Por Arthur Moura
Outro momento fundamental da carreira de Jones Manoel que o permite entrar no circuito premium da indústria cultural foi ser autorizado por Caetano Veloso. No campo cultural descrito por Bourdieu, a consagração funciona como porteira: quem já detém capital simbólico decide quem pode circular como “crítico aceitável”. Caetano fez exatamente isso — citou Jones na Globo, disse que ele “mudou sua cabeça”, e a máquina girou: entrevistas, capas, convite permanente ao circuito da respeitabilidade. O próprio Jones relatou que, nas duas semanas após a citação na TV, recebeu convites, isto é, a crítica instantaneamente conversível em capital. É a dissidência integrada, no sentido de Debord: o sistema não combate a crítica — ele a incorpora como decoração da sua própria vitrine. Quem é o curador? Um liberal de “extrema-esquerda”, nas próprias palavras de Caetano. O rótulo é perfeito para a função que ele cumpre desde sempre: dar aparência de ousadia a posições estritamente liberais. Não por acaso, em 2006 assinou o manifesto contra as cotas raciais, exemplo típico do universalismo liberal que nega a reparação histórica sob o pretexto da ‘harmonia republicana’. É a velha operação: negar a materialidade do racismo institucional para conservar a pureza abstrata da lei. Anos depois, Caetano suaviza o tom (“menos liberaloide”), flerta com leituras antiliberais, mas preserva o centro liberal: defende liberdade de expressão como fim, aposta na via institucional e, quando muito, “revisa” ideias sem romper com o teto burguês. No vocabulário de Adorno e Horkheimer, a indústria cultural neutraliza o negativo incorporando-o como estilo; no de Bourdieu, converte prestígio em moeda política; no de Debord, transforma antagonismo em espetáculo.
A benção de Caetano, portanto, não prova a radicalidade de Jones; prova a capacidade do aparato liberal de selecionar e domesticar vozes com léxico marxista que não atravessam a forma-mercado. O selo Caetano é a garantia de que a crítica virá higienizada: falas duras, embalagens palatáveis, nenhum risco sistêmico. Esse é o ponto que precisa entrar no texto: a escalada de Jones não decorre de ruptura com a ordem, mas da sua perfeita compatibilidade com o circuito de legitimação. O resultado é pedagógico: sob a curadoria do liberalismo artístico, a rebeldia vira produto e a teoria vira carreira; a luta de classes vira conteúdo; e a esquerda, satisfeita com seus medalhões, aplaude o crítico domesticado que confirma o jogo. É trovão cenográfico: muito som, zero abalo estrutural. O elo entre esses dois momentos é justamente a lógica de legitimação que atravessa tanto a indústria cultural quanto o campo político: se Caetano funciona como curador da rebeldia domesticada no plano artístico, o modelo comunicacional da esquerda cumpre papel análogo no plano organizacional. Em ambos os casos, a radicalidade aparente é filtrada, higienizada e devolvida ao público como espetáculo seguro, seja em forma de música, seja em forma de conteúdo político. A compatibilidade entre Jones e esse circuito revela que não se trata de ruptura, mas de continuidade: a crítica se transforma em performance dentro de um aparato que tem por horizonte não a emancipação, mas a manutenção das regras do jogo.
A crítica ao modelo comunicacional é nada mais que a crítica ao modelo organizacional. Tal como vem sendo regida pelo conjunto das esquerdas, a comunicação se reduz à propaganda institucional com o claro objetivo de ganhos eleitorais. A insistência dos setores ligados à classe trabalhadora em disputar os aparatos institucionais, mesmo depois de tantas experiências históricas que já demonstraram o desgaste dessa via, tem reforçado formas de organização cada vez mais distantes de uma verdadeira autonomia diante do desafio central: superar a exploração do trabalho. A teoria da comunicação popular foi abandonada para privilegiar a relação instrumentalizada de uma comunicação que diz reverberar o interesse popular sem a sua participação na construção dessas redes. A ideia de popular se confunde com audiência com uma instrução rudimentar, passiva e sedenta por orientação, haja vista o seu vazio existencial e organizacional. Esse hiato vem sendo ocupado por uma burocracia comunicacional. Principalmente jovens, muitos de classe média, carentes não só de identidade, mas de reflexões e um pensamento histórico sistemático demandam de figuras como Jones uma orientação capaz de satisfazer seus hiatos, reproduzindo uma dinâmica de torcidas nas redes sociais. Quando presentes em realidade concreta, esses setores são barulhentos, mas passivos diante do desafio concreto das contradições que os aguardam.
