Por João Rodrigo V. Martins
A literatura especializada no campo de estudos das políticas culturais quando analisam a relação entre neoliberalismo e políticas públicas culturais se debruçam majoritariamente, para não falar exclusivamente, na análise das leis de incentivo fiscal à cultura, com destaque para a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991) cuja implementação ocorreu por meio do Programa Nacional de Apoio à Cultura em 1991 (BARBALHO, 2007; BOTELHO, 2001; OLIVERI, 2004; RUBIM,2007). Em outras referências da área, observa-se um pressuposto e em alguns casos uma conclusão de que as políticas públicas da cultura financiadas por orçamente direto – Proac direto, Fomento à Periferia, Lei Aldir Blanc, Cultura Viva, entre outros – geridas via edital, se contrapõe a diretrizes da política neoliberal (ALBUQUERQUE, 2007; CALABRE,2007). Ambas as interpretações se baseiam em pressupostos naturalizados que culminam em duas hipóteses principais: uma de caráter teórico, relacionada a definição de neoliberalismo, e outra de natureza epistemológica, na forma de analisar e compreender o Estado no capitalismo.
A primeira hipótese que associa exclusiva ou majoritariamente neoliberalismo a políticas de isenção fiscal partem do pressuposto de que a redução do investimento público direto em cultura, aliada à transferência das decisões sobre financiamento cultural para os departamentos de marketing das empresas, representa a materialização do neoliberalismo no Brasil no campo das políticas culturais. Essa visão é reforçada pelo contexto histórico da década de 1990, período em que a Lei Rouanet foi implementada e que houve o fortalecimento de políticas neoliberais nos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. O neoliberalismo, nesse sentido, é entendido um dogma ideológico, formulado no Colóquio Walter Lippmann [1], ou como um conjunto de políticas econômicas desenvolvidas por economistas e instituições financeiras, articuladas no Consenso de Washington, para aplicar regimes de austeridade. Esses regimes seriam caracterizados pela predominância do mercado, redução do Estado e diminuição dos gastos públicos, privatização, desregulamentação e financeirização da economia. Assim a manifestação do neoliberalismo na área cultural se daria por meio das leis de incentivo fiscal.
A segunda hipótese repousa em uma concepção específica de como estudar e compreender o Estado. O Estado é visto como instituição em oposição à tirania do mercado e ao neoliberalismo. As políticas públicas de cultura, quando financiadas diretamente pelo Estado – por meio de editais, com comissões de avaliação eleitas ou selecionadas e repasses de orçamento diretamente aos contemplados, sem qualquer intermediação com a iniciativa privada – são interpretadas como expressão de uma política com vocação pública e, portanto, não alinhada ao neoliberalismo. Aqui, o ponto central é a influência da iniciativa privada na determinação do que será financiado e, consequentemente, do que é reconhecido como cultura.
É comum pensar que o neoliberalismo é contrário a políticas públicas. No entanto, é importante destacar que Friedrich Hayek (2011), um dos principais representantes da escola austríaca do neoliberalismo, defendia a implementação de uma política de renda mínima universal.
No interior do neoliberalismo questões como a concepção de indivíduo, a dinâmica que caracteriza a sociedade e a economia, são amiúde resumidas ao debate em torno de ser a favor ou contra a intervenção do Estado na economia. Contudo a questão central do neoliberalismo reside na natureza da intervenção governamental (DARDOT, P.; LAVAL, C., 2016). Dado isso cabe a reflexão sobre as intencionalidades e finalidades das políticas públicas em um contexto neoliberal.
Neste breve ensaio antropológico, aborda-se a imbricada relação entre políticas públicas de cultura e a subjetivação neoliberal gera pela lógica da gestão no campo cultural.
Ver como o Estado
As abordagens mais hegemônicas da teoria política sobre o Estado tendem a reificá-lo, isto é, coisificam o Estado como uma entidade substantiva, autoevidente e organizado em instituições formais. Associado a isso esse enfoque constrói o Estado como instituição distinta e separada da sociedade e da economia, como se essas fronteiras fossem naturalmente dadas, incontestáveis e não construídas politicamente ou por um cânone moderno e liberal (TROUILLOT,2006). Ao assumir essa hipótese como verdade, abdica-se de realizar a exegese do Estado, aceitando um princípio teórico-epistemológico como realidade natural (MITCHELL,1999).
