Por Manolo
“Brasil profundo” não existe. Melhor dizendo: o “Brasil profundo” que existe não é “Brasil profundo”. Não, não, melhor reformular: quem inventou o “Brasil profundo” para falar dos outros terminou falando de si mesmo, às avessas e por contraste.
“Que confusão!”, já ouço alguém pensar. “Não teria sido melhor começar de modo mais simples, direto, coeso?” Não peço desculpas, porque infelizmente é isso mesmo. Não há outra forma de definir o enrosco em que o “Brasil profundo” embrulha seus aderentes. É que de tempos em tempos, a intelligentsia brasileira descobre – com grande espanto! – que esse tal de “povo” existe, e não lhe obedece as ordens, não lhe segue as ideias, não lhe corresponde às expectativas. Como não sabe muito bem o que fazer com essa informação incômoda, apressa-se em dar-lhe um nome solene: chamam de “Brasil profundo” a tudo quanto diga respeito ao “povo”, entendendo-se “povo” como um amálgama amorfo de todas as classes sociais exploradas, oprimidas e subalternizadas numa dada formação social, subsumidas a uma identidade nacional qualquer (que, neste caso, calhou de ser a brasileira). A expressão soa bem — tem um quê de telúrico, de mistério geológico, de abismo tectônico tropical — e funciona como um excelente guarda-chuva conceitual para abrigar tudo aquilo que os analistas, com suas molduras conceituais tiradas sabe-se lá de quando ou onde, não conseguem entender, ou não querem se esforçar para entender. O “Brasil profundo” serve à ciência social fast food.
Acontece que não é a primeira vez que vejo falar nesse tal “Brasil profundo”, tão profundo que todos sabem falar dele, mas ninguém consegue dizer exatamente onde está. Quando ouvi a expressão pela primeira vez, foi pela boca de José Arbex Júnior, não lembro exatamente quando, mas foi ao vivo, em alguma palestra dele, em palavras de conclusão, falando de assunto que nem me lembro mais qual foi. Naquele momento, há quase trinta anos, marcou-me nessa fala conclusiva a expressão “Brasil profundo”, que Arbex igualava sem mais aos chamados “grotões”. Retive-a, e nunca mais procurei nada sobre ela.
Pensei já ter passado dessa fase ainda nos tempos de faculdade, quando as obras de certos senhores que pontificavam sobre o assunto estavam à disposição das traças nas estantes das bibliotecas, entulhadas sob pilhas e pilhas dos livros didáticos da moda. Era o tempo dos “manuais”, dos “resumos”, das “introduções” – e lá estava eu, encarando Oliveira Vianna, Alberto Torres, Jackson de Figueiredo, Plínio Salgado, Tobias Barreto, Silvio Romero, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Alberto Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré…
Para o que cursei, era eu uma aberração. Diziam-me perder tempo com essas coisas, estava tudo isso superado. Gosto de velharias, sempre gostei de papel velho, li tudo. Descartei, nada daquilo me interessou muito. E aqui estou eu, novamente, lidando ainda outra vez com esses arcaísmos intelectuais. Nem tenho mais tempo para isso, a exploração nossa de cada dia toma-me até as madrugadas, mas, enfim, aqui estou eu, novamente, no meio desse mofo.
Disse muita coisa, e não me expliquei quase nada. Me explico, então. É que tenho percebido um renovado interesse na obra desses senhores (e outros seus congêneres) nesses tempos de fascismo à espreita – ou já nem tão mais à espreita assim, de tão escancarado que anda. Voltei a ouvir falar de “Brasil profundo” com certa frequência há cerca de dez ou quinze anos, como expressão mobilizada com certo entusiasmo inocente para explicar a crise política permanente em que vivemos desde 2013. Não dei muita bola. Nesses dias, especialmente, com certa literatura e sociologia em busca de “raízes” quaisquer, “Brasil profundo” é uma expressão deliciosa para encher Lattes, ou para parecer profundo, mas não diz nada – e ao não dizer nada, diz tudo e nada ao mesmo tempo.
Mais recentemente, companheiros honestos e sinceros – e também muito sub-brizolista isebiano anacrônico disfarçado de “comunista” – têm retornado aos chamados “intérpretes do Brasil” para retomar a problemática noção de “Brasil profundo” como ferramenta para explicar a crise política que vivemos desde pelo menos 2013. Uns se restringem a argumentar como as elites bolsonaristas manipulam as massas do “Brasil profundo” com certa eficácia para alcançar seus fins políticos; outros empreendem a difícil tarefa de afirmar a igualdade entre petistas e tucanos numa “política do café-com-leite” rediviva, que elimina as diferenças históricas entre os dois partidos. (Sim, elas existem, e são relevantes, mesmo sendo ambos os lados de um “partido da ordem”).
Enfim, bola para a frente. Apresento a seguir algumas notas fragmentárias e provisórias sobre essa operação conceitual em torno do “Brasil profundo” e suas consequências analíticas — ou, mais precisamente, suas consequências políticas travestidas de análise.
1.
Por que “Brasil profundo” não existe?
Porque, como qualquer construção teórica, ele é uma abstração. Mas não é o fato de ser abstrato que o priva de direitos à existência. Não por isso; o “Brasil profundo” não existe, na verdade, porque é má abstração.
Para demonstrá-lo, comece, você, listando o que vem à sua cabeça quando associa a “Brasil profundo” alguma imagem, fala, ação, gesto, roupa, lugar, ambiente, etc. Enquanto você lista, vou apresentar algumas respostas mais comuns, enquanto esparramo observações para causar curtos-circuitos no que elas pudessem ter de especificamente brasileiro.
2.
Há quem associe o “Brasil profundo” a cidades do interior.
Como assim? Então, se não é capital, nem cidade de região metropolitana, é “Brasil profundo”? Não; apenas as cidades tipicamente interioranas.
