Por Arthur Moura
Nota prévia: Diante dos ataques neonazistas e reacionários que Jones Manoel vem sofrendo, é preciso afirmar, antes de tudo, solidariedade incondicional. Contra o fascismo não há nuances nem hesitação: trata-se do inimigo absoluto da classe trabalhadora e de qualquer horizonte emancipatório. No entanto, essa solidariedade não implica calar a crítica. Pelo contrário: se a extrema-direita investe na violência aberta, o reformismo se encarrega da violência surda da conciliação, desarmando a classe diante da barbárie. É precisamente porque combatemos o fascismo que devemos também desnudar as formas domesticadas de radicalidade que, sob a máscara da revolução, reforçam a ordem. Nossa crítica a Jones Manoel não se confunde com o ódio da direita; nasce da necessidade de preservar o marxismo como arma, e não como espetáculo pedagógico ou mercadoria de engajamento.
Resumo: Este texto é uma crítica à figura de Jones Manoel como expressão da vulgarização do marxismo e da captura da radicalidade pelo espetáculo. Longe de representar uma saída revolucionária, sua trajetória encena a revolução como performance segura para o algoritmo, convertendo a crítica em mercadoria, a militância em plateia e a revolta em combustível eleitoral. O que se anuncia como radicalidade é apenas a reedição farsesca do reformismo de sempre, agora embalado em estética digital e pedagogia domesticada. Contra esse teatro, o texto reivindica o resgate da crítica como arma e da auto-organização proletária como única via de emancipação real.
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Muitos têm argumentado que não seria o momento de criticar Jones Manoel, que seria melhor “esperar” para ver até onde ele vai, evitando “jogar pedra” em alguém que surge no campo da esquerda e começa a acumular relevância. Esse raciocínio é exatamente o que tem levado a esquerda a se repetir em farsas históricas: poupar a crítica em nome de uma unidade ilusória e, quando finalmente se percebe a natureza reformista do projeto, já é tarde demais, a neutralização já se consumou. A crítica marxista não pode ser adiada sem se tornar cúmplice daquilo que denuncia. Presto, portanto, solidariedade incondicional a Jones Manoel contra os ataques neonazistas e reacionários que ele vem sofrendo, mas é precisamente por lutar contra a barbárie fascista que a crítica ao reformismo precisa ser feita agora; sem medo, sem sectarismo, sem ilusões.
Jones Manoel tornou-se uma figura central no que se convencionou chamar de “influenciador de esquerda” ou “webcomunista”. A sua ascensão é inseparável do próprio movimento da social-democracia digitalizada, que encontrou no YouTube, no Twitter e em outras plataformas uma forma de reciclar a velha política de conciliação de classes em linguagem jovem, didática e aparentemente radical. O problema é que, por trás da superfície de combatividade, está sempre o mesmo horizonte: o Estado, o progressismo, a mediação institucional e a conciliação como condição para a prática política; não almejando, portanto, níveis primários de radicalidade necessária para a organização da luta popular. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), partido ao qual esteve vinculado por anos, funciona como rótulo histórico que dá verniz de tradição revolucionária a um discurso que, na prática, se dissolve em pedagogia reformista onde se estabelece todo tipo de acordo. A história do reformismo no Brasil é ampla. Nos centraremos aqui no que diz respeito ao Jones Manoel.
O percurso de Jones Manoel na União da Juventude Comunista (UJC), organização juvenil do PCB, foi marcado tanto pelo engajamento no movimento estudantil quanto pela participação em processos de formação de quadros, entre 2013 e os anos seguintes. Nesse espaço, Jones consolidou sua militância teórica e política, aproximando-se do marxismo-leninismo e defendendo a centralidade da organização popular como caminho para a construção de consciência de classe. Assim, sua trajetória na UJC revela, ao mesmo tempo, o aprendizado militante e as contradições internas de uma estrutura marcada pela reprodução burocrática e pelo desafio permanente de se enraizar nas lutas reais da classe trabalhadora.
