Por Passa Palavra
A condenação de Jair Bolsonaro junto com militares da cúpula das Forças Armadas é algo sem precedentes na história do Brasil, como vem ressaltando a imprensa nacional e internacional. De fato, o tradicional no Brasil é anistiar ou sequer processar criminalmente políticos e militares de direita que tentaram tomar o poder à força, o que sempre encorajou novas conspirações golpistas.
O que nos interessa, no entanto, não é a suposta função pedagógica de condenações decididas pelo aparato estatal de justiça, e sim a maneira como essa decisão impacta a configuração das disputas políticas no interior da extrema-direita no próximo período, bem como as reações da esquerda, seja ela alegadamente anticapitalista ou não.
Vamos primeiro situar a questão do ponto de vista das disputas internas à extrema-direita e ao fascismo e, em seguida, do ponto de vista da classe trabalhadora.
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Primeiramente cumpre levantar algumas questões sobre o papel do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Este foi, desde há muito, um agente político relevante, tendo atuado nas secretarias de diferentes administrações da direita paulista. Quando secretário da Segurança Pública em São Paulo, para além das chacinas já normalizadas cometidas pela polícia, com destaque para a ocorrida em Osasco, notabilizou-se pelo enfrentamento às ocupações secundaristas. São de especial relevância os expedientes utilizados para a desocupação do Centro Paula Souza, onde apesar de uma decisão judicial que impediria o despejo dos estudantes, Moraes utilizou-se de um ato administrativo para retirá-los à força. Demonstrou assim a capacidade de encontrar justificativas jurídicas para legitimar a ação repressora do Estado, e foi por essa razão logo alçado à ministro da Justiça pelo então presidente da República Michel Temer. Esse histórico nos ajuda a esclarecer um ponto: não se trata de pensar que os meios pouco ortodoxos utilizados nos julgamentos atuais abrem um precedente para a repressão à extrema-esquerda; antes, foi a expertise construída ao longo de anos como agente da ordem contra mobilizações populares que agora se voltou contra os fascistas.
Todavia, não deixa de ser sintomático do atual estado de coisas que Moraes seja alçado a figura a ser mais que defendida, exaltada, com memes, textos, episódios de podcast, publicações em redes sociais variadas. Demonstra-se assim a própria incapacidade de construir meios próprios de combate ao fascismo ou à extrema-direita em geral, precisando depositar em elementos da direita tradicional bem inseridos nas organizações estatais as esperanças de evitar a expansão do fascismo. Tal incapacidade de ação da esquerda tem como caso emblemático a recente prisão de Alessandra Moja, articuladora de anos das lutas da favela do Moinho, que foi humilhada e teve sua reputação destruída por uma ação conjunta da extrema-direita e do Ministério Público de São Paulo e, para além de esforços da comunidade e apoiadores, pouca atenção recebeu do conjunto das esquerdas.
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Não por acaso essa extrema-direita, que ocupa atualmente o governo paulista, vem apostando em construir uma imagem espetacularizada de combate ao crime, afinal sabem que isso se converte em votos e não irão hesitar em fazer afirmações ou armações que resultem em uma associação entre àqueles que lutam e os criminosos comuns. O interesse especial nessa mobilização no Estado de São Paulo se explica por Tarcísio de Freitas apresentar-se como o sucessor mais cotado para herdar a articulação política que deu sustentação a Bolsonaro. Cabe recordar que Tarcísio é produto das ações dos governos petistas. Assim como parte dos generais agora condenados por Golpe de Estado, ele também foi formado nas ações repressivas desempenhadas pelo exército brasileiro na ocupação do Haiti e depois foi funcionário do governo Dilma Rousseff. Hoje em dia, situa-se certamente na extrema-direita e não mede esforços em se colocar como o mais fiel seguidor de Bolsonaro, prometendo-lhe a anistia se chegar à presidência, articulando votos de deputados para projetos no mesmo sentido e participando de manifestações em defesa do ex-presidente.