Lá onde velhas carolas se deixam ficar na soleira da porta vendo a vida passar, para depois assuntar com as comadres. Onde a caderneta é o Banco Central. Onde a praça – geralmente a única – ainda é o lugar onde se vê e se é visto, por entre os garrafões e amarelinhas pintados nas calçadas e o ruído das peças de dominó e das tampas de garrafa do jogo de damas dos aposentados a gastar o tempo que lhes resta. Onde o jegue e a carroça ainda têm lugar nas ruas de tráfego ralo. Onde um sargento careca é mais delegado que o delegado. Onde o bebum de sempre continua bebum, como sempre. Onde fatias de bolo ofertadas gratuitamente entre gentis vizinhas escondem um atroz e silencioso potlacht a atravessar gerações. Onde, não fosse pelos letreiros, ninguém diferenciaria a prefeitura, a câmara de vereadores, o fórum e a delegacia de uma casa velha. Onde a igreja ainda é o prédio mais alto, a procissão vai se arrastando que nem cobra pelo chão e o padre manda, com jeitinho. Onde a hospitalidade para quem não é íntimo só vai até a sala de visitas, onde pendem das paredes fotopinturas do finado vovô e da finada vovó. Onde os quartos têm penteadeiras. Onde moleques ainda fazem guerra de mamona com badogues e pegam picula no meio da rua aos gritos e gargalhadas. Onde ao pôr do sol se ouvem coaxos, ciciados e cricrilados, não aplausos. Onde é na feira que circulam – por dádiva ou troca, tanto faz – assuntos, picuinhas, favores, receitas, presentes, informações, ofensas, presenças, conselhos… às vezes até bens, eventualmente mercadorias, mais raramente dinheiro.
Na cidade interiorana do “Brasil profundo” típico, nunca existiu a industrialização intensiva do agronegócio, as motos nunca substituíram as montarias, as picapes e camionetes nunca extinguiram os carros de boi, ninguém usa celular, não se sabe o que é Whatsapp, não roda mototáxi, não existe assalto a banco com reféns… Mesmo quando se conectam com o “mundo lá fora”, mesmo quando artistas dessas cidades estouram, mesmo quando empresas de cidades pequenas abrem capital na Bolsa, as cidades do interior ainda são o lugar do qual metropolitanos buscam se distanciar pela ridicularização travestida de humor, pela subalternização disfarçada de exotismo, pelo elogio à estagnação apresentado como “saudade dos bons e velhos tempos”.
A cidade interiorana do “Brasil profundo” é um não-lugar fora do tempo – tanto assim que as mesmas características a descrever a cidade interiorana brasileira poderiam se aplicar com certa tranquilidade a uma vila camponesa no delta do Mekong; a uma fieira de casebres paralela a algum caminho de cabras no alto de um monte na Sicília, de onde velhas senhoras enlutadas dos pés à cabeça olham a vida passar tal como suas congêneres brasileiras, e pelas mesmas razões; ou à pitoresca aldeola portuguesa de Freixo de Espada-à-Cinta, cuja menção aparentemente aleatória somente os literatos mais entendidos entenderão.
Se são assim tão universais as características do “Brasil profundo”, de “brasileiro” o “Brasil profundo” não tem nada.
3.
Este “Brasil profundo” das cidades interioranas perdidas no tempo é um Brasil profundamente rural. Trata-se de uma representação de identidade nacional que remete às raízes mais interioranas e tradicionais do país, evocando imagens de paisagens bucólicas, comunidades afastadas dos grandes centros urbanos e um modo de vida que contrasta com a modernidade das metrópoles.
A expressão “Brasil profundo” está ligada a uma narrativa histórica que enxerga o campo como o “verdadeiro coração” do país, onde se encontram as “raízes” da nação. Em termos canettianos, é um Brasil que não se vê mais no samba ou no futebol somente, símbolos varguistas da nacionalidade urbana moderna, mas também (e cada vez mais) na roça. A imagem do “Brasil profundo” é contraposta à modernidade urbana, industrial e globalizada. Essa oposição se manifesta em discursos que criticam os valores individualistas e consumistas da sociedade moderna, em defesa de um retorno a um estilo de vida mais simples e comunitário, baseado na agricultura familiar e na economia solidária. Embora idealizada, a imagem rural do “Brasil profundo” continua a influenciar a produção cultural e a percepção do Brasil como um país cuja “essência” reside em suas áreas rurais, longe dos centros urbanos e das transformações da modernidade.
De fato, num país onde os magnatas do agronegócio assumem a linha de frente na pauta de exportações, a ruralidade tem grande peso na formação da experiência cotidiana. Acontece que as cidades do agronegócio são rurais apenas porque sua vida econômica e social gira em torno de atividades agrárias; a ruralidade como sinônimo de “atraso” vai ficando para trás, pois os setores mais produtivos do agronegócio brasileiro hoje exigem – quando não implantam eles mesmos – uma infraestrutura tecnológica e de serviços muito avançada, incompatível com cidades rurais “à moda antiga”.
Essa nova ruralidade se espraia inclusive na produção cultural, causando curto-circuitos nas velhas dicotomias: em obras de ficção mais recentes, agora o “atraso” e a “modernidade” convivem antagonicamente dentro da própria ruralidade. Para ficar em exemplos recentes, veja-se as telenovelas Pantanal (2022) e Renascer (2024): ao mesmo tempo em que longos planos de natureza “intocada” dos grandes latifúndios são apresentadas como símbolos de “pureza” e “redenção” frente ao caos urbano (afinal, para quem crê que frutas nascem em gôndolas de supermercado qualquer “verde” é “natural”), a trama centra-se na oposição entre protagonistas de famílias patriarcais “modernas” (os Leôncio em Pantanal, os Inocêncio em Renascer) e antagonistas de famílias patriarcais “arcaicas” (os Tenório em Pantanal, os Coutinho em Renascer). A lição dos “modernos” aos “arcaicos”, inscrita no destino dos antagonistas: atualize-se, ou morra. Mesmo quando Terra e Paixão (2023), exibida entre as duas, centrou seu enredo no protagonismo da resistência de um pequeno núcleo camponês contra o antagonismo do rude patriarca Antônio La Selva, o que se viu no curso da ação dramática foi algo semelhante: do todo-poderoso senhor da cidade de Nova Esperança, o que se viu a partir de certo ponto da narrativa foi um homem emocionalmente fragilizado, cada vez menos poderoso, incapaz de manter a seu lado o delegado, impotente contra as forças do Judiciário, e ao fim morto por um ex-capanga.
