de um aumento abusivo na meta de vendas para atingir o bônus, organizou um dia de paralisação. Ao invés de entrar na operação, toda a equipe foi para um posto de gasolina beber e tocar pagode, deixando o supervisor em apuros e forçando a empresa a recuar. No relato, ele destacava como os laços entre os colegas de trabalho tinham sido fundamentais para se mobilizarem coletivamente – o pagode no posto, por exemplo, era algo que eles já tinham costume de fazer no fim do expediente. Acontece que o clima que ele descrevia de 2007, em que os operadores tinham formado uma verdadeira gangue que zoava o supervisor a todo momento e sem pudores, parecia muito distante daquele que encontramos nas operações em que estivemos em 2017. Como apostar numa estratégia de criação de vínculos entre colegas se não conseguimos nos manter colegas por muito tempo?

Os conflitos na Contax do Brás

Para ilustrar o problema da rotatividade, vale contar um episódio que aconteceu na Contax, empresa terceirizada grande localizada na região do Brás, que hoje mudou de nome para LiQ. Um camarada havia sido contratado lá, numa operação terceirizada para uma empresa de planos de saúde. Porém, assim que acabou o treinamento de 14 dias, a empresa demitiu inteiro o grupo de trabalhadores que havia sido contratado. Não receberam nenhuma explicação: provavelmente a empresa médica tinha desistido do produto. A Contax não considerou realocá-los em outra operação. Para piorar, não pagou o FGTS relativo a essas duas semanas de trabalho (algo em torno de cem reais).

No dia da demissão, nosso companheiro gravou um vídeo denunciando o absurdo, e depois continuou tentando fomentar alguma ação através de um grupo de WhatsApp que eles tinham. Os demitidos pressionaram o RH com mensagens durante alguns dias. Fizemos um panfleto, uma faixa e organizamos uma batucada na porta da empresa, forçando o RH a descer e vir conversar. No dia seguinte, depositaram o dinheiro do FGTS não pago. Tivemos aí talvez nossa primeira “conquista”, mas talvez pouco relacionada a uma mobilização de fato daqueles trabalhadores.

Diante das dificuldades em manter o trabalho interno, a atuação do Disk Revolta foi se tornando sobretudo externa, fazendo panfletagens em um grande número de empresas em São Paulo. Há um vazio de atuação política muito grande na categoria. Por conta disso, e também por declararmos que não éramos do sindicato, que em geral é muito mal visto, o boletim do Disk Revolta era bastante aceito e começou a se tornar uma referência em algumas empresas.

Mais ou menos na mesma época, conhecemos outra operadora da Contax que, após encontrar um boletim largado dentro empresa, nos procurou no Facebook contando que há pouco tempo tinha feito um abaixo-assinado com outros trabalhadores. Nas palavras dela:

Nos três primeiros meses de 2017, nos parecia que a exploração atingira seus níveis mais alarmantes: variáveis retiradas, metas aumentadas nas últimas semanas, imposição de novos métodos sem o treinamento devido, coação dos supervisores, setor ativo fazendo receptivo. A alta demissão de operadores sem a reposição devida também impactava diretamente no nosso trabalho, consequentemente as filas aumentaram chegando a incríveis picos de 80 ligações no período de 6h20, um ritmo de uma atrás da outra do período das 8h30 às 13h50, quando saíamos. A situação não poderia esperar. Resolvemos agir produzindo uma carta denunciando tudo aquilo o que acontecia de errado na central, tudo aquilo o que não estava de acordo com a Norma Regulamentadora 17 (NR 17) e pedindo uma conversa com a gerência e uma solução para os problemas. Tudo com a sabedoria dos operadores da manhã, que apoiavam a carta.

Ironicamente, no dia em que marcamos de encontrá-la, ela chegou com a notícia da sua demissão – era a última a ser mandada embora desse grupo que organizou o abaixo assinado. Ainda assim, resolvemos fazer alguma coisa.

