Por Henrique Garcia Pereira
PROÉMIO
Em julho de 1969, logo que entrei para a função pública como ‘engenheiro de terceira’, assinei as ‘letras de crédito’ que me permitiram comprar o meu primeiro Dyane. Nesses tempos, o AUTOMÓVEL suscitava – entre os meus amigos que se opunham à ditadura – um feixe complexo de mixed feelings (Fig. 1): por um lado, era um insinuante dispositivo que assegurava alguma gratificante autonomia para o blooming da esquerda antiautoritária; por outro, era o símbolo da mais tenebrosa tirania que tinha arrasado a Europa continental com a sua Blitzkrieg motorizada em que o movimento rápido era vital.

Na sua genealogia, a minha conceção do automóvel pode ser vista como um tipo de oximoro dual, em que o côté negativo emergiu – logo na primeira infância – da influência do meu Avô, ‘republicano histórico’ completamente avesso – nas diatribes da sua fase carbonária – ao instrumento com que o seu arqui-inimigo Dom Afonso de Bragança aterrorizava – aos gritos de ARREDA! – o povo que ocupava dolentemente a Baixa lisboeta em princípios do século XX (Fig. 2).

A sanha do meu Avô contra o automóvel foi-se atenuando à medida que lhe chegavam notícias sobre o movimento Futurista italiano (Fig. 3 esquerda), que lhe eram transmitidas da Sorbonne pelo seu amigo Aquilino, refugiado em Paris após o regicídio. Na minha adolescência, o meu Avô gostava de comentar comigo a Fig. 3, retirada de um velho número da “Ilustração Portuguesa”. E o que recordo mais vividamente dessas longas conversas é o tom dúbio com que falava do automóvel, que revelava um certo amor-ódio: o prazer da velocidade era temperado pela aversão ao elitismo, competição e autoritarismo ligados à imagem transmitida pelo Alfa Romeo de Mussolini (Fig. 3 direita).

VEÍCULO DE TRANSGRESSÃO
Quando abri os meus horizontes para a América, ficou reforçada a perceção do carácter antitético do automóvel no seio de um imaginário singular, feito de uma aliciante transgressão do sistema autoritário de valores que apresentava o fordismo como apanágio de uma espécie de ´capitalismo popular’ capaz de obliterar a luta de classes que grassava na Europa (Fig. 4).

Nas estórias que me iam chegando sobre a ‘Grande Depressão’, surgia frequentemente o tópico de uma reiterada transgressão do american way of life através de gestos de contestação assentes na velocidade permitida pelo automóvel (e condimentados por alguns episódios picantes). No cinema e nas leituras, eclodiam interessantíssimas narrativas de encantadores Bank Robbers (Fig. 5), que punham em xeque o iníquo sistema económico montado a partir do petróleo pelos sinistros Robber Barons (Fig. 6).


Durante a minha esfuziante vivência do rescaldo de Mai68, pude assistir no estúdio Cujas do Quartier Latin a um filme protagonizado pelo Jacques Brel que trazia à tona o espírito libertário que emergiu na França/Bélgica do princípio do século XX, com a revolta contra os malefícios da ‘revolução industrial’. Sob a clara influência da ideia dominante nos ‘évènements de Mai‘, o filme retratava as aventuras de um grupo heteróclito de insurgentes que viraram o automóvel e o colt 45 contra o sistema capitalista, segundo um roteiro criado pela personagem Raymond-la-Science (Brel), o operário anarquista bibliófilo que acreditava nas máquinas e no poder redentor da ciência (Fig. 7).

CONTESTAÇÃO DO FORDISMO E DA COMPETIÇÃO
No Técnico dos finais dos anos 60, voltei a deparar-me com a questão da ‘linha de montagem’ do fordismo em cadeiras que pretendiam trazer a ‘Organização Científica do Trabalho’ à maneira de Taylor para a incipiente indústria portuguesa desses tempos (Fig. 8). E logo essa estrambólica proposta ideológica (que não tinha nada de ‘científico’) foi plenamente ridicularizada no comentário de filmes como «Tempos Modernos», publicado na ‘folha de sala’ do Cineclube Universitário, que funcionava como uma espécie de anexo do Técnico (Fig. 9).


No ano em que acabei o curso, houve – no campus do Técnico – uma tentativa de promover a competição automóvel através da realização de uma gincana de karts, organizada por um grupo de estudantes da ‘direita desportiva’. No dia aprazado para o bizarro acontecimento (que estava completamente desalinhado com todas as práticas associativas correntes, com espesso conteúdo cultural de esquerda), surgiu um bunch de insolentes ‘boicotadores’ que – numa festiva coreografia – deitaram fogo aos fardos de palha que ladeavam o ‘circuito’, impedindo assim a concretização do obnóxio episódio. Na semana seguinte, foi profusamente distribuído um tract em que se satirizava a gincana através do détournement de uma Banda Desenhada do Astérix (Fig. 10).