Essa organização, longe de ser um espaço de formação radical, funciona como braço auxiliar da direção partidária e tem como função primordial engessar as lutas estudantis, canalizando-as para acordos com reitorias e sindicatos de professores como o ANDES, a ADUFF na UFF e a ASDUERJ na UERJ. Trata-se de uma prática sistemática de burocratização, pela qual qualquer tentativa de radicalidade é contida em nome da manutenção de relações institucionais, da negociação permanente e da política de “respeitabilidade”.
Maurício Tragtenberg foi um dos mais importantes intérpretes críticos da burocracia no Brasil, articulando Marx, Weber e a tradição marxista heterodoxa. Em Burocracia e Ideologia, ele define a burocracia não como simples “máquina administrativa” ou mero conjunto de normas técnicas, mas como uma forma histórica de dominação que expressa interesses sociais específicos. Inspirado em Weber, Tragtenberg reconhece que a burocracia moderna é marcada pela racionalidade formal, pela hierarquia impessoal e pela especialização de funções. Contudo, diferentemente do sociólogo alemão, para ele a burocracia não é apenas “racionalidade eficiente”, mas um mecanismo de controle social que assegura a reprodução da ordem capitalista.
Tragtenberg mostra que a burocracia não é neutra: ela é instrumento de classe. No Estado, manifesta-se como forma de separação entre governantes e governados, entre dirigentes e massa, naturalizando a desigualdade e convertendo o aparelho administrativo em instância acima da sociedade. No interior dos partidos e sindicatos, assume a feição de casta dirigente, afastada da base e preocupada em preservar seus privilégios, carreiras e status. Ele fala em “autonomização da burocracia”: um processo pelo qual o aparato passa a agir em função própria, reproduzindo-se mesmo contra os interesses daqueles que deveria representar. Sua crítica vai além da denúncia moral: a burocracia é, segundo Tragtenberg, um modo de gestão da luta de classes. Ela administra os conflitos sociais, amortecendo-os, canalizando-os para negociações controladas e impedindo sua radicalização. Daí a ligação entre burocracia e ideologia: o discurso da competência, da técnica e da legalidade serve para legitimar a dominação, escondendo o caráter político e de classe das decisões. Essa ideologia burocrática aparece tanto no Estado quanto em sindicatos e partidos, reforçando a ideia de que “especialistas” ou “dirigentes” devem conduzir as massas, enquanto estas permanecem passivas.
Portanto, para Tragtenberg, burocracia significa dominação organizada pela hierarquia e pelo controle técnico-ideológico, que transforma os trabalhadores em objeto de administração e neutraliza sua autoatividade. Não se trata de acidente, mas de forma estrutural de poder no capitalismo e em suas organizações “alternativas”, incluindo partidos comunistas e sindicatos oficiais. Contra ela, o autor reivindica a autogestão, a democracia direta e a organização de base como alternativas à alienação burocrática.
A UJC se apresenta como juventude combativa, mas age como correia de transmissão da lógica reformista: organiza o movimento para que este não ultrapasse os limites seguros das alianças burocráticas. É por isso que são comumente chamados de pelegos, pois cumprem o mesmo papel que as burocracias sindicais tradicionais: mediar a luta de base, mas sempre no sentido de desarmar o conflito e canalizar as energias para a institucionalidade. Essa função é concreta, histórica. Eu mesmo pude observar esse processo de perto na Universidade Federal Fluminense (UFF), em diferentes períodos de greve estudantil. Sempre que a luta autônoma dos estudantes se radicalizava, surgiam os dirigentes da UJC para deslegitimar as iniciativas, acusar de irresponsabilidade, criminalizar a ação direta e defender acordos com reitorias e professores. Em todos os momentos de confronto real com as estruturas de poder universitário, a UJC se colocou terminantemente contra, atuando ao lado da burocracia docente e contra as frentes independentes e anarquistas. Estamos falando de uma linha política que transforma a juventude comunista em administradora da rebeldia estudantil, podando qualquer desvio que pudesse escapar ao controle do partido. Registrei esse processo em meu filme Utopia e Cidade (2012), justamente porque ele expressava de forma concreta a contradição entre uma juventude que se reivindica revolucionária e uma prática política que atua contra a autoatividade dos estudantes, contra sua organização independente e contra a possibilidade de ruptura.