Algum tempo depois, alguns operadores que não tinham se envolvido tanto com o caso do abaixo-assinado quiseram voltar a se mobilizar, pois o trabalho estava realmente insuportável. Esse grupo pensou em novamente escrever uma carta coletiva e mandar para a gerência, mas nós tentamos discutir com eles que não parecia uma boa ideia, já que o efeito imediato da carta anterior tinha sido a demissão de todos os que entregaram. Sendo assim, organizamos novamente uma panfletagem com instrumentos e uma grande faixa na porta da empresa. Dessa vez, levamos um material que tratava de uma série de questões bem específicas sobre as condições de trabalho, como a falta de micro-ondas e o péssimo estado de limpeza daqueles que existiam. Após alguns dias de panfletagem, que geraram um pequeno alvoroço dentro das operações, a empresa colocou mais micro-ondas. Outro efeito dessa ação foi o aparecimento do sindicato, coisa rara no cotidiano do telemarketing. Eles distribuíram, durante alguns dias, um material dizendo que estavam pondo em prática um programa de melhoria para a Contax e que os trabalhadores poderiam contar com eles para resolver seus problemas.

Denúncias e clientelismo

Embora na época isso não fosse formulado dessa maneira, um militante descreveu nossa atuação nos seguintes termos:

Desde o início, a forma que foi se desenhando na nossa atuação nos call centers carrega uma característica contraditória, herdada das nossas outras experiências de luta: em grande medida, o trabalho era de “agitação e propaganda” mais do que qualquer outra coisa, mesmo que se tratasse de agitação e propaganda bem pensadas para as situações concretas daquele local de trabalho. O boletim, a página e as panfletagens, com as conversas que elas envolviam, pareciam ser instrumentos para apoiar e, em alguma medida, elaborar, evidenciar, as disputas cotidianas dos trabalhadores com o objetivo de reunir alguns trabalhadores e fortalecer essas disputas, esperando que alguma delas (com a qual tivéssemos algo que ver ou não) explodisse em algum tipo de revolta para a qual poderíamos contribuir.

Pegávamos contatos de pessoas com quem a conversa desenrolava mais nas panfletagens, ou que haviam mandado denúncias pela página do Facebook, e tentávamos marcar de encontrá-las no caminho para o trabalho, no intuito de estabelecer algum vínculo. Isso deu certo em pouquíssimos casos. Na maior parte das vezes, quando conseguíamos marcar essa primeira conversa, havia um desencontro de expectativas. De um lado, esse operador com quem estávamos falando imaginava que de alguma forma a gente iria resolver o problema dele. Do outro lado, nós queríamos ajudar a pensar alguma forma de ação coletiva dentro da empresa. Não queríamos fazer nada por ninguém, e também tínhamos muito pouca condição para isso. O Disk Revolta corria sempre o risco de se tornar um disk-denúncia – o próprio nome induzia à confusão, e a galera frequentemente chamava errado.

É claro que essa expectativa por assistência era produzida pela forma como estávamos atuando. Na prática, o que acontecia é que os trabalhadores do telemarketing nos viam como um órgão externo, não construído por eles, ao qual eles faziam denúncias das barbaridades que estavam enfrentando e esperavam algum encaminhamento. Nós cultivamos isso, incentivando essa produção de denúncias e de fato nos propondo a lidar com elas – não com suporte jurídico ou algo do tipo, mas com “agitação”. O que era mais comum era a gente fazer um panfleto específico para aquela empresa, falando de um ou mais problemas bem concretos e ir distribuir. Esperávamos envolver alguns operadores na produção deste material, especialmente aqueles que tinham nos procurado, mas muitas vezes isso não acontecia. Por vezes chegamos até a ter “conquistas”, mas é difícil saber se de fato estavam relacionadas àqueles episódios de “mobilização”. De alguma maneira, nós percebíamos essa contradição mas não conseguimos superá-la. Muitas vezes concordamos que deveríamos reorientar nossa prática, mas aí chegava uma nova denúncia horrorosa, que nos deixava aflitos para tentar ajudar, e já estávamos repetindo o mesmo roteiro.

