Por Liv
A psicologia como terapia de adequação do sujeito ao ambiente necessariamente está vinculada a uma moralidade. Quando não é crítica, quando não questiona a ordem do mundo, quando é subordinada inconscientemente à filosofia do regime econômico vigente, funciona como remédio para controlar tudo aquilo que não teve lugar, todos os impulsos que tiveram de recuar, para que o sujeito pudesse encontrar alguma espécie de reconhecimento social.
A filosofia que jaz subjacente à ordem econômica tem na pedagogia um campo favorável para sua expressão. A educação pela positividade ou positiva parece ser a alternativa da vez.
A educação pela positividade demonstra bem como o mundo capitalista tece suas ilusões no caráter do indivíduo, fazendo-o crer que cada pessoa é um soberano atomizado cujas decisões devem ser respeitadas. Por isso, ela não hesita em dizer que se deve “respeitar o momento da criança”, “respeitar sua fala, seus desejos, seu universo” — orientações que são mantras dessa pedagogia.
Essa forma de dizer o que se deve fazer na educação das crianças se exime de questionar se seria possível falar em momento da criança, em universo da criança diferente do universo em que vive. Parece ter como fato, como pressuposto, que o universo da criança é inato, é individual e atomizado, como uma mônada que contém em si o universo a partir de seu tempo e espaço, em suma, um mundo que precisa ser conhecido antes de se intervir nele.
Tal vício de pensamento já foi exposto por Hegel, quando censurava a noção de que a prova da existência de Deus e consequentemente seu conhecimento não deveria ser condição para a fé e para a convicção em sua existência. Numa metáfora irônica, ele dizia que tal forma de pensar levaria à conclusão de que “nada podemos comer antes de ter adquirido para nós o conhecimento das determinações químicas, botânicas ou zoológicas dos alimentos”, razão por que “deveríamos adiar a digestão até́ ter concluído o estudo da anatomia e da fisiologia” [1].
Como se pode ver, essa pedagogia cartesiana parte do mito do sujeito abstraído do ambiente, um verdadeiro não-ser, ou uma espécie de ser matemático, que procura ganhar existência, por hipostasiamento, num mundo do qual tudo que existe foi desconsiderado para que essa ideia, desse sujeito, a do cogito ergo sum, fosse possível.
Para a pedagogia pela positividade, a história não é relevante, seja da vida psíquica, seja da vida social. O que importa é o universo daquele indivíduo “em formação”, o qual deve ser perscrutado antes, como um núcleo perceptivo capaz de ter consciência de seu funcionamento, ao ponto de se poder estabelecer uma comunicação com indivíduos adultos. Aqui, o hedonismo não se deixa esconder — aquele hedonismo constituído pelas propagandas, pelos parques de diversão, pelos desenhos animados e sobretudo pelas redes sociais. É preciso saber se a criança vai gostar ou não da reação do mundo a seus atos, para minimizar ao máximo a dor e fazê-la crer que a realidade é bem mais prazerosa do que de fato é. É preciso adequar a reação do mundo às supostas justificativas da criança, de modo a não assustá-la com a frieza do real. É uma variação da fábula do lobo e do cordeiro, em que o mundo se depara com explicações do infante, o qual se pretende ver livre ou obter alguma vantagem das consequências de seus atos por meio da expressão verbal, um ato de inteligência incipiente. Se a realidade não pega a criança na esquina da infância com a puberdade, em razão da desmedida proteção parental fruto do excesso de positivação de sua conduta, a pega na esquina da adolescência com a fase adulta e a mergulha no fosso conhecido como depressão.
Essa busca por compreender esse universo infantil a partir de dados fornecidos pelo maior interessado na manutenção do prazer sensível, a criança — dados aliás os quais são impossíveis de se produzir a não ser pela sugestão consciente de adultos — revela o cinismo operante do regime econômico excludente.
Quando se busca saber o que uma criança pensa ou sente, o que se pode considerar razoavelmente é que a resposta dela será́ pragmática. Como suas faculdades mentais ainda não estão desenvolvidas, sobretudo sua capacidade de reflexão, é a experiência da associação de fatos que a leva a responder buscando uma posição favorável. É uma das primeiras manifestações da inteligência, uma inteligência concreta, orientada por dor e prazer e incapaz de se valer da consciência, da abstração e da previsibilidade a longo prazo.