Esta ação exemplar de boicote de uma aparentemente inócua ‘realização desportiva’ desencadeou alguma reflexão – com raízes nas posições teóricas da Internationale Situationniste, expressas uma década antes na Revista da IS (Fig. 11) – sobre o automóvel como veículo (literal) do espetáculo e sua função no capitalismo (Fig. 12).


REFLEXOS DA CULTURA AMERICANA
Nos últimos anos da ‘guerra fria’, o automóvel foi um verdadeiro protagonista da História global, como símbolo dos dois modos aparentemente antagónicos de publicitar a sociedade industrial até à queda do Muro de Berlin (Fig. 13).

Na contracultura dos anos 60 com origem americana, a Beat Generation elegeu o ‘tropos’ associado ao automóvel como um literal deus-ex-machina de uma certa emancipação imanente, que pode ser alcançada através de algum movimento autónomo. Em particular, na obra de Jack Kerouac, pode encontrar-se um exemplo exemplar do modo de integrar o automóvel numa narrativa filosófica moderna de contornos anarcoindividualistas (Fig. 14).

Como spiritual ancestors de Kerouac, é possível identificar alguns escritores americanos dos anos vinte que ficaram conhecidos como pertencentes à Lost Generation, entre os quais quero destacar Francis Scott Fitzgerald, com os seus textos protagonizados pelo automóvel que anunciavam a estrutura da ‘American Road Narrative’ (Fig. 15).

Para os babyboomers como eu, nascidos na sociedade burguesa dos anos quarenta onde a cultura popular americana ia penetrando, o automóvel desempenhava um importante papel no imaginário infantil como brinquedo muito comum, mas tinha também um lugar saliente na concretização das fantasias lascivas da adolescência, como (incómodo) ninho dos primeiros amores (Fig. 16).

EMERGÊNCIA DA ESQUERDA FESTIVA
Na contestação estudantil dos anos 60, a função de uma mítica viatura como o Dyane era crucial na logística da circulação interna do mais variado ‘material subversivo’ em termos de papel impresso. Por outro lado, não posso deixar de reconhecer a enorme importância do automóvel na importação clandestina de tudo o que era literatura proibida, que nos chegava – literalmente – às carradas, sempre que os apetecidos volumes e brochuras das mais variadas proveniências desembarcavam nos nossos ‘pontos de apoio’.
Em particular, era meu hábito no início dos anos 70 fazer excursões periódicas a Paris de automóvel, para adquirir na Maspero os últimos livros proibidos, que eram cuidadosamente embrulhados na pletora de panfletos de todos os matizes produzidos abundantemente no pós-Mai68. No regresso a Lisboa, os preciosos pacotes eram disfarçadamente acondicionados sob o capot do meu Dyane, para escapar à inspeção alfandegária da maletera del coche, à entrada em Espanha. Estas excursões tiveram um ‘triste fim’, quando o motor do Dyane sobreaqueceu à saída de Hendaye, provocando um dantesco incêndio que a Guardia Civil teimava a atribuir ao transporte de bombas para a ETA (Fig. 17).

No período entre 1970 e 1974, a economia portuguesa teve um certo desenvolvimento, que se refletiu também num acréscimo significativo na capacidade de utilização do automóvel por parte de alguns setores da pequena burguesia e proletariado urbano. Esse surto económico de raiz industrial – que atingiu taxas de crescimento da ordem de 10% – teve repercussões na bolsa de valores e na banca, facilitando o acesso ao crédito para a aquisição de bens de consumo, entre os quais se contava o automóvel como constituinte principal. No impulso para este crescimento económico, quero realçar o papel da ‘burguesia europeísta’ partidária do investimento estrangeiro profundamente avessa ao efeito coercivo da ‘lei da contenção industrial’ do salazarismo. Foi esta camada da burguesia adepta de um ‘capitalismo modernizante’ que impulsionou a montagem em Portugal de veículos motorizados, por exemplo, o Dyane Nazaré, na fábrica de Mangualde (Fig. 18).

