Por Gabriel Teles

Há algo de profundamente perverso em Pessoas Comuns, episódio inaugural da sétima temporada de Black Mirror. Não se trata apenas de uma crítica às corporações tecnológicas, nem de mais um alerta sobre a perda da autonomia individual diante do avanço das máquinas. É algo mais desconfortável: a revelação nua de que, em nossa sociedade, nem mesmo a morte escapa da lógica da mercantilização.

Amanda, uma professora comum, é diagnosticada com um tumor cerebral terminal. Em meio ao desespero, surge a promessa de salvação: a Rivermind, empresa de biotecnologia que oferece um procedimento experimental capaz de prolongar artificialmente a consciência, conectando o cérebro da paciente a servidores externos. Um pequeno preço para continuar existindo — literalmente: uma assinatura mensal que mantém sua mente em funcionamento.

À primeira vista, a promessa é embriagante. A medicina tecnológica parece ter finalmente vencido a morte. Mas logo a ilusão se desfaz. A sobrevida conquistada vem condicionada a um modelo de consumo contínuo: planos básicos que garantem funcionamento mínimo, pacotes premium que asseguram estabilidade emocional, atualizações obrigatórias para corrigir falhas críticas. Cada nova atualização encarece o sistema. Cada manutenção transforma a luta pela vida em uma fatura crescente.

O que Black Mirror evidencia aqui é um salto qualitativo na barbárie capitalista: não se trata apenas de explorar o trabalhador enquanto ele produz, nem de mercantilizar os bens que sustentam a vida. Trata-se de algo mais profundo e estrutural: a captura do próprio processo de morrer como mais uma etapa de faturamento contínuo. A morte, que historicamente representava o limite natural da acumulação — o momento irreversível em que cessava a capacidade de produzir, consumir ou ser explorado —, é reconvertida em ativo econômico. A finitude humana, até então um obstáculo inevitável ao ciclo da mercadoria, é recodificada como oportunidade de extração de valor residual. O corpo moribundo, o sofrimento, a memória residual de uma consciência artificializada: tudo se torna passível de monetização. Nada escapa. Nem mesmo o fim.

A sobrevida tecnológica vendida à Amanda não representa a vitória da ciência sobre a morte, mas a vitória do capital sobre a dignidade da finitude. Surgem, assim, novas figuras de subjetividade no capitalismo tardio: o morto-devedor, que subsiste enquanto sua assinatura é paga; o espectro endividado, cuja existência residual depende do fluxo contínuo de pagamentos, atualizações, upgrades e subscrições. O que era a dignidade última — a possibilidade de morrer em paz, de reconectar-se ao mundo humano sem mediação econômica — é sequestrado e reconvertido em fonte de lucro. A vida, mesmo em seus estertores finais, é avaliada pelo que ainda pode render. A decomposição, o declínio, o colapso das funções vitais tornam-se processos financeiros administrados por servidores, sistemas de cobrança e cláusulas contratuais. Até o último suspiro precisa ser validado por um pagamento.

Não estamos diante apenas de uma ficção especulativa, mas de uma tendência real e crescente da forma social contemporânea. Em um mundo no qual seguros de vida, testamentos digitais, criogenias experimentais e plataformas de prolongamento artificial da consciência já circulam como mercados emergentes, Pessoas Comuns apenas radicaliza uma dinâmica latente: a necroeconomia. Sob ela, a morte deixa de ser um fato humano para ser uma fase gerencial do capital. O cadáver, a memória e o sofrimento tornam-se commodities. A barbárie capitalista, assim, não se limita mais a expropriar os vivos: ela invade o reino dos mortos para arrancar, também ali, as últimas parcelas de valor.

A tragédia de Amanda e Mike escancara essa lógica cruel. O amor que tenta salvar, a esperança que tenta prolongar, é capturado por um sistema que não conhece compaixão. O que deveria ser gratuito — o direito de morrer em paz — é transfigurado em mercadoria. Enquanto houver respiração, mesmo que mediada por máquinas, haverá cobrança. Enquanto houver um cliente em sofrimento, haverá atualização, upgrade, boleto.