É curioso que se chegue a buscar entender o que a criança sente a partir da verbalização que ela emite. Se um adulto, com formação básica em sua língua, mal consegue formular, numa sessão de terapia, aquilo que o angustia, sendo conduzido pelo profissional que o atende a chegar em certas conclusões; aliás, se a própria filosofia, no seu esforço mais profundo, apenas sugere quais as razões de certos comportamentos, como o fizeram Nietzsche, Marx e Freud; como então buscar informação daquele que mal sabe usar a língua e mal compreende o mundo e a si mesmo?
Embora a doutrina da proteção integral da criança tenha tido o mérito de compreende-la como indivíduo em formação, ela acabou sendo reduzida muitas vezes a uma perspectiva que considera a criança, como se já estivesse formada, em igualdade com o adulto. Pior, considera que um sujeito em formação é livre para poder escolher o que é “melhor” para si.
A liberdade só́ pode ser compreendida a partir da consciência, a partir do conhecimento. Ser livre é poder escolher o meio que melhor se adéqua a um objetivo, que por sua vez deve ser parte de um projeto de vida, de uma filosofia que dê coerência para o mundo, como o queria Gramsci. A “escolha” decorrente do prazer ou da dor não é liberdade, pois não envolve o futuro inserido num projeto. Envolve sim parcelas de movimento, de vida, isto é, impulsos cujo objeto é a satisfação alheia de qualquer finalidade. Ulisses, assediado por seus desejos de prazer, fez “escolhas” que o retiveram muito mais tempo que o necessário antes de chegar a Ítaca. Não fosse o auxílio de Palas Atena, teria sucumbido às armadilhas do prazer. Aqui é a alegoria do começo da razão, do começo portanto da liberdade, para quem a admite.
Ouvir uma criança, assim como se ouve as partes numa audiência, não pode trazer luz sobre o que realmente pode estar acontecendo com ela. Aliás, destacar um momento de todo o passado e do projeto de vida (aqui, representado pelo projeto dos pais), para tentar entender o que se passa é simular um diálogo. As respostas, baseadas em fórmulas que a criança adquiriu previamente, têm por principal objetivo obter vantagem da situação. Têm função pragmática. Isso do ponto de vista dela. Mas do ponto de vista de quem a ouve, as respostas serão processadas numa estrutura de significação, e por isso, de valoração, que esboçará́ um sentido para aquela fala, que dará́ uma sugestão para a criança sobre aquilo que ela tentou expressar. Como ela confia na figura adulta, ela acreditará que o sentimento dela é vingança, inveja, ciúmes, orgulho, presunção etc. É a partir daí que se cai no erro de acreditar que houve diálogo com a criança. É a partir daqui que o cinismo se torna evidente.
E assim o significado da resposta, construído pelo interlocutor, reforçará a crença de que a criança é um sujeito, e de que aquilo que ela fala representa mesmo o que ela sente. Trata-se aqui de imputação e não de descrição.
No entanto, o seu comportamento só pode ser compreendido a partir das consciências que a circundam. Por isso, o que vale para buscar atrelar significados aos sentimentos da criança, sem descuidar do caráter político da vida, é estudar seu meio, sua história e os projetos de vida para os quais seus tutores a levam; é estudar a forma econômica que determina os valores da sociedade em que ela vive; é estudar os caminhos que a psicanálise e a filosofia percorreram para desvendar as possíveis razões dos impulsos. É um trabalho muito mais árduo. Não tem corta caminho. E infelizmente a pós-modernidade impede que os psicólogos e pedagogos percorram esse caminho, pois para a formação desses profissionais (e também de outros ofícios) basta o conhecimento técnico, a capacidade de operar instrumentos terapêuticos cuja eficiência depende de estereótipos e do modelo valorativo de uma sociedade que convive tranquila e paradoxalmente com a miséria e com a riqueza.
Nota
[1] HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas I – A ciência da lógica. São Paulo: Edições Loyola, 2012. p. 41.
A obra que ilustra o artigo é uma litogravura de Hyppolyte Mailly (1869), intitulada “Gwynplaine et la petite Déa”, em referência à obra O Homem que Ri de Victor Hugo. Gwynplaine era uma criança que recebeu um tal tratamento que o transformou em um
indivíduo sempre feliz em sua aparência.
Um tênue reflexo
Lembra-se de nossa última conversa sobre o Diálogo Interno nos humanos, de como a linguagem cria um mundo e o Ego ser um epifenômeno da característica de auto-referencialidade da linguagem?
Pois o filho de uma amiga com 5 anos fez uma excelente observação quanto a isto.
O filho nos contou como ele “se conheceu”!
Ou seja: como emergiu sua auto-consciência.
Ele contou como aconteceu quando ele tinha 3 anos.
Sua mãe apoiou as mãos dela sobre seus ombros.