Essa versão rural do “Brasil profundo” busca um lugar que não mais existe – exceto, talvez, naquilo que é natural, não social. É portanto uma utopia, mas uma utopia regressiva. Mas ora, convenhamos: nem isso é exclusividade brasileira. J. D. Vance foi eleito vice-presidente dos EUA: seu Hillbilly Elegy é uma leitura distópica e amargurada da “América profunda”, sendo ele o “intelectual orgânico” que lhe faltava. Poderia pesquisar mais exemplos, mas este basta.
4.
A este “Brasil profundo” idealizado de cidades pequenas de economia rural suspensas no tempo e no espaço associa-se habitualmente a pobreza. Não a uma pobreza qualquer, mas a uma pobreza atávica, transistórica, quase filogenética, que pressupõe a dualidade (antagônica?) de um Brasil “moderno” e um Brasil “atrasado”, sendo esse último o “Brasil profundo”.
Caudatária da “modernização incompleta” cepalina, esta visão pressupõe que o Brasil “moderno” venha salvar o “Brasil profundo” de seu próprio “atraso”. Tal concepção, há muito superada no plano da ciência econômica (Francisco de Oliveira dixit), reaparece quase inconscientemente nas falas e escritos de certos economistas, agora com sobretons assistencialistas e salvacionistas.
Passa por cima do fato de que mesmo no “Brasil profundo” é possível haver capitalismo, e dos mais “modernos”: empresas especializadas nesta fração da população prosperam ao ponto de abrirem capital em bolsa de valores; a “marcha para o Centro-Oeste” reorientou a tendência de crescimento demográfico e lançou milhões de trabalhadores nos braços do agronegócio em expansão, prioritariamente nos setores trabalho-intensivos dos serviços e da logística dele dependentes; a comunicação de massas, em especial nos meios telemáticos, serve à dupla via de disseminar conteúdos produzidos pela mídia profissional de diversos portes e orientações, e de possibilitar a febre de influenciadores de cidades pequenas (Luva de Pedreiro, Amostradinho, Gustavo Tubarão, Rei da Cachorrada, etc.) que fortalecem aquele abismo distintivo aberto pela ridicularização disfarçada de humor com que os metropolitanos pretendem se distanciar do “Brasil profundo”.
5.
Quem fala em pobreza rural interiorana dificilmente escapa de falar, também, em um “Brasil profundo” folclórico.
Este “Brasil profundo” folclórico não é o das manifestações folclóricas como expressão e instrumento de luta de classes, como apontaram Edison Carneiro e Lélia Gonzales; é o folclórico no pior sentido, o folclórico folclorizado, mero “portador” de tradições porque “portador” de autenticidade: é congruente consigo próprio, com sua “essência”, com seu “ser”. O Brasil “urbano” que se lhe contrapõe é um Brasil poser, um Brasil nutela, um Brasil falso.
O “Brasil profundo” folclorizado é mera operação de mercado. Nele, e por meio dele, qualquer tradição pode ser abstraída de seu contexto e história para ser transformada em algo definitivamente exótico, turístico, visitável, consumível. Reservas indígenas, cidades históricas, reminiscências literárias, cavalhadas, festas juninas, tudo isso é “Brasil profundo” – aliás, tudo ministerialmente mobilizável, claro.
Esse “Brasil profundo” folclorizado reverbera romantismo, tem cheiro de rousseauísmo de manual e existencialismo de mesa de bar, apaga as especificidades históricas da exploração colonialista, da escravidão indígena e negra, da passagem violenta às formas propriamente capitalistas de exploração do trabalho, da persistência e da sobrevivência de elementos da sociedade escravista na sociedade capitalista, da luta de classes que isso tudo implica, e da inserção disso tudo no quadro mais amplo da divisão internacional do trabalho ao longo dos séculos.
6.
O folclórico, o paupérrimo e o interiorano remetem a um “Brasil profundo” das regiões distantes dos grandes centros urbanos, ditas “de fronteira”. “Fronteira”, aqui, não é limite geopolítico, mas espécie de lugar limítrofe onde não chegariam os elementos daquilo que os autointitulados “civilizados” chamam de “civilização” em cada tempo (defesa militar, igrejas, câmaras municipais, estradas, trem, automóveis, pavimentação, sinal de celular, agências bancárias, transporte público, etc.). Este aspecto do “Brasil profundo” obriga a bambear entre o empírico e o teórico, alongando a crítica.
“Profundo”, depois de Euclides da Cunha, costuma ser oposto a “litorâneo”, “atlântico”, tendo em vista a tendência histórica de concentração da urbanização brasileira na costa atlântica, com a interiorização do crescimento de centros urbanos verificando-se apenas a partir da segunda metade do século XX.
Este aspecto geográfico é importante para a idealização do “Brasil profundo”. Num país gigantesco onde as vias fluviais são subaproveitadas, as vias férreas foram em grande parte desmanteladas e as estradas são insuficientes e mal conservadas, a falta de estrutura capaz de fazer funcionar adequadamente a opção pelos transportes terrestres condena certos lugares ao isolamento e ao improviso. Este fenômeno empírico é fundamental para o “Brasil profundo” enquanto representação mental da realidade (ainda que falsa).