A antropologia ao encarar o Estado como objeto de análise rompe com as perspectivas reificadas e propõe examiná-lo através de seu fundamento ideológico, ideia de Estado, e de suas práticas de governar os sujeitos.
Para a antropologia, o Estado é entendido como uma proliferação de práticas de poder diversificadas, sustentadas por discursos e ações simbólicas, capazes de construir o próprio Estado como uma ideia naturalizada e socialmente aceita.
Nesse contexto, o papel da antropologia é examinar os processos de ocultamento que cristalizam esses discursos e ações, separando o Estado da economia, pois “O Estado não é a realidade que está por trás da máscara da prática política. Ele é, em si mesmo, a máscara que nos impede de ver as práticas políticas como elas realmente são” (Abrams, 1988, p. 82, tradução do autor).
Michel-Rolph Trouillot (2006) e James Scott (1998) defendem que as práticas de governo poder ser apreendidas a partir de seus efeitos. Uma forma de compreender esses efeitos é por meio do princípio da legibilidade, que organiza e padroniza a complexidade da vida social, criando procedimentos imprescindíveis para o funcionamento das estruturas sociais. Esse princípio transforma uma realidade inexoravelmente complexa em uma ordem administrável e controlável. Diante da impossibilidade de incidir diretamente sobre toda a dimensão do mundo social, o Estado busca administrar a realidade por meio de abstrações, elaboradas através de tecnologias de gestão e controle. Essas categorias de gestão e controle ao estruturar e delimitar a realidade também produzem processos de legitimidade e aceitação social sob preceitos de caráter técnico e neutro. Por serem produzidas como efeitos de Estado, essas construções ganham o status de verdades, influenciando inclusive a subjetividade dos indivíduos, dificultando ações de resistência e contra-hegemônicas.
A noção de governamentalidade, desenvolvida por Michel Foucault (2023), refere-se a uma forma de poder chamada de governo, que se distingue das formas de soberania e disciplina. Essa forma de poder introduziu uma série de aparelhos específicos de governo e saberes voltados para regular os sujeitos por meio da condução de suas condutas. Nesse modelo, a população é o alvo, a economia é o saber central e os dispositivos de segurança são os instrumentos utilizados. Autores como Timothy Mitchell e James Ferguson partilham dessa perspectiva da governamentalidade, ou seja, entendem o Estado por meio das práticas de governar os sujeitos em liberdade.
Timothy Mitchell (1999) argumenta que o Estado é simultaneamente uma força material e ideológica, condensando uma variedade de práticas materiais cotidianas que assumem a aparência de uma forma abstrata e não material. Por exemplo, a arquitetura e simbologia de um prédio público constituem uma realidade material, mas o vínculo entre esses elementos concretos e a ideia de Estado é fabricada por uma abstração. Além disso, Mitchell defende que para compreender os mecanismos de poder, é necessário ampliar a análise para além do Estado. Essa abordagem permite identificar os efeitos de Estado também na iniciativa privada, em organizações transnacionais e em contextos que transcendem o Estado-nação.
A separação entre Estado e economia, nesta lógica, é delineada com o propósito da manutenção de uma determinada ordem social, política e econômica. Não se trata de uma mera ilusão, mas de uma construção tanto material quanto simbólica. A Lei Rouanet ilustra bem essa fronteira, pois é uma política pública de incentivo à cultura financiada com dinheiro de isenção fiscal de grandes empresas, como por exemplo bancos e o capital financeiro. Essas fronteiras foram estabelecidas para mascarar a terceirização, o papel da iniciativa privada, em particular os departamentos de marketing das empresas, nos processos decisórios relacionados ao financiamento cultural, e o nada simples procedimento de aprovar um projeto e depois captar os recursos. e que todo esse processo se dá com dinheiro de isenção fiscal. Nesse contexto, há uma seleção do que se define como cultura digna de financiamento, além de uma lógica de relações de trabalho e produção artística que privilegia determinados grupos artísticos, àqueles geridos enquanto empresas, enquanto exclui outros que não se adequam a esse modelo.