Quando começamos essa atuação, parecia que para não ter uma prática sindical bastaria não querer formar uma oposição. Mas terminamos percebendo que, mesmo fora do aparato sindical oficial, ao estabelecer relações clientelistas, acabávamos atuando como se fôssemos um sindicato não oficial – só que muito mais precário, com a diferença de que nunca tivemos uma estrutura jurídica capaz de prestar toda a assistência que seria necessária aos operadores.

Afinal, é nosso papel “resolver” cada problema denunciado por cada trabalhador? Hoje, para nós, parece claro que essa não deve ser a finalidade de uma organização militante. A necessidade de “solução” para os problemas só assume sentido político na medida em que move um enfrentamento travado coletivamente pelos trabalhadores. A denúncia não pode se dissociar de uma perspectiva de auto-organização. Se nossa perspectiva não for essa, então talvez valeria mais a pena voltar a pensar em aderir ao sindicato para construir uma estrutura de assistência efetiva. O impasse diante dessa questão, na época, talvez tenha sido um dos fatores cruciais para a desagregação do grupo.

A luta na Teleinformações de Recife

Dentre os conflitos que nos envolvemos, um caso interessante foi o apoio que prestamos à luta dos trabalhadores da empresa Teleinformações em Recife. Desde junho de 2017 a empresa, que prestava serviços para a Vivo (operadora de telefonia), estava em falência e vinha demitindo funcionários. Naquela época houve um contato inicial via redes sociais com o Disk Revolta. No final do ano, veio outra onda de demissões em massa e atrasos no pagamento do vale-transporte, à qual os trabalhadores reagiram. Paralisaram a operação, fizeram atos de rua e chegaram a invadir coletivamente o RH da empresa para cobrar o pagamento do FGTS e a regularização das demissões, já que estava tudo sendo feito de maneira ilegal e a empresa demorou muito para dar baixa na carteira de trabalho de algumas pessoas. Daqui de São Paulo, prestamos a solidariedade que era possível, contribuindo com a parte de comunicação da luta. Diariamente, publicamos notícias e relatos de trabalhadores a respeito do assunto e ajudamos na divulgação dos atos que eles marcavam. Produzimos também um panfleto para que distribuíssem por lá e aos poucos passamos a discutir com eles os passos daquela luta, através de grupos de WhatsApp; daí surgiu, por exemplo, a ideia de organizar uma arrecadação de alimentos para ajudar os trabalhadores demitidos.

No meio disso, uma camarada daqui viajou a trabalho para Recife e aproveitou para ir até a Teleinformações conhecer o pessoal. Gravou pequenas entrevistas com eles, que foram usadas como material de divulgação, e estreitou alguns vínculos. O relato que ela nos trouxe de lá é que esse tipo de revolta não é incomum, que existe na empresa um certo clima de insubordinação constante e que a gerência tem dificuldade para impor disciplina aos trabalhadores. Questionado sobre a paralisação, um operador que fumava na grade da empresa – e que já tinha estourado o tempo de pausa há muito –, respondeu: “de qual delas você tá falando?”. Talvez esse ambiente menos controlado nas operações de telemarketing do Nordeste possa ser explicado pelo fato do setor estar lá ainda num período de expansão e reestruturação, com pequenas empresas dando lugar a grandes grupos, como a Almaviva do Brasil.

Operadores de telemarketing e ex-funcionários da Teleinformações realizaram, em janeiro de 2018, uma manifestação contra a Vivo e a empresa de call center contratada pela operadora para atuar em Pernambuco.

As disputas na Teleinformações de Recife se estenderam por alguns meses, mas o desfecho dessa luta não foi animador. Com muita lentidão, através do sindicato, uma parte dos trabalhadores conseguiu a baixa na carteira e o pagamento dos seus direitos; outra parte, entretanto, não conseguiu – a empresa inventou algum argumento mirabolante para não pagá-los. Até onde sabemos, não se consolidou entre essas pessoas nenhuma forma duradoura de organização depois da luta, e nós aqui de São Paulo também mantivemos contato com eles por pouco tempo depois que tudo esfriou. Bom, nós sabíamos o limite que poderia ter essa atuação à distância. Ainda assim nos parecia que, além de tentar ajudar da forma que pudéssemos, era importante observar mais de “perto” esses conflitos para aprender suas dinâmicas e, acima de tudo, considerávamos que uma tarefa fundamental dos militantes era divulgar essas pequenas experiências de luta e tentar colocá-las em contato com trabalhadores de outros lugares, que eventualmente também já tinham travado ou estavam travando conflitos em seus locais de trabalho.