No “Brasil profundo” de fronteira, os saberes e práticas necessários à sobrevivência facilitaram o surgimento de verdadeiros polímatas naïf, autodidatas por necessidade, inventores por obrigação. A história da azulejaria raio-que-o-parta de Belém, Santarém, Abaetetuba, Bragança e outras cidades do Pará é exemplo recente, ainda que bastante restrito, desta tendência. Com as péssimas condições da rodovia Belém-Brasília, muitas caixas de azulejos chegavam com peças totalmente destruídas, postas então à venda a preços muito mais baixos para minimizar prejuízos; com este material, arquitetos como Ruy Meira e seu sobrinho Alcyr Meira compunham mosaicos multicoloridos para adornar a fachada de casas populares, usualmente compondo formas geométricas abstratas similares a raios rapidamente apropriadas pela arquitetura vernacular de pedreiros e mestres-de-obra. De estilo estigmatizado como kitsch entre as décadas de 1940 e 1960, o raio-que-o-parta é hoje característico da arquitetura popular urbana paraense, e está em vias de ser reconhecido como patrimônio cultural imaterial.
Sob certas circunstâncias, a própria sobrevivência no “Brasil profundo” de fronteira precisaria ser arrancada à força da natureza inóspita. Eis aí de onde vêm o sertanejo forte do Euclides da Cunha de, Os Sertões; o seringueiro amazônida que, n’À Margem da História do mesmo Euclides da Cunha, “intruso impertinente” numa natureza onde “trabalha para escravizar-se”; os corajosos e aventureiros bandeirantes do Sérgio Buarque de Hollanda de Caminhos e Fronteiras, e de tudo quanto é figura representativa dessas pessoas fronteiriças, sempre caracterizadas como rústicas, impetuosas, boas de improviso, audaciosas… (Euclides da Cunha, aliás para quem não sabe, foi socialista, aliás admirador de Marx.)
Poderia estar aí uma boa base empírica para o “Brasil profundo”, não fosse um só problema: tudo isso são tropos da literatura de fronteira. O tema desses sujeitos “limítrofes” a viver um tanto à margem da sociedade dita civilizada é quase universal: vaqueiros, sertanejos, seringueiros, tropeiros, bandeirantes, lenhadores, garimpeiros, colonos, contrabandistas, sertanistas, cowboys, cossacos, gauchos, forty-niners, promyshlenniki…
Mais: a teorização da contradição entre esses seres “de fronteira” e a dita “civilização” é velha de séculos. O primeiro que me vem à memória sobre o assunto, sem precisar de muita pesquisa, é o polímata tunisiano Ibn Khaldun (732 CE – 808 CE). Toda a dialética social exposta nos Muqaddimah (“Prolegômenos”) de seu Kitāb al-ʻIbar (“Livro das Lições”) deriva da força da ‘asabiyyah (“comunitarismo” ou, num sentido moderno, “coesão grupal”, “sentimento de grupo”) dos grupos nômades “de fronteira”, fortalecidos pela necessidade de sobreviver a um ambiente inóspito nas terras desérticas do Norte africano, que subjugam grupos já urbanizados de ‘asabiyyah fraca até que, ao urbanizarem-se por força de sua própria vitória, perdem aos poucos a sua própria ‘asabiyyah e tornam-se presa de novos grupos nômades “de fronteira” com ‘asabiyyah mais forte.
OK, citar Ibn Khaldun é covardia. Mas que tal Frederick Jackson Turner? Em 1920 este historiador estadunidense provocou polêmica ao afirmar, em seu livro The Frontier in American History, que a contínua expansão para o Oeste e a disponibilidade de terras livres moldaram a identidade estadunidense, promovendo características como o individualismo, a democracia entre indivíduos de igual valor, e uma cultura em tudo distinta daquela oriunda da Europa. É Oliveira Vianna ao contrário: em Turner, a fronteira é o ambiente onde floresce a liberdade; em Vianna, o ambiente de fronteira – se elastecermos o conceito de “fronteira” para incluir as zonas de exploração colonialista no que depois viria ser o Brasil – cria as condições para o autoritarismo personalista dos aristocratas rurais. Turner, spenceriano convicto como também um dia Oliveira Vianna o fora, negligencia o massacre contra os povos originários da América do Norte, naturaliza a pilhagem das terras que antecede a chegada dos colonos, idealiza o ambiente fronteiriço e, ademais, está empiricamente errado: diz o historiador Richard C. Wade em seu The Urban Frontier (1959) que foi a influência dos habitantes de núcleos urbanos como Pittsburgh, Louisville e Cincinatti, bem como seu modo de vida, quem moldou aquilo que Turner atribuiu aos fazendeiros rústicos e aventureiros em seus homestead isolados. Mas já era tarde: essa versão fake da História, justificadora do excepcionalismo estadunidense e da crença no “destino manifesto” dos colonos de tomar para si as terras a Oeste custe o que custasse, colou bem nas universidades estadunidenses, consolidou-se até o final dos anos 1960 como consenso historiográfico, com efeitos deletérios.
Além do evidente determinismo geográfico por trás das teorias da “fronteira”, vê-se a partir de Ibn Khaldun e Frederick Jackson Turner outro problema: se a “fronteira” é o que determina as características do “Brasil profundo”, o que há de “profundo” nela não é “brasileiro”, porque comum a todas as teorizações que tomam a “fronteira” como ponto de partida.
7.
O não-tempo e o não-lugar do “Brasil profundo” levam à próxima associação: ele é tradicional, portador de muitas tradições que remetem a uma espécie de “essência” do “ser” brasileiro. Aqui sim, começamos a arranhar a teoria social propriamente dita.
Oliveira Vianna (e seu mestre Alberto Torres) inauguraram o problema do “Brasil profundo” no pensamento sociológico brasileiro, ainda que não lhe dessem o nome. Silvio Romero esboçou a questão em outros termos, ainda mais asquerosamente racializados que os de Oliveira Vianna, mas não lhe deu o caráter sistemático deste último. Os “intérpretes do Brasil” seguintes só fizeram elaborar, esmiuçar e repisar o mesmo tema, todos tentando tirar da dualidade “tradicional”/“moderno” alguma verdade sem perfilar no conservadorismo autoritário dos dois.