Ocorre que essa movimentação feita pelo governador indica uma disputa entre as diferentes forças da extrema-direita e os fascistas mais radicais sobre os rumos do que hoje é o campo bolsonarista. É evidente que com a prisão do líder da mobilização fascista, se abre o espaço para quem irá ocupar esse lugar. Qualquer um que já estudou mobilizações fascistas de outras épocas sabe que a existência dessas facções e a disputa violenta entre elas é uma regra e não uma exceção. Parece claro que neste momento o que se pode chamar de eixo conservador está articulado no entorno de Tarcísio. Enquanto Eduardo Bolsonaro encabeça o eixo radical, declarando que não há conciliação possível, articulando sanções econômicas ao país e incentivando em publicações e discursos um levante contra o Supremo Tribunal Federal — no que parece estar cada vez mais isolado. Não parece ser desprezível neste contexto o papel que será desempenhado por Nikolas Ferreira, deputado federal por Minas Gerais que conta com amplo apoio dos setores evangélicos e alta capacidade de mobilização das milícias digitais nas redes sociais. Recentemente ele tem publicado frases como “seja a extrema direita que eles tem medo”, além de ter feito referências às revoltas ocorridas no Nepal como uma inspiração para possíveis mobilizações no Brasil. Ainda parece cedo para saber como se resolverá esta disputa interna e se algum dos pretendentes conseguirá manter e ampliar a mobilização fascista, mas qualquer que seja o desfecho não é crível que a ação dos aparatos jurídicos estatais será uma forma eficaz de realmente derrotar esse movimento.
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Mas o que fazer quando a esquerda abriu mão da revolução? O que fazer quando a esquerda se tornou, na verdade, o paradigma da moderação, sendo o reformismo mais limitado o seu horizonte mais radical? O que fazer quando os movimentos revolucionários de esquerda ruíram e até os movimentos reformistas acabaram enredados na teia de um Estado que consente em sua participação, desde que se mantenham na periferia dos processos decisórios?
Se 80 anos atrás a derrota do fascismo deu-se apenas no campo militar, permitindo a perpetuação política de suas ideias, nos dias de hoje a possível derrota judicial dos fascistas parece também permitir a perpetuação de seus pressupostos e linguagem. Não nos parece irrelevante o esforço de esquerdistas dos mais variados matizes reivindicarem a necessidade de defender a soberania nacional perante as ações tomadas por Donald Trump. Ou ainda, a ampla aceitação que passou a ter o boné com a xenófoba frase “O Brasil é dos brasileiros”. Podemos somar como exemplo a utilização das cores da bandeira nacional nos chamados de manifestação, além da reivindicação da própria bandeira como símbolo válido das manifestações de esquerda; como se as cores da família Bragança, acrescida do ideal positivista dos militares da República, pudessem de alguma maneira significar algo à esquerda.
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Mas e então, o que fazer? Só há uma — somente uma — providência para o momento: parar de enaltecer o poder estatal desenfreado e a soberania nacional e tentar redescobrir os meios de lutar contra o capitalismo, de maneira independente, por fora do Estado, onde quer que isso seja possível. Mas para isso a esquerda vai precisar, pelo visto, resetar a si mesma e começar tudo de novo.
Já que o momento é histórico, seria bom começar a fazer história novamente.






A Unidade é um mito.
Desde 2014 o setor dominante no Brasil se encontra inapelavelmente rachado. Uma fissura desestabilizadora do processo político, da qual emergiram o Golpe de 2016, o governo Bolsonaro e a ascensão do neo-fascismo.
Para afastar Dilma e esconjurar Lula, a burguesia brasileira optou por ocupar o Palácio do Planalto com os Porões da Ditadura.
Realocar os Porões de volta ao subsolo se mostra uma operação muito mais difícil e demorada do que foi anteriormente defenestrar Collor.