Desafios da rotatividade

Ao longo do ano em que mantivemos essa atuação nos call centers, fomos descobrindo várias histórias de paralisações e outros enfrentamentos coletivos que aconteciam de maneira “espontânea” por aí, e sempre tentávamos ir atrás deles para poder, no mínimo, noticiá-los. Panfletando na porta de outra empresa, ficamos sabendo de uma paralisação organizada autonomamente por operadores de um produto bancário na Atento da Liberdade:

Tudo iniciou-se por conta da imposição de metas absurdas, onde eles de uma hora pra outra subiram sem nem ao menos nos informar. Fizemos uma paralisação. Nosso supervisor nos chamou para passar a meta. Gerou uma discussão, pois ela subirá a mais de 20% mas nossos recebimentos eram os mesmos, daí alguém falou que não concordávamos e que se fosse o caso pararíamos… De repente, só o papelzinho “amanhã faremos greve, quem topa???” Seguramos a entrada no dia seguinte, só não os novos pois esses foram coagidos. (…) Sobre o que conseguimos? Reduzimos a meta um mínimo. (…) A paralisação da Alelo foi pra eles sentirem no bolso assim como nós sentimos… Mandaram alguns de nós embora na intenção de fraquejarmos, mas a luta continua… Estamos focados na mesma coisa, de ter o direito a um salário digno.

Quando fomos à empresa para tentar descobrir mais, já passava um mês desde o ocorrido. A essa altura, a redução da meta tinha sido revertida, os principais envolvidos na luta tinham sido demitidos e o sindicato aparecera para apaziguar os ânimos. Mais um caso que nos confirma o quanto, por um lado, a revolta atravessa o trabalho no teleatendimento; e o quanto, ao mesmo tempo, ela parece fugaz.

Aos poucos, a questão da alta rotatividade do setor, com a qual nos deparamos desde os primeiros passos, começou a se tornar mais claramente um impasse à nossa atuação. Isso nos fez perceber os limites da atuação específica em uma categoria que tem essa dinâmica. Encontramos na atuação no telemarketing uma contradição: como fazer um trabalho de longo prazo num setor altamente rotativo, no qual o emprego não é uma perspectiva de longo prazo? Levantamos a hipótese de que seria possível adaptar nossa militância a essa rotatividade, assumindo que o call center pode ser um ponto estratégico para se fixar visando a organização desse “proletariado de alta circulação” – o operador sai de uma empresa e vai para outra; se demite, não consegue outro emprego e volta pro telemarketing; vai fazer faculdade, tenta emprego na sua área e não consegue, aí volta pro call center.

Nesse sentido, o que nos interessava no telemarketing era entrar em contato com um certo setor da classe, esse jovem proletariado do setor de serviços, mais do que a categoria em si. Um setor que talvez expresse as transformações na composição da classe e que esteve presente em mobilizações fora dos limites institucionais – como as manifestações históricas de junho de 2013. A combatividade constatada nas ruas naquele ano, porém, talvez não tenha correspondência automática dentro dos submundos dos locais de trabalho, onde parece imperar a desagregação.

Ao tentar organizar esse mundo do trabalho sob demanda, observou outro camarada, corremos o risco de nos acomodarmos a uma militância sob demanda:

Sob a pressão real de uma conjuntura de refluxo o interesse pela recomposição da classe pode também se converter em argumento destinado a encobrir dificuldades de avanço, lacunas internas de organização, vícios políticos. Vigilantes, estudantes endividados nas universidades privadas, motoboys na luta contra as empresas de aplicativo, trabalhadores da Telecom, Uber etc. são índices de um olhar voltado para a reorganização da classe, algo que precisamos desenvolver e aprofundar coletivamente, sob pena de flutuar sem pouso numa espécie de “militância freelance” que ameaça absorver os sintomas de anomia e desagregação intrínsecos à própria precarização das condições de trabalho.

