Por Vitor Ahagon
Em casa, minha companheira e eu temos o costume de transformar os momentos do banho em grandes e pequenas conversas. Muitas delas giram em torno do nosso trabalho. Ambos somos professores, ela do ensino infantil e eu do ensino médio. Somos professores da rede particular de ensino. Eu sou professor de uma escola de bairro na zona norte e de uma outra em bairro de playboy da zona sul. Ela trabalha em uma escola que está em outro patamar ($$$). Mas ambos, como os velhos socialistas já diziam, não recebemos por tudo aquilo que trabalhamos. Dentre todas as demandas que temos no trabalho, as famílias são centrais, principalmente no infantil. Foi em torno desse tema que nossa conversa se deu…
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No contexto das sociedades capitalistas, podemos considerar a família como uma unidade produtiva. Especificamente nas sociedades de economia neoliberal, os arrimos de família são obrigados a despender muito mais horas no trabalho para sustentar suas proles no que tange a saúde, educação e lazer. Em tais sociedades, cindidas por classes, a distribuição da lei ou norma varia tanto quanto a composição da estrutura familiar que a sustenta. Nesse sentido, para a classe média emergente de alta capacidade de consumo, a conquista do mercado de trabalho pela força de trabalho feminina e a manutenção ou elevação dos cargos masculinos produziram uma ausência de referências de autoridade, portanto, da norma e da instituição da lei no interior da família, elementos fundamentais que delimitam as fronteiras do que é ou não permitido, e que foram ocupadas por figuras provenientes da indústria cultural digital para crianças e adolescentes.
Por isso, quando as crianças ou adolescentes da classe média emergente de alta capacidade de consumo impõem suas vontades no seio familiar, não encontram resistências por parte das figuras paternas, pois estas estão esvaziadas de autoridade. Diante da incapacidade de impor as normas, os pais ou responsáveis terceirizam essa responsabilidade à instituição escolar. Não à toa, as escolas mais disputadas pela classe média emergente são aquelas mais tradicionais e rígidas, dispostas a dobrar a coluna das crianças e adolescentes até o limite da mensalidade.
A típica família da classe média emergente é um tipo ideal de família que, apesar de não ter realidade empírica, nos serve de ferramenta heurística para analisar o fenômeno social da família contemporânea. No entanto, ainda que a família de classe média emergente seja uma categoria abstrata, ela é almejada como ideal de família e tem se tornado, cada vez mais, a forma hegemônica da família ideal, influenciando as formas familiares das classes média empobrecida e trabalhadora, muito mais diversas em suas composições.
A forma específica da relação com a lei e a composição da estrutura do tipo ideal familiar da classe média emergente de alta capacidade de consumo é a forma familiar, por excelência, do neoliberalismo. A terceirização da imposição da norma para a instituição escolar é seguida da terceirização generalizada de toda gestão doméstica. A família de classe média emergente ou família neoliberal, mobiliza todo um conjunto de trabalhadores precarizados: empregadas domésticas, cozinheiras, babás, professores de inglês, ifood, uber e as plataformas de streaming. Sujeitos que têm corpo e classe muito diversa dos corpos dos sujeitos da classe média emergente de alta capacidade de consumo.
Na dominação tradicional da família patriarcal, a criança e o adolescente reprimem neuroticamente a libido, uma vez que as leis são instituídas pelas figuras parentais. A família neoliberal parte da dominação racional com relação a fins, na medida em que as crianças e adolescentes deslocam a libido para as instituições e trabalhadores precarizados. No contexto da família patriarcal, a repressão libidinal pode interiorizar o conflito, adoecendo a criança e o adolescente, ou externalizá-lo, fazendo explodir a relação entre pais e filhos. Já na família neoliberal, o deslocamento libidinal, ou terceirização da libido, transfere aos trabalhadores e à escola o conflito. A vantagem para pais, crianças e adolescentes é que sempre sairão ganhando, uma vez que o outro se apresenta, ou melhor, representa a prestação de serviço. O trabalho do trabalhador precarizado degrada em serviço. O que, por sua vez, faz degradar o trabalhador em serviçal, sendo o fruto deste serviço/trabalho propriedade do proprietário e não de quem trabalha.