James Ferguson (2006), em sua pesquisa realizada em Lesoto, um pequeno país da África Austral, demonstra como as políticas de promoção do desenvolvimento, financiadas por organismos multilaterais como o Banco Mundial, acabam gerando efeitos de consolidação do poder de Estado. Essas políticas não têm como objetivo eliminar a pobreza, mas expandir o alcance do poder burocrático, utilizando a pobreza como ponto de partida para a ampliação das práticas de poder.
No que diz respeito às políticas públicas, há um senso comum, propagado e cultivado por manuais a partir de um encadeamento lógico de ações que tem início na identificação do problema (análise contexto, diagnóstico, envolvimento das partes interessadas), formulação (definição de objetivos, análise de impacto, seleção), desenvolvimento de planos (planejamento, definição de recursos, criação de instrumentos), implementação (execução das ações, coordenação), monitoramento e avaliação (monitoramento, avaliação e análise de desempenho), revisão e ajustes e, por fim, documentação. Essa abordagem é formalista e linear, ou seja, estabelece uma linearidade e um movimento mecânico entre as etapas. Parte da proposta desse artigo é caminhar por outra abordagem – a antropológica, conforme dito – isto é, observar as políticas públicas pela sua força de legibilidade (SCOTT, 1998) e como ferramentas de intervenção e ação para gerenciar, mudar a sociedade e expandir as práticas de governo (FERGUSON, 2006; SHORE,2009). A política pública pode funcionar metonimicamente como o mito (MALINOSWKI, 1955) ou seja, são fenômenos políticos e culturais que agem como guia de ação, pois tem implicações econômicas, morais, ensejando um conjunto de novas relações, embora sejam dissipados como de objetivos neutros, racional-legais.
A partir da década de 1990, as políticas públicas passaram a ser um objeto relevante para a antropologia, principalmente por dois motivos. Em primeiro lugar, elas assumiram um papel central na regulação e organização das sociedades contemporâneas, além de contribuírem para a formação de identidades individuais e coletivas. As políticas não apenas atribuem identidades específicas a indivíduos e grupos, mas também funcionam como espaços para a emergência de novas subjetivações. Em segundo lugar, as políticas públicas influenciam e estruturam a forma como nos comportamos, impactando até mesmo os espaços mais íntimos e privados de nossas vidas.
Nesse contexto, as políticas públicas situam-se em um campo interdisciplinar, permitindo diversas formas de reflexão e abordagem no âmbito da cultura, cada uma com suas próprias contribuições. Este artigo propõe a ter uma abordagem antropológica, o que, por sua vez, nos direciona para outros paradigmas. Assim, surgem as perguntas: como a antropologia pode contribuir com esse debate? O que caracteriza um olhar antropológico sobre as políticas culturais? Para refletir sobre isso é necessário examinar alguns outros temas como Estado e políticas públicas a partir do arcabouço antropológico já existente.
A razão neoliberal
Nas ciências humanas, principalmente na ciência política e sociologia, há uma vasta produção teórica sobre o neoliberalismo, desde a perspectiva dos próprios teóricos neoliberais, como Theodore Schultz (1983), Friedrich August Von Hayek (1994), Milton Friedman (1962), passando pela visão marxista com David Harvey (2005), Ricardo Antunes (2020), Virgínia Fontes (2010), à abordagem de Michel Foucault (1979; 2008a; 2008b), de Pierre Bourdieu (1998), dentre outras que assimilam diversas contribuições, como Pierre Dardot e Christian Laval (2016) e Wendy Brown (2015; 2019). Quando se refere à antropologia a produção não é tão extensa e em geral encontra-se reflexões a partir de variações conceituais de base foucaultiana, como Aihwa Ong (2007), Akhil Gupta (2012) e James Ferguson (2009) ou bourdieusiana com Loic Wacquant (2012).