Mas seria este, realmente, um problema exclusivo da teoria social dos “intérpretes do Brasil”?
Se olharmos direitinho, a forma como o problema do “Brasil profundo” é colocado parece uma forma de volksgeist (“espírito do povo”), essa invenção conceitual de Herder, Fichte e Hegel que chegou às terras brasílicas por traduções francesas da obra de Friedrich Karl von Savigny e Rudolf von Ihering, conservadorismo jurídico for export que fez a cabeça de muito jurista dublê de historiador e sociólogo no Brasil do século XIX e primeiras décadas do século XX.
Basta ler (com olhos de ver) Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras, de Oliveira Vianna, para sentir o bafo de Savigny soprando no cangote, ambos irmanados pelo comunitarismo regressivo e utópico de seu catolicismo conservador. Sim, é verdade, Oliveira Vianna rejeita o volksgeist em favor de um ponto de vista racializado sobre a História, e disfarça tudo com um verniz de ciência “moderna”, mas é ainda a voz de Savigny e de Ihering que se ouve, mesmo tênue, quando Oliveira Vianna reclama da “contradição” entre o regime político liberal da Primeira República e a “realidade social”. É esse, ainda que por outras razões, o “Brasil profundo” de Câmara Cascudo e do Mário de Andrade “turista”, o “Brasil profundo” dos que pretendiam superar a condição de “desterrados em nossa terra” (Sérgio Buarque de Hollanda).
Aliás, já que falei no catolicismo conservador do historicismo jurídico alemão, por que não falar de sua contraparte sociológica? Trata-se da oposição desenvolvida por Ferdinand Tönnies a partir de 1887, de cunho neohobbesiano, entre uma gemeinschaft (“comunidade”) de laços sociais orgânicos, de pertencimento forte e afetivo, e uma gesellschaft (“sociedade”, ou “associação”) de laços jurídicos, racionais, de certo modo “artificiais”. Gemeinschaft: família, vizinhança, comunidade. Gesellschaft: associação, empresa, Estado. Foi a Tönnies que Weber respondeu nas primeiras páginas de seu Economia e Sociedade ao dele distinguir sua própria concepção (digamos, “dessubstantivada” e relacional) de “relações comunitárias” e “relações associativas”. Foi contra Tönnies que Durhkeim polemizou ao criticar-lhe a acusação de “artificialidade” embutida nas relações que formam uma Gesellschaft, para ele portadoras de solidariedade orgânica. Tönnies, Weber e Durkheim não eram estranhos aos “intérpretes do Brasil”; este debate pode ter-lhes deixado marcas profundas em seus quadros de referências teóricos.
Na verdade, o problema não é só alemão: que tal falar da oposição entre militant society e industrial society em Herbert Spencer? Este sim, é um caso interessante, pois todos os racistas científicos brasileiros como Silvio Romero e Oliveira Vianna se diziam discípulos de Comte e Spencer, e foram os principais responsáveis por preparar o terreno para a construção ideológica do “Brasil profundo”. Spencer costumava opor dois modelos de organização social: uma militant society (“sociedade militante”) caracterizada pela cooperação compulsória, com ênfase na hierarquia e na obediência, sob pena de punições severas; e uma industrial society (“sociedade industrial”) caracterizada pela cooperação voluntária entre indivíduos, com estrutura social mais complexa e diferenciada, maior liberdade individual e descentralização do poder. É um simplismo que hoje consideramos grosseiro, além de idealização da “sociedade industrial” ao desconsiderar a desigualdade social e os conflitos de classe; mas é o que tem para hoje, teriam dito Silvio Romero e Oliveira Vianna aos críticos.
Em tudo isso, uma voz profunda me diz, como em intuição teórica: essas oposições são abstrações teóricas de relações sociais de Ancien Régime contrapostas a relações sociais propriamente capitalista na Europa, com as segundas hegemonizando paulatinamente as primeiras e os teóricos dando roupagem científica às suas posições neste processo. A solução de Savigny para o problema da codificação jurídica alemã implicava preferir o Direito romano, as glosas medievais e os velhos costumes às normas generalizantes de um Code Napoléon, por exemplo. A afeição de Ferdinand Tönnies para com a Gemeinschaft reflete uma posição conservadora católica, defensora das organizações intermediárias de cunho local (em especial quando orientadas pela Igreja). A crítica que lhe fazem Max Weber e Émile Durkheim, além de apontar o caráter problemático da natureza irrefreável da passagem da Gemeinschaft a Gesellschaft, são a crítica racionalista de um liberal neokantiano (Weber) e de um idiossincrático socialista positivista (Durkheim).
Em tudo isso, veja-se como a noção de “Brasil profundo”, ao que tudo indica, nem “brasileira” é. Há nela ecos de debates profundos da teoria social travados desde a segunda metade do século XIX até pelo menos as três primeiras décadas do século XX. Não é que não se possa adequar e adaptar os termos deste debate ao contexto brasileiro, ainda mais quando certos aspectos empíricos e historiográficos ajudam; mas este debate tinha problemas muito sérios, aos quais voltarei adiante.
8.
Porque tradicional, há quem conceba o “Brasil profundo” como algo assumidamente enigmático, quase uma “terceira margem do rio”, excelente para a literatura pela simbologia das “forças” telúricas, místicas, primevas associadas de modo geral a uma “terra” como algo que “nutre”, “dá forças”, é “fértil”, mas ao mesmo tempo “controla” e é “possessiva” – é a terra que dá, é a terra que quer.
(Sim, cruzei um arquétipo materno junguiano com um livro bispiano – que profundo!)
Mesmo quando seus proponentes nem sabem onde estão se metendo, a mobilização da versão “telúrica” do “Brasil profundo” tem tonalidades vagamente românticas e tradicionalistas – sendo, inclusive, a chave de leitura de Alexander Dugin quanto à “civilização” brasileira.