A reflexão deixada pela experiência do Disk Revolta ao longo de 2017 termina por nos colocar, então, um duplo desafio. Por um lado, como construir um movimento de trabalhadores que não se deixe restringir pelos marcos de categoria, que empurram a uma dinâmica corporativa e limitada? Por outro, como evitar que nossa organização assuma uma lógica clientelista, em que um grupo militante se destaque dos trabalhadores e seus problemas – sendo colocado, assim, no lugar de quem pode resolvê-los? Uma observação importante para encarar essa questão é de que esses militantes também são trabalhadores, ainda que de outros setores. Ou seja: não existem internos e externos, estamos todos no mesmo jogo. O que significa, na prática, tentar desenvolver essa relação auto-organizativa?

3 COMENTÁRIOS

  1. excelente balanço.
    algumas ideias: primeiro, acho exagerado falar em clientelismo. A verdade é que o pequeno grupo de militantes não tem uma estrutura possível de servir de modo clientelar. Da mesma forma que arrecadar fundos ou até comida para trabalhadores/as demitidos não é clientelar, a solidariedade na agitação não é clientelar. A questão, ao meu ver, é como o grupo atua: de fato, sair buscando conflitos pode ser uma boa forma de investigar, mas os contatos que se fazem assim, de maneira pragmática, são difíceis de se manter. Porque de fato isso é o que o sindicato faz, lida de maneira extremamente pragmática com sua base (para bem ou para mal); acredito que uma perspectiva de construção diferente tem que levar em conta uma construção de vínculos de mais médio e longo prazo. É qualitativamente diferente a solidariedade e mobilização que se possa fazer em apoio a desconhecidos, em comparação a quando existem companheiros/as implicados diretamente na luta, nem que seja 1 pessoa só num grande coletivo de trabalhadores/as.
    O que me leva a uma segunda questão, também bem comentada no texto, que é o foco na categoria. Não me parece ser um erro, ainda que de certa forma repita o molde sindical, mas deve ser uma escolha estratégia – como de fato parece ter sido. Mas aí o que entra em questão é justamente, digamos, o que oferecemos aos/as trabalhadoras? Se bem temos uma leitura “avançada” de que um conflito num lugar de trabalho é o gérmen de qualquer revolução, para a maioria dos e das trabalhadoras se trata apenas de um problema em suas vidas pessoais. Então, como grupo de militantes, acredito que não basta apoiar e investigar lutas específicas. É necessário oferecer mais aos companheiros e companheiras trabalhadoras, é necessário oferecer uma outra perspectiva, uma outra sociabilidade, uma outra forma de utilizar o tempo. Espero que não soe como se isso fosse fácil. Também não se trata de “chamar para as atividades do partido”, mas sim ter algo mais para oferecer do que a promessa de normalização das condições de trabalho. Gostaria de perguntar ao grupo, ou melhor, aos e as companheiras que participaram nele, como veem essa questão. Todos os contatos se perderam? Quais foram as dificuldades de manter esses contatos? Não foi possível transformar essa relação pragmática em um nível um pouco mais alto de confiança? Alguma pista nesse sentido?

  2. Entrei para meu sindicato aos 30 anos, em uma categoria já envelhecida e que ficou mais ainda pelos cortes de novas contratações, e lendo isso parece mais aqui do que eu imaginaria. Tenho 32 e há dois anos tendo fazer algo no local, com os colegas, seja politizando diminuição da copa e retirada dos micro-ondas, mudança de local de trabalho do nada, até salários e condições de estabilidade mesmo. E tenho encontrado apatia ou busca por resolução de problemas do outro, ao invés de auto-organização. Mesmo coisas simples de fazer são muito difíceis de tentar organizar. O cenário é complicado para organização de trabalhadores. Agradeço pelo relato.

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