Para a etnografia, o uso descritivo da categoria neoliberalismo e a visão de tratá-la unicamente como política econômica é um empecilho por uma dupla razão: pelo fato de tomá-la como um corpo doutrinário que se aplica a regimes políticos, a ideologias e a práticas econômicas; por considerar sua atuação tão somente no plano econômico e desconsiderar sua atuação simbólica e nas subjetividades. Em termos gerais a epistemologia marxista, talvez o referencial teórico-epistemológico a partir do qual mais se produza sobre o neoliberalismo, caminha nesse rumo, apresentando quatro abordagens sempre com uma preocupação sistêmica e indissociáveis do imperialismo e globalização, segundo Alfredo Saad Filho (2015). A primeira concepção parte da compreensão de que neoliberalismo é uma doutrina (CAHILL,2013,) estruturada na Sociedade Mont Pelérin [2] e que as experiências concretas derivam desse campo das ideias. A segunda leitura entende que o neoliberalismo é uma política-econômica que se sustenta nas teorias da Escola de Chicago (SAAD FILHO, JOHNSTON,2005). A terceira perspectiva o concebe como uma ofensiva da burguesia internacional liderada pelo Estado com o escopo de reestabelecer a dominação de classe e se recuperar da queda tendencial das taxas de lucro a partir do imperialismo (HARVEY, 2005). Enfim, encontra-se também, por fim, a interpretação de que o neoliberalismo é um sistema de acumulação baseado na financeirização da economia.
Tais abordagens tem uma topologia macroestrutural, de cima para baixo (GAGO, 2018), segundo a qual dificilmente se observa dimensões simbólicas e ações de sujeitos no cotidiano do trabalho, exceto grandes atores como organizações transnacionais, instituições financeiras, Estados ou a reificada figura da burguesia internacional, vista como homogênea e coesa. Ainda, ao deter o neoliberalismo como um conjunto de ideias ou uma política econômica não se compreende os agenciamentos sociais e as dinâmicas culturais que vão ser fundamentais para interpretação, sentido e usos para e do neoliberalismo.
O neoliberalismo elaborou uma racionalidade governamental (FOUCAULT,2006) que atingiu a cultura, quer dizer, fomentou por meio das políticas culturais uma nova ação para orientar a conduta dos sujeitos, criando uma adequação entre princípios de governo, tecnologias de poder e gestão dos indivíduos. Essa racionalidade política se expande por meio da governamentalidade (FOUCAULT,1979), ou seja, ela se dissemina através do exercício de uma forma específica de poder, chamada governo, que almeja a condução das condutas por meio de um conjunto de tecnologias (FOUCAULT,2008a), que podem ser as políticas culturais públicas ou privadas, que impõe a lógica de mercado e de cálculo (ONG,2007) em todos os âmbitos da vida, inclusive da gestão de si mesmo. Assim, as próprias políticas públicas culturais implementadas e administradas por órgãos estatais não escapam da razão neoliberal, pois, embora a verba seja pública, a forma de lidar com ela está regulada por ditames de mercado, como eficácia, governança, maior produtividade, flexibilidade e no axioma do empresariamento dos grupos e sujeitos, que ocorrem, em termos jurídicos, pela pejotizatização, e, em termos políticos, pela atomização e desmobilização dos grupos e enfraquecimento das entidades de classe como lugar de representação e articulação política.
George Yudice (2006) indica que a noção de cultura na era global se expandiu para âmbitos políticos e econômicos e é utilizada como um recurso, como uma ferramenta para o desenvolvimento econômico, mas que ao não se reduzir a apenas ser uma mercadoria também cumpre função de disciplinarização e internalização de determinada racionalidade política fincada no gerenciamento. Esta reordenação é levada a cabo por empresas de produção cultural, administradores das artes e gestores culturais, a qual, muitas vezes, subordina os artistas a essas figuras por conta da mediação entre políticas culturais e grupos no que diz respeito à busca de financiamento. Em síntese, a cultura é usada de acordo com interesses circunstanciais e adaptada aos ambientes em que se encontra, desempenhando instrumentalmente tarefas políticas das mais diversas, ou seja, a conveniência (YUDICE, 2006) da cultura reside em alinhar meios e fins, característica que encontra ressonância na racionalidade governamental proposta por Michel Foucault. Neste tocante, Lélia Gonzalez (2020), ao interpretar o Brasil, alertava que a política e a cultura são instâncias indissociáveis e devem ser pensadas de forma interconectadas, posto que a cultura é politizada e a política é culturalizada.