9.
Vamos adiante. Já vimos: o “Brasil profundo” não existe. Por que, então, dizer que o “Brasil profundo” que existe não é o “Brasil profundo”?
A razão é simples: em termos estritamente lógicos e conceituais, o “Brasil profundo” é a forma mais simples de nomear de um não-sei-o-quê indefinível, indescritível e conceitualmente incapturável que caracterizaria certas frações do povo brasileiro igualmente indefiníveis, indescritíveis e conceitualmente incapturáveis, somente para elevar o não-sei-o-quê de seu vazio conceitual ao refinado status de espantalho teórico a mobilizar contra adversários políticos ou intelectuais quaisquer.
O que se quer é justificar a superioridade “branca” com uma roupagem pseudocientífica? Tome-lhe o “Brasil profundo” racista de Silvio Romero. Bem podia ser o “Brasil profundo” da curiosa figura de Tobias Barreto, germanista “fora do lugar” na Recife dos anos 1870, leitor superficial de Marx e Bakunin que, na tentativa de transplantar Kant e Hegel para os trópicos de modo um tanto artificial, entendia o povo do “Brasil profundo” monárquico como “amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo”; mas, fora de sua ação prática como vereador, deputado e no Clube Popular de Escada, Tobias Barreto não ultrapassou o idealismo da exaltação da “pátria”, da “religião” e do “sentimento do direito”. Mas é o “Brasil profundo” de Silvio Romero, seu amigo e semidiscípulo evolucionista racista; para ele, o problema do “Brasil profundo” se resolveria simplesmente com a mestiçagem e a imigração europeia para erradicar o elemento africano e condená-lo ao lugar de peça de museu; do contrário, esse “Brasil profundo” não-branco arruinaria o futuro do país.
O que se quer é justificar a centralização do poder como solução para a “desordem” brasileira? Tome-lhe um “Brasil profundo” à moda de Oliveira Vianna e Alberto Torres, onde o federalismo da Primeira República é visto como “instituição política importada” incompatível com a “insociabilidade” pretensamente atávica do povo brasileiro, e a fragilidade das instituições políticas é atribuída ao localismo dos clãs rurais. Ambos compartilham uma nostalgia difusa pela “ordem” imperial bragantina sob Pedro II, na qual o imperador equilibrava a vida política e os localismos eram de certo modo acomodados num esquema político mais amplo. Sem um forte Estado centralizado como única forma de superar o caos republicano – é o que entendiam ambos – seria impossível superar a força dos interesses locais, centrífugos e “anárquicos” do clânico “Brasil profundo”. Torres, apesar de sua fé inicial na República, questionou o descentralismo e propôs uma revisão constitucional que reforçaria o poder da União; Vianna, por sua vez, não escondia a nostalgia do império bragantino, chegando a participar de círculos monarquistas. A centralização, para eles, não é apenas uma necessidade política, mas uma missão nacional – ainda que, no pós-1930, o Estado brasileiro tenha optado pelo industrialismo, abandonando o agrarismo que ambos defendiam. Não por acaso, Oliveira Vianna foi aderente de primeira hora do varguismo, sob cujo Estado Novo serviu como um dos responsáveis pela construção da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT): para Vianna, o forte centralismo varguista era a única forma de superar o localismo dos clãs políticos do “Brasil profundo”. Assim, legaram ao país uma visão que, ao mesmo tempo em que critica a desorganização do regime pelas forças centrífugas do “Brasil profundo”, reforça a ideia de que a ordem só pode ser imposta de cima para baixo, por um poder forte e incontrastável.
O que se quer é romantizar a mestiçagem e transformar a miscigenação em símbolo de harmonia racial? Tome-lhe um “Brasil profundo” mestiçado e dengoso à moda de Gilberto Freyre, onde a casa-grande e a senzala convivem em uma suposta intimidade entre desiguais. Com sua prosa envolvente, olhar etnográfico e fabulosa riqueza de fontes, Freyre constrói uma narrativa que celebra a mistura de raças e culturas como fundamento da identidade nacional, enquanto minimiza as violências estruturais da escravidão. A paulatina desintegração do patriarcalismo rural do “Brasil profundo” é como que lamentada por Freyre, para quem a “europeização” da sociedade brasileira a partir do século XIX não apagou de todo o “estilo brasileiro de convivência” entre desiguais. Criou assim uma visão idealizada do passado colonial, onde o patriarcalismo rural aparece como matriz cultural e a europeização é vista como uma ameaça à “autenticidade” brasileira. Assim, Freyre exalta a singularidade brasileira ao mesmo tempo em que reforça uma nostalgia por uma ordem social onde cada um “sabia seu lugar”.
O que se quer é esvaziar de conteúdo a dinâmica da luta de classes na exploração colonial portuguesa e ocultar as hierarquias raciais da formação do Estado brasileiro? Tome-lhe uma leitura weberiana à moda de Sérgio Buarque de Hollanda e Raymundo Faoro para reduzir a complexidade social ao patrimonialismo como “vício de origem”. Ao transplantar acriticamente o conceito weberiano de patrimonialismo – pensado para analisar Estados europeus pré-modernos – para o contexto brasileiro, Hollanda e Faoro promoveram um deslocamento conceitual que secundarizou bastante particularidades da formação social e a própria experiência antagônica dos sujeitos envolvidos na empresa colonial. Faoro é caso extremo ao traçar uma suposta continuidade entre o Estado português e as práticas oligárquicas locais. Essa operação teórica, porém, opera um curto-circuito: ao enfatizar a persistência de “vícios ibéricos”, dilui-se a singularidade de um sistema onde escravidão e mestiçagem reconfiguraram radicalmente as relações entre público e privado. O resultado é uma interpretação que substitui a análise material da exploração e da dominação na formação social por uma alegoria culturalista, convertendo o legado colonial em disfunção administrativa – como se a violência estrutural pudesse ser explicada por meros “desvios” da racionalidade burocrática ideal weberiana, superáveis pelas mesmas esperanças democráticas que moveram o próprio Max Weber em seu tempo e lugar.