E quando, enfim, a capacidade de pagamento se esgota — como se esgota a resistência dos corpos e dos corações —, a desconexão não é um ato de misericórdia. É o cumprimento frio da lógica de mercado: quem não pode pagar, não pode viver.

Essa distopia não é apenas um pesadelo fictício. É um espelho. Basta olhar para o custo dos tratamentos médicos inacessíveis, das terapias genéticas de elite, dos medicamentos restritos a quem pode pagar. Casos recentes, como o de Luigi Mangione nos Estados Unidos — acusado de matar o CEO de uma empresa de saúde em meio ao desespero por acesso a tratamentos —, mostram que essa lógica de mercantilização da vida e da morte já extrapola a ficção, explodindo em tragédias reais.

A financeirização da saúde já transforma a doença em oportunidade e a morte em commodity. Pessoas Comuns apenas explicita o que já se insinua: a vida é mercadoria. A doença é mercadoria. A morte é mercadoria. Tudo é matéria de mercadoria.

Amanda, a professora, não é exceção. Ela é o retrato de uma humanidade inteira reduzida a plano de assinatura. Pessoas comuns, presas em um ciclo de sobrevivência precarizada, prolongando suas vidas não porque a tecnologia libertou, mas porque o capital ainda tinha algo a extrair. Após perder o emprego, Mike é forçado a recorrer a transmissões ao vivo nas redes, vendendo sua própria mutilação a um público anônimo disposto a pagar para vê-lo se degradar. A economia da dor, alimentada pela miséria e pelo sadismo, revela um novo patamar de exploração: o corpo transformado em mercadoria extrema. Ao mesmo tempo, a dinâmica familiar contemporânea — com seus múltiplos arranjos e a necessidade desesperada de compor o orçamento — é mostrada em sua forma mais crua: não como escolha, mas como imposição brutal da sobrevivência.

Ao fim, Pessoas Comuns não é apenas uma ficção sombria sobre o futuro: é a radiografia do presente que já se anuncia. A necropolítica não é uma exceção monstruosa; é a norma silenciosa de um capitalismo que mercantiliza tudo, inclusive a morte. Em um mundo onde até a finitude foi sequestrada, resta imaginar formas de vida — e de morte — que escapem à lógica do débito e da assinatura. Porque sobreviver até o último pagamento não é viver: é apenas adiar a fatura final.

 

Ilustramos este artigo com fotografias de Minor White (1908-1976).

 

3 COMENTÁRIOS

  1. Sobre isso, e sobre vários desenvolvimentos da indústria hoje, através de novas tecnologias, os escritos do Ivan Illich ganham ares de clássicos sobre o assunto. Há o livro Nêmesis da Mecidina: a expropriação da saúde. Mais especificamente sobre a perda de autonomia sobre a saúde e a morte há um texto dele que foi publicado no Brasil em um número da extinta revista Letra Livre, da editora Achiamé, acho que no início dos anos 2000.

    *** *** ***

    Segue um parágrafo do livro A Expropriação da Saúde, do Ivan Illich, que creio que mostra a convergência com o tema desse episódio de Black Mirror:

    “Vi muitas vezes o que se passa nas cidades mexicanas logo que se introduz a assistência sanitária. Durante uma geração, a população guarda suas crenças tradicionais; sabe como morrer e como enfrentar a infelicidade. Mas a enfermeira e o doutor, confiantes em sua sabedoria, começaram a ensinar-lhes o que são as más mortes clínicas, e que convém bani-las, e por que preço. Em vez de melhorar e modernizar os fundamentos dos conhecimentos medicinais da
    população, eles infundem o ideal da morte hospitalar. Os serviços que prestam comprometem os camponeses em uma busca sem fim da boa morte conforme descrição internacional, busca que fará deles consumidores para sempre.”

  2. Acrescentaria também a mercantilização da lembrança de quem já morreu.De mausoléus que simbolizam figurões até as lápides mais simples, se lucra com a ânsia da manutenção do status post mortem e do sofrimento de quem ficou e não consegue deixar esquecer.

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