Refletir sobre neoliberalismo inclui pensar o Estado, pois essa racionalidade governamental promove uma colonização das subjetividades, relações e instituições, onde a gestão baseada na forma empresa, ou seja, na lógica da concorrência, eficiência, em técnicas de avaliação, monitoramento e ranqueamento é tida como ideal. Tal forma ideal também esbarra em um enquadramento das políticas públicas para a cultura, até mesmo as políticas de orçamento direto, estas forças motrizes da organização do trabalho de teatro de grupo. A racionalidade governamental desfaz um suposto antagonismo entre política pública e forças do mercado, pois se o axioma do neoliberalismo é construir o modelo empresa em todos os âmbitos a esfera do Estado e a esfera do mercado não são intransponíveis, mas, sim, porosas.
Política cultural ou gestão cultural?
Jacques Ranciere em seu livro Partilha do Sensível (2020) argumenta que a política tem uma base estética primeira que é ocupada pelo que é factível, visível e pensável. Dito de outra forma, há um sistema a priori que determina o que dá para fazer, ver, pensar e sentir. É a partir disso que se pode colocar uma estética segunda, ligada às práticas estéticas, no sentido que comumente a entendemos. Um outro mundo possível, como dizem os zapatistas, que desafia as estruturas de poder atuais só é possível se levarmos essa dimensão primeira da estética à sério e para isso é necessária a partilha de um comum contra hegemônico e a redistribuição e reposicionamentos das partes. As práticas artísticas e o teatro têm essa potência de reformular e recriar o sensível, trazendo à cena sujeitos, práticas, visões de mundo, dentre outras, até então subalternizadas e desenhar novas formas de subjetivação. O teatro, e a arte em geral, tem possibilidade de criar outro regime do sensível e coletivizá-lo através do princípio político do comum (Dardot e Laval), ou seja, baseado na gestão coletiva, em democracia direta, no compartilhamento de recurso e na negação da propriedade privada, na cooperação e solidariedade.
No entanto, encontra-se um cenário cada vez mais enquadrado nas prescrições gerenciais. Na cultura, assim como nas áreas sociais, o Estado tem feito intervenções com o objetivo de gerenciar os conflitos sociais, criando atmosferas de concorrência (OLIVEIRA,2018), institucionalizando práticas coletivas e heterodoxas de trabalho, além de regular os grupos artísticos por meio de um sistema de métricas e avaliações no acompanhamento e prestação de contas dos projetos contemplados pelos editais culturais (DURAND,2013). Esse fenômeno está ligado à imprescindibilidade de mensuração, com ênfase na dimensão quantitativa, que se mostra fundamental para a legibilidade dessas práticas frente ao Estado (SCOTT, 1999). Em outras palavras, para que o processo e/ou criação artística seja legível é necessário que o trabalho e as práticas organizacionais e de produção — caracterizadas por sua complexidade, experimentalismo e dissidência — se ajustem às categorias administráveis e controláveis que emulam situações de mercado e que, portanto, se apresentem como eficientes e produtivas, como indica Oliveira:
a própria noção de projeto pressupõe, assim, um conjunto de expedientes constrangedores ao fazer cultural: a descrição antecipada dos resultados que as ações visam proporcionar, o que as limita em diversos aspectos; esquematização das condições do ato criativo; antecipação de conceitos, leituras, ante a necessidade de justificar as propostas; adequação das ideias e experiências que são por sua natureza inestimáveis, propositalmente imprecisas, em conformidade com a oferta de recursos e os objetivos do edital; delimitação prévia de lugares, sensações e linguagens que podem ser exploradas etc. É então de se supor que o espírito de contestação que eventualmente esteja contido em uma intenção cultural fique ajustado ao que está dado, a um princípio jurídico-formal que não admite improvisos (2018, p. 134)
A lógica gerencial que orienta os editais culturais, inclusive as políticas públicas da cultura, estimulam a subjetivação neoliberal: indivíduos autorresponsáveis, flexíveis, autoregulados, calculistas. Fomenta-se assim o homos economicus e não o homos politicus. Essa postura é marcada por uma ascese gerencial frente a um contexto de terra arrasada e precariedade instaurada. Solicita-se que cada artista assuma a gestão racional-legal de suas habilidades e a gestão de risco de suas condições materiais.