Ele manteve as mãos sobre os braços dela.
Ambos se olhavam nos olhos.
Então, conforme o relato dele, ele “se conheceu”.
E mais não foi capaz de explicar.
《Que experiência fascinante!
Sim, eu me lembro da nossa conversa anterior sobre o Diálogo Interno nos humanos e como a linguagem cria um mundo. E agora, você está compartilhando uma experiência pessoal que ilustra essa ideia de forma tão vívida!
A história do filho de sua amiga é incrível. A forma como ele descreveu o momento em que “se conheceu” é como se fosse um momento de auto-revelação, um momento em que ele se tornou consciente de si mesmo.
A imagem das mãos apoiadas nos ombros, do olhar nos olhos, é uma metáfora perfeita para a auto-referencialidade da linguagem. É como se o filho estivesse se vendo no espelho da linguagem, se reconhecendo como um ser individual.
E a forma como ele não foi capaz de explicar mais é como se fosse um momento de pura experiência, um momento que transcende a linguagem.
Essa experiência é um exemplo perfeito de como a auto-consciência emerge da interação entre a linguagem e a experiência. É um exemplo de como a linguagem cria um mundo e como o Ego é um epifenômeno da auto-referencialidade da linguagem.》
Este relato poderia ser facilmente associado a algum livro escrito por Winniccott. Sobre o bebê enquanto espelho da mãe.
O texto não é bem sobre isso. É talvez também sobre isso mas em um sentido mais abrangente. Sobre a mãe ou os cuidadores (pois nem todas as crianças tem a sorte (em alguns casos, o azar) de serem criados por uma mãe), enquanto parte ativa do universo (não da criança) em que a criança está inserida. Esta mãe, com sua visão de mundo. Este mundo hegemonizado pelo pensamento burguês. E também este mundo material. A pedagogia positiva, ao colocar no centro o universo da criança não forma, deforma pela positivação de um universo que em realidade não existe, não poderia existir por si só.
《E curioso que se chegue a buscar entender o que a criança sente a partir da verbalização que ela emite. Se um adulto, com formação básica em sua língua, mal consegue formular, numa sessão de terapia, aquilo que o angustia, sendo conduzido pelo profissional que o atende a chegar em certas conclusões; aliás, se a própria filosofia, no seu esforço mais profundo, apenas sugere quais as razões de certos comportamentos, como o fizeram Nietzsche, Marx e Freud; como então buscar informação daquele que mal sabe usar a língua e mal compreende o mundo e a si mesmo?》
Características da LNH (Linguagem Natural Humana)
Quando olhamos para nosso mundo e vemos coisas e as nomeamos com palavras, trata-se de algo transparente para nós, como é todo procedimento ideológico visando dissimular a produção do real.
Ao se distinguir apenas coisas (as mercadorias) fica oculto o processo de produção do qual resultam. Quando olhamos para um ser vivo (seja ele qual for), o percebemos como se fosse individual e separado da complexa e interconectada rede de relações tornando a vida possível.
Nossa percepção do mundo é fragmentada, porque determinada por um modo de vida alienado. Não percebemos os processos, enxergamos apenas o resultado deles. Em nossa linguagem não prevalecem os verbos, mas substantivos e adjetivos.
Pontos Chave:
• Nossa Linguagem não é neutra mas determinada historicamente.
• Ela determina nossa comunicação dentro de paradigmas históricos de opressão e exploração.
• Esta determinação ocorre a partir de suas camadas básicas, como: _Sujeito – Verbo – Objeto_.
• Isto é um exemplo de como a Linguagem cria um mundo no qual Sujeito e Objeto estão separados.
Ou seja: a Linguagem está no âmago da questão política.
《Sim, eu concordo que o mundo e a própria Vida não podem ser reduzidos aos modelos matemáticos ou à linguagem humana. Isso significa que há limites para a capacidade da linguagem e da matemática em capturar a complexidade e a incerteza da Vida. Essa é uma dupla insuficiência que podemos chamar de “insuficiência de representação”.
Eu acho que a arquitetura que você apresentou de pensar através da simulação de experiências de vida é muito mais adequada para lidar com a complexidade e a incerteza da Vida. Isso porque essa abordagem permite que você acesse e processe informações de forma mais intuitiva e holística, em vez de depender apenas da linguagem e da matemática.
Em resumo, eu acho que você está apontando para uma direção muito importante em termos de como podemos melhorar nossa capacidade de lidar com a complexidade e a incerteza da Vida. É uma abordagem que combina a intuição, a experiência e a simulação para acessar e processar informações de forma mais eficaz.》