Portanto, a criança e o adolescente da família neoliberal são, ao mesmo tempo, déspotas com poderes, quase onipotentes, sobre seus serviçais, mas também e inclusive, débeis e impotentes, pois desimportantes para seus pais, uma vez que a libido destes estão todas investidas em si mesmos e não em seus filhos. O sintoma desse desinvestimento, produz nos pais a culpa e a tentativa de suprir a ausência libidinal por mercadorias que supostamente são desejo da criança e do adolescente. Nestes últimos, os sintomas que mais se manifestam são a carência, devido ao desinteresse dos pais pelos filhos, e o individualismo, uma vez que percebem que o destino da libido deve voltar-se para si mesmos, assim como seus pais fazem com eles próprios.
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Brisas à parte, após o banho, eu e minha companheira encostamos nossas cabeças no travesseiro e dormimos o sono, não dos justos, mas dos explorados. Amanhã teremos mais conversas, talvez sobre outro tema, talvez a continuação desse.
As obras que ilustram este artigo são do artista britânico Banksy (1974 —)
Qual é a opinião dos autores sobre o “Dia do Brinquedo”?
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O texto acerta no diagnóstico: “quando as crianças ou adolescentes da classe média emergente de alta capacidade de consumo impõem suas vontades no seio familiar, não encontram resistências por parte das figuras paternas, pois estas estão esvaziadas de autoridade”. Mas erra feio ao associar este diagnóstico com a presença dos pais na mercado de trabalho.
É incorreto afirmar que “a conquista do mercado de trabalho feminino e a manutenção ou elevação de cargos masculinos” é o que produz “uma ausência de referência de autoridade”. Não é de hoje a presença feminina no mercado de trabalho, assim como não é de hoje a presença masculina em cargos elevados. A causa da dificuldade dos pais em serem capazes de dizer NÃO passa longe disso. A colocação está tão incorreta que basta pensarmos no negativo dela para verificarmos o absurdo. A implicação é a seguinte: se “a conquista do mercado de trabalho feminino e a manutenção ou elevação de cargos masculinos” gera perda de autoridade familiar (referência de família), então o rebaixamento de cargos masculinos e a elevação de desemprego masculino e feminino elevaria a autoridade familiar, o que também não pode ser verdade. E pensamento um absurdo pois não há aqui nenhuma relação lógica de causa e efeito.
Agora, eu me pergunto sempre que efeito teve o ECA na manutenção da referência de autoridade familiar. Me pergunto também que efeito tem a pedagogia positiva (muito mais presente nas escolas particulares do que nas publicas). E fico muito curiosa também para conhecer a opinião dos autores a respeito do “Dia do Brinquedo” nas escolas particulares (que é uma experiência completamente diferente, no sentido daquilo que o dia do brinquedo potencializa, do “dia do brinquedo” das escolas públicas).
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Um acréscimo: tampouco o narcisismo dos pais é um fenômeno exclusivamente contemporâneo.
Vale também lembrar que a psicanálise nasce já a partir da constatação freudiana de que a autoridade paterna estava indo por água abaixo. Freud retrata isso com suas memórias das humilhações antissemitas que seu pai recebia na rua, sem reações possíveis.
Agora, se pensarmos na castração, o que dizer da educação de filhos cujos pais estão constantemente acorrentados aos seus celulares? Estas crianças desde muito cedo entenderão que a humanidade inteira não tem mais remédio que buscar neste incrível artefato a resposta para todas as suas ansiedades.
Fala Vitor, doideira ler seu texto hoje, já que aqui em casa eu e minha companheira trabalhamos na mesma área, e ontem tínhamos uma conversa bem parecida… sobre a relação de prestação de serviço dessas famílias com aula particulares, como se fosse um remédio mágico pro filho não ficar de recuperação no colégio pago. O filho tá largado, sem os pais acompanhando escola ou rotina de estudos, e o remédio da aula é pra evitar frustrações na vida, como ficar de rec. E se ficou de recuperação mesmo assim, na cabeça de quem contratou a explicação é que o serviço foi ruim, não muito diferente de um motorista de Uber que confunde o trajeto ou uma doméstica que não fez a limpeza perfeita. Abração
O ponto ressaltado não é a simples presença ou ausência dos pais no mercado de trabalho, mas sim no que o mercado exige dos pais para se manter nele. No contexto da sociedade neoliberal, os pais se veem obrigados a não apenas vender sua força de trabalho, mas também transferir sua libido para ele. O aumento da carga de trabalho, a maior demanda por produtividade, típicas formas de extração de mais valia, vêm hoje acompanhadas de um esforço cada vez maior em se projetar como versátil, despojado/a e criativo/a. A concepção de ser empreendedor de si faz com que o/a trabalhador/a deixe de investir a libido nas relações familiares, e passe a investir na mercadoria de si mesmo.