Não vou me estender mais. Poderia continuar o jogo de perguntas retóricas com as interpretações do Brasil (“profundo”, ou “mestiço”, “agrário”, etc.) de Pandiá Calógeras, Antônio da Silva Mello, Couto de Magalhães, Nina Rodrigues, Afonso Ruy, Artur Ramos, Oliveira Lima, João Camilo de Oliveira Torres, Gondim de Oliveira, Afonso d’Escragnolle Taunay, Cassiano Ricardo, Paulo Prado, Câmara Cascudo, Carlos Ott, Justiniano José da Rocha, Afonso Arinos, Pedro Calmon, Joaquim Nabuco, Thales de Azevedo… mas já demonstrei meu ponto.
O “Brasil profundo” comporia um belo quadro de referências teórico, não fosse sua problemática vacuidade – porque o “Brasil profundo” é expressão simbólica, não conceitual. Enquanto símbolo, o “Brasil profundo” é somente um sintagma enunciado ao interlocutor do “eu” que o enuncia para que o preencha não com um significado preciso, mas com todo tipo de imagens, memórias, sons, evocações, raciocínios, sentimentos e reações. A ideia por trás desta mobilização simbólica, em geral, é a seguinte: existe um Brasil “arcaico”, “telúrico”, “emocional”, impermeável à razão crítica, que vive nos “grotões” — e que, por alguma razão insondável, sobreviveu à escolarização massiva, à padronização pela mídia de massas, ao espraiamento de instituições nacionalmente centralizadas (correios, previdência, sistema bancário, sindicalismo, SUS, etc.). O recurso à longa duração braudeliana, por si só, em nada ajuda se, como Braudel, não se fia o longo fio da trama histórica como sínteses de pesquisa historiográfica longa, vasta e profunda.
Com esta carga simbólica amorfa, o “Brasil profundo” pode ser mobilizado em qualquer discurso, especialmente em discursos políticos, para quase qualquer coisa.
“Conservadores” mobilizam-no contra “progressistas”, encontrando lá a “verdadeira força natural em prol daquilo que a gente acredita”.
A “esquerda”, por sua vez, acusa a “direita” de manipulá-lo. Operações profissionalizadas e bem estruturadas de mídia digital seriam capazes de impor-lhes temas, posicionamentos e argumentos “a favor” e “contra”, com efeitos nefastos para a democracia. Sobretudo quando o que se tenta explicar é a influência e persistência do bolsonarismo, esse fenômeno que tantos consideram inexplicável — sobretudo quando parte da população decide votar “errado” sem pedir autorização aos seus intérpretes autorizados.
Acontece que essa história — para além de um certo tédio epistemológico — carrega um problema conceitual sério: ela apaga a agência política dos sujeitos populares. Substitui a análise das relações de poder por uma tipologia moral. E, o que é mais curioso, serve como álibi perfeito para a permanência do mesmo velho projeto: um Brasil dirigido de cima, por aqueles que “sabem”. Do ponto de vista que assumo, o “Brasil profundo” não é objeto de manipulação, mas composto por gente capaz de se colocar como sujeito de táticas. O que se chama de “manipulação” é, muitas vezes, uma negociação cínica, tácita, de interesses: elites oferecem instrumentos de poder; setores populares os tomam, moldam, usam — ainda que para fins que não coincidem com os da elite. Quem sai ganhando? Sempre os mesmos. Mas não sem contrapartidas.
Daí dizer: o “Brasil profundo” que existe não é o “Brasil profundo”. O “Brasil profundo” é só uma técnica de retórica – aliás prejudicial para qualquer teoria social que se preze, porque falaciosa.
10.
Mas não nos precipitemos em nossa crítica. Afinal, o conceito de “Brasil profundo” tem lá seus méritos. Ele nos permite, por exemplo, ignorar confortavelmente a complexidade de nossa formação histórica e social. Por que se dar ao trabalho de analisar as intrincadas relações de poder que moldaram a formação social brasileira do país quando se pode simplesmente apontar para o “Brasil profundo” e dizer: “Eis ali a essência do Brasil!”?
Daí, por fim, uma última questão: por que dizer que quem inventou o “Brasil profundo” para falar dos outros terminou falando de si mesmo, às avessas e por contraste?
Porque, como bem sabem os linguistas, toda enunciação tem um “eu”, um “aqui” e um “agora”; um ego, um hic e um nunc; em suma, tem um sujeito, um espaço e um tempo. “Brasil profundo” é sintagma enunciado em língua portuguesa, primeiramente, por um “eu” de algum modo vinculado à intelligentsia brasileira, em “tempos” variados, num “espaço” social restrito a outros sujeitos interessados na implementação de algum modelo de governança sobre o próprio “Brasil profundo”.
Seja mobilizando este próprio sintagma em seus próprios termos, seja substituindo o “profundo” do sintagma por palavras que agreguem ao sintagma sentido parecido – “agrário”, “arcaico”, “atrasado”, “autêntico”, “folclórico”, “interiorano”, “patriarcal”, “rural”, “rústico”, “tradicional”, etc. – estamos diante de um marcador identitário, de uma identidade “moderna”, “desenvolvida”, “civilizada” e “culta” que se constrói às custas de um “outro” a quem se quer conduzir.
A mobilização do “Brasil profundo”, funciona como um marcador identitário, um dêitico que situa o enunciador em uma posição de superioridade em relação ao enunciado. O recurso ao “Brasil profundo” num registro estritamente simbólico, de contornos indefinidos, marca essa alteridade, permitindo que o enunciador se defina como “moderno”, “desenvolvido” e “civilizado” em contraste com o “atraso” e a “barbárie” do “Brasil profundo”, associado a uma série de traços negativos (ignorância, autoritarismo, violência, atavismo, etc.), enquanto o Brasil “moderno”, “litorâneo”, etc. é associado a traços positivos (racionalidade, democracia, etc.). Essa valoração hierárquica legitima a dominação e a exploração do “Brasil profundo” pelo “Brasil moderno”, perpetuando um ciclo de desigualdade e exclusão.