A crítica que formulei ainda no calor das lutas do movimento estudantil ajuda a compreender a gênese da prática política de Jones Manoel. Em 2015 escrevi que “não se constrói mobilizações populares sem um balanço político do caráter das mobilizações passadas”. Denunciava então a forma como a greve de 2012 nas universidades do Rio de Janeiro (e em outras universidades públicas) foi esvaziada por comandos burocratizados e por uma elite docente que, aliada às reitorias, criminalizou qualquer tentativa de autonomia estudantil. Mostrava-se ali que a pauta dos estudantes, quando radicalizava — moradia sob autogestão, equiparação das bolsas, questionamento da própria produção do conhecimento — era sistematicamente abafada em nome de negociações de cúpula, de mesas de reitoria, de acordos sindicais. A greve, ao invés de momento de ruptura, tornava-se teatro controlado, onde cada setor cumpria seu papel: professores como elite dirigente, comandos estudantis como pelegos de plantão, reitorias como polícia administrativa. Foi nesse terreno que Jones se formou.
A mesma função que a UJC exercia nas greves — a de transformar a radicalidade em espetáculo domesticado, a revolta em assembleia controlada, a greve em rito de integração — é a que Jones exerce hoje no YouTube. Ontem, a burocracia estudantil organizava a rebeldia para não deixá-la escapar; hoje, a pedagogia digital organiza a crítica para não deixá-la romper. Trata-se da mesma função histórica: canalizar a energia da juventude para formas seguras, compatíveis com a ordem. No fundo, é a mesma lógica do espetáculo: oferecer a sensação de participação, mas retirar da base a possibilidade de agir como sujeito autônomo. O Jones que emerge como youtuber e webcomunista é o mesmo militante formado na escola da burocracia estudantil. O método é idêntico: a crítica jamais transborda, jamais se liga a práticas de auto-organização popular. Ao contrário, permanece sempre ajustada à institucionalidade, seja na forma de comando de greve, seja na forma de canal de YouTube. A função histórica é clara: neutralizar a possibilidade de ruptura, reproduzir a ordem sob a máscara da radicalidade.
Debord, em seu clássico texto Da Miséria do Meio Estudantil, já havia apontado esse processo como um dos elementos centrais da dominação no campo universitário. Para ele, as frações burocráticas que se apresentam como vanguarda estudantil não passam de guardiãs da ordem, convertendo o movimento em apêndice das negociações institucionais. O papel dessas burocracias é precisamente transformar a radicalidade em espetáculo controlado: promovem assembleias formais, discursos inflamados e um teatro de contestação, mas tudo cuidadosamente limitado para que não transborde. Debord denunciava a miséria não apenas material, mas também política do meio estudantil: sua captura por organizações que falam em nome da revolução enquanto domesticam a revolta. Ao invés de abrir caminhos para a autonomia, reforçam a heteronomia, substituindo a ação direta pela representação, a criatividade da base pelo aparato burocrático. Essa análise é fundamental para compreender a função histórica da UJC: longe de ser o motor da radicalidade, ela é o freio, o dispositivo de normalização, a instância que garante que o estudante rebelde não se converta em sujeito revolucionário, mas permaneça integrado à lógica do partido e às negociações de cúpula. Os estudantes revolucionários têm duas barreiras: a burocracia estudantil e universitária.
A publicação deste artigo foi dividida em 7 partes, com publicação semanal:
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As imagens que ilustram este artigo são do filme “A sociedade do espetáculo” (1973), de Guy Debord






Vale ainda lembrar que Jonas é defensor da tese da Ucrânia Nazista. Tanto ele quanto Humberto Matos e outros tantos, se fingem de burro quando o assunto são as mortes na Ucrânia. Acabaram com a esquerda revolucionária do país, mataram a vanguarda construtivista, e entregaram de mão beijada para a direita.