O contexto económico aqui esboçado permitiu a emergência de uma ‘Esquerda Festiva’ urbana e cosmopolita, que – bafejada pelo espírito de Mai68 – rompe decididamente com a ortodoxia que tinha alcançado alguma preponderância na oposição ao fascismo a partir do pós-guerra. Como importante elemento do imaginário desta pregnante corrente ultraminoritária, posso identificar a mudança no modo como o símbolo do automóvel era concebido e ostentado: de uma função utilitária ao serviço dos poderosos eivada de um cariz competitivo, passou-se a um papel em que os contornos lúdicos coexistem com a demanda de mobilidade por parte das gentes.
Nos tempos de intenso fulgor a seguir ao 25 d’Abril em que a Esquerda Festiva rompeu as amarras da antiga autoridade, pude viver intensos ‘dias de vinho e de rosas’, quando uma gigantesca máquina opressora deixou de funcionar, dando lugar, como por magia, a uma esfuziante embriaguez de alegria, associada à agitação revolucionária (Fig. 19).

TRANSIÇÃO PARA O SÉCULO XXI
No século XX, o automóvel foi um importante protagonista da História do capitalismo ocidental, com um significativo ‘tempo de ecrã’ nos meios de comunicação social. Estes tendiam obviamente a sobrevalorizar a sua faceta emancipatória, em detrimento dos aspetos mais danosos para as gentes.
A duplicidade ambígua do automóvel como ícone sociológico do fim de uma época ficou bem patente na revolta dos ‘gilets jaunes’ que abalou a sociedade francesa nos anos 2018-19, como clou (extemporâneo) da raiva contra a sociedade manifestamente autoritária que prevalecia no ‘Hexagone‘. Meio século depois de Mai68, alguns tópicos da revolta juvenil parecem ter renascido, num cenário espacialmente mais ampliado, em que a cidade se ramificou para as rotundas das estradas secundárias, onde irrompeu a festa num modo centrifugo (Fig. 20).

Em Paris, a ideia mágica de ‘brûler des voitures‘ migrou centriptamente dos subúrbios, veiculada pelos gilets jaunes en chômage (Fig. 21).

Em termos tecnológicos, verifica-se uma transição da automação para a robótica como key factor da indústria hegemónica em finais do século XX, como ilustrado na Fig. 22, para o caso da linha de montagem do automóvel.

Posso avançar que esta transição marca o fim da quimera do automóvel como ‘divinal veículo de liberdade’, e o surgimento do espectro do ‘inferno rodoviário’ que se instalou no mundo globalizado dos anos 1990, com os engarrafamentos insuportáveis e a emissão descontrolada de gases sulfúreos (Fig. 23).

Durante o século XXI, verificou-se um significativo fenómeno de profundo alargamento no fosso socioeconómico entre as gentes e a delgadíssima camada dos super-ricos, que tendem a desenvolver ideologias de extrema-direita para ‘justificar’ esse alargamento com base numa Economia que passou do pensamento neoclássico para uma ‘Ciência Desumana’ par excellence. Essas ideologias rompem decididamente com alguma globalização virtuosa, abrindo para uma nova era de financeirização drástica do capitalismo, acoplada com um autoritarismo tirânico de contornos mafiosos baseado numa arrogância impiedosa característica de uma oligarquia nepotista.
No período em que começou a ocorrer uma certa hegemonia do capital financeiro, surgiu um feixe de sinais que indicam um expressivo crescendo na violência larvar subjacente às sociedades ocidentais. Em particular no que diz respeito à ideia prevalecente na cultura americana sobre o automóvel, este passa a ser visto como uma ‘maquina de morte’, objeto de estórias de ‘ficção’ e de reportagens sobre a ‘realidade’ (Fig. 24).

Na licitação do gang trumpista sobre as tarifas a aplicar às importações, não é de estranhar que o automóvel seja taxado em 25%, enquanto os produtos eletrónicos estão (praticamente) isentos de qualquer imposto alfandegário. De facto, este é um indício de como os meios tradicionais de comunicação são desconsiderados em face dos produtos que alimentam a oligarquia baseada no capitalismo financeiro, pondo a nu uma nova aliança entre o poder político e as indústrias de Silicon Valley, dependentes de elementos de alta tecnologia vindos do estrangeiro. A antiga ambivalência criativa sobre a ideia de automóvel como meio de transporte imanente à escala das gentes (Fig. 25 a) foi substituída por um dogmatismo autoritário e arrogante que favorece intensamente as mensagens transcendentes à velocidade da luz (Fig. 25 b).

Henrique, me chamou a atenção o uso da expressão “esquerda festiva”. Por ignorância talvez, pensei que se limitava à referência a certos contextos universitários brasileiros, eu não havia visto ainda seu uso aplicado a outros países. Você o utilizou de maneira livre, como caracterização geral, ou para indicar um setor específico da esquerda daquele momento? Penso, no caso brasileiro, em organizações como a Libelu.