Mas, no fim das contas, a quem serve essa obsessão pelo “Brasil profundo”? A quem interessa essa busca incessante por uma “essência” nacional? A resposta é tão óbvia quanto incômoda: serve a um certo perfil de acadêmicos que, alheios à sua própria posição na estrutura social brasileira, se dedicam a discursar ex cathedra sobre os problemas sociais sem se darem ao trabalho de submeter seus pressupostos à saudável verificação empírica, ou a sujarem as mãos na luta política com os sujeitos subsumidos no “Brasil profundo”.
Interessa também ao movimento conservador, em especial ao bolsonarismo. O anti-intelectualismo é marcante neste movimento. Se à intelectualidade dita “progressista” se critica o recurso ao “Brasil profundo” por não explicar nada, aqui é o inverso. Como nos movimentos fascistas clássicos, ainda mais em tempos de fake news em alta velocidade submetidas a testes A/B a cada novo jorro, este movimento não precisa de definições conceituais precisas para nada. Pelo contrário: faz-se-lhe até um favor ao entregar-lhe de mão beijada um sintagma tão intensamente vazio e fluido quanto o “Brasil profundo”. Se aqui a “pátria” faz mais sentido que para a intelectualidade, o que interessa não é o “profundo”, mas o “Brasil”; a “profundidade”, então, perde força para ser ressignificada mais como um sentimento, uma paixão, um afeto a mobilizar. Podem até virar o sintagma pelo avesso: “não, os certos somos nós. Essa modernidade não serviu para nada. Não tirou ninguém da miséria. Só gerou corrupção, pecado e ditadura. Não serve para nós.” É neste sentido, aliás, que tais noções foram trazidas ao debate político brasileiro, e agora o ciclo se fecha.
11.
Escrevo tudo isso muito rapidamente, num só jorro, porque são notas que tomei aleatoriamente para botar ordem em ideias que me perturbavam o juízo há meses, desde que precisei retomar pesquisas em torno do “Brasil profundo”. Quem sabe um dia os resultados venham a público.
Como são notas, observações ligeiras, nada aí vai tão aprofundado quanto gostaria. Certamente há muito de arbitrário em certas afirmações, falta algum refinamento. Entretanto, é para isso que servem notas e ensaios. Talvez pensar alto em público seja um hábito que precisamos, todos, retomar.
Todas as imagens são da exposição Caipiras: das derrubadas à saudade
“Era uma vez um homem e seu tempo
Botas de sangue nas roupas de Lorca
Olho de frente a cara do presente e sei
Que vou ouvir a mesma história porca
Não há motivo para festa
Ora esta eu não sei rir a toa
Fique você com a mente positiva
Que eu quero a voz ativa
Ela é que é uma boa
Pois sou uma pessoa
Esta é minha canoa
Eu nela embarco
Eu sou pessoa
A palavra pessoa hoje não soa bem
Pouco me importa
Não você não me impediu de ser feliz
Nunca jamais bateu a porta em meu nariz
Ninguém é gente
Nordeste é uma ficção
Nordeste nunca houve
Não eu não sou do lugar
Dos esquecidos
Não sou da nação
Dos condenados
Não sou do sertão
Dos ofendidos
Você sabe bem”
Belchior – Conheço o meu lugar
Mexico profundo, uma civilizacao negada. Bonfil Batalla.
“O CONCEITO DE ÍNDIO NA AMÉRICA: UMA CATEGORIA DA SITUAÇÃO COLONIAL | Espaço Ameríndio” https://seer.ufrgs.br/index.php/EspacoAmerindio/article/view/133901
eboh soteropolitano rides again
multifluxão nexocaósmica: Camatte-Deleuze&Guattari-Debord-Foucault e suas quânticas derivas, fractais&friccionantes com respectivo devir orgonomico&inclusodisjuntivo a Wilhelm Reich
É notável o quanto essa ideologia do profundo está ligado ao nacionalismo, nessa busca por uma essência nacional mais autêntica, seja no Brasil, EUA, Europa ou qualquer outro canto. Seria essa busca, para além das oposições identitarias, uma forma de se afirmar uma nova-velha identidade brasileira? Um jeito de afirmar o arcaico como novidade, numa pegada de agropop. Penso numa matéria da The Economist falando que o interior do Brasil, especialmente MT e SP são hoje muito mais parecidos com o Texas do que com Mazzaropi
Pedro Seeger, “Brasil profundo”, justamente por poder ser tudo e nada ao mesmo tempo, por ser algo vago e indefinido, pode ser isso que você afirma, e muito mais. Depende de quem mobilize o sintagma. Mas o pano de fundo é sempre o mesmo: alguém que não se inclui nesse tal “Brasil prrofundo” tentando mobilizar para finalidades diversas alguém em quem “Brasil profundo” tem algum peso sentimental, afetivo ou pretensamente crítico.
De todo modo, se as áreas agrícolas de Mato Grosso e São Paulo não parecem mais com a caricatura de Mazzaropi, The Economist parece não ter reparado que o Missouri não é mais o mesmo de The Beverly Hillbillies (ou “Família Buscapé”, na versão brasileira). Essas metamorfoses do mundo rural rumo a uma “urbanização” (na falta de palavra melhor) do modo de vida e a uma industrialização massiva do trabalho agrícola já mataram o “profundo” de qualquer lugar, mas parece ainda haver uma defasagem entre esse fato e a imagem do mundo rural cristalizada no imaginário coletivo.
sobrevivência penitenciária ou
pseudoantinomia entre jeca tatu & jeca total, subsumidos na uberpejotividade digital