Não há, nunca houve e jamais haverá nenhuma Direita unida. Pela própria lógica intrínseca ao Capitalismo são inevitáveis a formação de oligopólios, os quais, por sua vez, travam uma permanente e feroz disputa em busca de supremacia econômica e hegemonia política.
Os custos de mais uma “pacificação nacional” já foram precificados:
• Bolsonaro em prisão domiciliar (como Collor).
• Redução de pena para a massa de manobra bolsominion e manutenção da dosimetria para o alto comando bolsonarista.
• Num futuro nem tão longínquo, uma anistia com base em comutação de penas.
Ainda assim, no teatro de vampiros do Congresso prosseguirá uma vã encenação grotesca, cujo único resultado será, mais uma vez, revelar a incapacidade das classes dominantes em formular algum projeto para si mesmas, que não seja de alcance imediatista e baseado no extrativismo.
Apesar da insistência do agronegócio exportador, do quatrocentão baronato da mídia paulistana e das fintech da Faria Lima & Associados, em busca de um candidato para chamar de seu, o mega capital já elegeu o próximo Presidente da República: ele mesmo, Lulinha Paz e Amor.
Tarcísio, Caiado, Zema serão apenas o conveniente espantalho para insuflar o temor da “volta do Fascismo” e da Direita selvagem, fazendo com que as parcelas menos conformadas do eleitorado de novo escolham dar um “respiro” com Lula.
E à Esquerda?
Enquanto prevalecer o Mito do Lulismo não haverá Esquerda no Brasil, tão somente um desolador cenário marcado por um torpor cataléptico. Honra seja feita às exceções de grupos diminutos mas de imensa grandeza.
Um recomeço?
Sim, é sempre possível. Mas quem está disposto a tal? A vida só é bela para os ressuscitados.
A função pedagógica das condenações é de que golpe no Brasil não se faz contra uma fração da direita, das instituições ou da burguesia. É apenas pelo STF ter sido um alvo do golpe, um dos alvos até mesmo preferenciais, e por ter setores da burguesia na mira (como a Globo), que houve as condenações. Tivessem incorporado STF e Globo no golpe, possivelmente ele teria se realizado (os EUA de Biden continuariam contra?) e certamente não haveria condenações judiciais.
O fato é que não foi por pressão da esquerda que houve a condenação, nem por apreço à “democracia”, mas por instinto de preservação do STF (da maioria de seus ministros).
A jurisprudência no caso das condenações dos populares que participaram do 8 de janeiro pode ser usada sem dúvida para encarcerar gente de movimentos de esquerda no futuro.
A pauta “Sem Anistia” não é nossa! Trata-se de uma disputa interna à classe dominante, na qual sua fração majoritária se impõe à extrema-direita e ao neo-fascismo.
Jamais se cogitou qualquer um “Sem Anistia” para Michel Temer. Até mesmo porque ele, golpista não julgado, foi quem indicou Alexandre de Moraes, o agora Paladino da Democracia e anteriormente carrasco dos movimentos sociais em SP.
Quem dita a pauta, controla o rumo político. A única palavra de ordem a nos atender seria “Punição para TODOS os golpistas!”. Incluindo os financiadores do 08-JAN-2023 e os envolvidos no Golpeachment de 2016.
Além do mais, a profusão de bandeiras do Brasil e de símbolos verde-amarelos deveria nos alarmar. O nacionalismo é uma das ante-salas do fascismo.
Por outro lado, quando a população sai às ruas, mesmo na condição de massa de manobra, acende-se um sinal de alerta para a classe dominante.
Pois então basta um fagulha para se iniciar um incêndio fora de controle. Principalmente quando há forte presença da juventude nas manifestações. Nepal e Filipinas são disto os exemplos mais recentes.
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Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
A recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
A recomeçar como as colheitas
Como a Lua e a covardia
A recomeçar como a paixão e o fogo
E o fogo, e o fogo
Recomeçou na Itália.
Contágio?