As políticas públicas de cultura, que ao menos em tese poderiam possibilitar maior autonomia para a experimentação, estão, por outro lado, suscitando o que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009) denominam como características do novo espírito do capitalismo, isto é, promovem uma posição voltada ao mercado, que valoriza a criatividade, a autonomia, mobilidade e redes de colaboração para intensificar a exploração do trabalho. Isso se dá por meio da condução da conduta, sustentada por mecanismos jurídicos, administrativos e contábeis.
Célio Turino, um dos responsáveis pela criação do Programa Cultura Viva, afirmou, dez anos depois da implementação do Programa:
Ocorre que, nos últimos anos, esta busca pela experimentação e mediação sincera com a sociedade foi abandonada, havendo uma mentalidade burocrática, em que a Vida precisava se adequar às normas (feitas, via de regra, por quem não tinha a menor noção da aplicação prática destas regras no ambiente comunitário) e não as normas à Vida. (2014, p. 282)
Além disso, os editais instauram ambientes concorrenciais, muitas vezes enfraquecendo relações de solidariedade e apoio mútuo, colocando os grupos a concorrerem com seus pares por recursos financeiros. Nesse contexto, quem se destaca são aqueles que dominam melhor as ferramentas gerenciais, como a escrita técnica de projetos, a compatibilização da viabilidade técnico-financeira com cronogramas de trabalho, a mensuração prévia de público-alvo e atividades, o monitoramento do projeto, a gestão de recursos humanos, domínio contábil e prestação de contas. É comum observar sentimentos de ressentimento em relação aos editais por grupos não contemplados, o que tem resultado em uma desarticulação das instâncias de representação política e uma desidentificação enquanto categoria. Isso gera um acirramento das diferenças entre os grupos, onde a diferença se torna motivo de conflito, em um cenário de dificuldade de articulação e construção de pautas comuns e alianças significativas para os barrar os constantes ataques à cultura. A estrutura que produz e reproduz as diferenças, as quais, na maioria das vezes, resultam em desigualdades, permanece intocada nesse conflito.
Quando Rancière nos mostra que toda política é estética e que toda estética é política, é essencial deixar de tratar a gestão e a forma-edital como aspectos neutros e politizá-los. Uma arte contra-hegemônica e radical também exige uma gestão contra-hegemônica e radical. Muitos projetos artísticos propõem conteúdos críticos e radicais, mas a forma ainda permanece vinculada a uma lógica burguesa. Esta forma está ligada a uma estética primeira (RANCIÉRE, 2020) e a legibilidade do Estado (SCOTT,1999), dessa forma, naturalizá-la e incorporá-la como verdade é ser atravessado pela governamentalidade neoliberal sem se dar conta. De maneira similar, em relação à gestão, para que uma criação estética seja verdadeiramente radical, ela precisa ser acompanhada por uma gestão que esteja no mesmo nível. Não se permanece incontaminado pelo neoliberalismo, em seus aspectos políticos, econômicos, simbólicos e subjetivos, se não se problematiza a gestão, mesmo quando se trata de políticas públicas de cultura, pois como afirma Howard Zinn: não há neutralidade em um trem em movimento (2005).
Notas
[1] Foi uma reunião de pensadores liberais preocupados com o futuro do liberalismo diante do avanço do comunismo e do fascismo.
[2] A Sociedade Mont Pelerin é uma organização internacional fundada em 1947 por um grupo de intelectuais e economistas, incluindo o economista austríaco Friedrich Hayek, o economista e filósofo Milton Friedman, e outros pensadores liberais. O objetivo principal era refundar o liberalismo como força política.
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