O modelo comunicacional no campo das esquerdas reflete, portanto, o modelo organizacional pautado em figuras midiáticas que também exercem funções burocráticas em partidos, sindicatos ou repartições do Estado, seja em Câmaras Municipais ou no interior do núcleo duro do Parlamento burguês. Esse movimento é histórico e não casual. Ele não foi inaugurado por Jones Manoel, obviamente. Esse modelo pautado no espetáculo, na representatividade e na mutilação da radicalidade das lutas populares ganha força com o desenvolvimento da comunicação via internet, inflada nas redes, vazia nas ruas. Esse modelo está em disputa entre diferentes facções que perceberam a urgência da comunicação, reduzindo-a ao personalismo via youtube; característica mais comum desse novo-velho modelo persuasivo. Ele segue as mesmas tendências da luta política intra-parlamentar, mas corrige suas deficiências frente ao novo dinamismo das redes sociais. O personalismo é requentado, mais próximo ao público, ainda mais convincente e sedutor. Esse é o alimento da força eleitoral de partidos e quadros políticos desesperados por um lugar seguro aos aparatos de poder, ao passo que comprometem sem perspectiva de mudança a ausente organização popular, que carece ainda mais de autonomia e poder próprio. Ceifar a autonomia popular não é novidade para estruturas burocráticas. O uso das novas tecnologias e a adaptação à lógica da máquina comunicacional transformaram figuras antes marginais em protagonistas da cena política, mas sempre com a promessa ilusória de mudanças que esses próprios espaços, limitados e controlados, jamais permitirão realizar.
Essa crítica estrutural ao modelo comunicacional e ao personalismo digital prepara o terreno para compreender o alcance e o sentido da Carta de Ivan Pinheiro: não se trata de um desentendimento episódico, mas da manifestação concreta de como a forma-espetáculo, antes restrita ao parlamento e à indústria cultural, penetra também no interior das organizações comunistas, corroendo sua organicidade e colocando em xeque a tradição leninista com as novas lógicas de legitimação midiática.
Ivan Martins Pinheiro, advogado e histórico dirigente comunista, foi Secretário-Geral do PCB entre 2005 e 2016, figura central na reconstrução do partido como referência marxista-leninista em ruptura com os governos petistas. Após o racha que transformou a seção de Roraima em partido próprio, o PCBRR, em 2024, Ivan divulgou na revista A Comuna, em março de 2025, uma “Carta de Afastamento Orgânico do PCBRR”, na qual anuncia sua saída e denuncia problemas internos. Em sua avaliação, a direção nacional incorreu em omissão e oportunismo ao permitir que Jones Manoel acumulasse protagonismo midiático descolado da disciplina partidária.
Quando Ivan Pinheiro afirma que identifica no PCBR uma tendência à formação de uma “frente de esquerda radical”, em detrimento da frente anticapitalista e anti-imperialista definida em seu congresso fundador, ele está apontando diretamente para a orientação impulsionada por Jones Manoel. A noção de “esquerda radical” serve como rótulo estratégico para um agrupamento de partidos como UP, PSTU, PCO, PSOL e o próprio PCBRR, cuja unidade se dá muito mais pela lógica da disputa eleitoral do que por qualquer projeto de ruptura com a ordem burguesa. É exatamente isso que Ivan denuncia: a substituição de uma perspectiva internacionalista e revolucionária por um arranjo de cúpula, centrado em alianças frágeis e reformistas, que acabam servindo para canalizar a indignação social para dentro do jogo institucional. Essa crítica não é meramente nominal, mas toca no cerne do que significa a política proposta por Jones: ao invés de fortalecer a frente anticapitalista e anti-imperialista — que exigiria, por definição, a recusa das etapas nacional-democráticas, o combate frontal ao progressismo e a construção de práticas de auto-organização proletária —, aposta-se numa “radicalidade” de vitrine, compatível com os calendários eleitorais e as demandas de visibilidade digital. É por isso que Ivan relaciona a adoção da sigla PCBRR com uma tentativa de distanciamento das organizações revolucionárias que buscavam unidade de ação fora da lógica etapista: para ele, o partido teria cedido a um impulso pequeno-burguês, mais preocupado em apresentar-se como legenda “nova” e “radical” do que em articular, na prática, uma frente revolucionária consequente. Nesse ponto, a carta de Ivan ilumina a crítica mais ampla: a trajetória de Jones não apenas desorganiza internamente a disciplina partidária, mas orienta o partido a seguir uma via reformista travestida de radicalidade, convertendo o que poderia ser uma frente de luta anticapitalista em mera coalizão eleitoral, funcional ao progressismo e incapaz de enfrentar a ordem do capital.
Para Ivan, o canal Farol Brasil, lançado por Jones, exemplifica essa assimetria: um projeto pessoal que, já em sua estreia, entrevistou Elias Jabbour, quadro do PCdoB, em contradição com a linha internacional do PCBRR e gerando constrangimento coletivo. Ainda segundo Ivan, houve um erro estratégico ao transformar o PCB-RR em partido nacional, decisão que reduziu as possibilidades de unidade revolucionária e agravou o isolamento sectário. O Comitê Central, em resposta, reconheceu falhas pontuais, como a demora em responder formalmente às correspondências de Ivan, mas defendeu a legitimidade das resoluções congressuais. Para a direção, “maior organicidade” significava, na prática, reforçar o centralismo democrático entendido como disciplina hierárquica e a centralidade da disputa eleitoral. Essa definição, contudo, não soluciona as contradições denunciadas por Ivan: ao invés de fortalecer a vida orgânica do partido junto às bases, cristaliza a subordinação da militância ao aparato e ao calendário institucional. Jones Manoel, por sua vez, reagiu publicamente em vídeo, rebatendo acusações específicas: afirmou ser falso que não divulgue o jornal O Futuro, disse que seu site apenas hospeda suas próprias obras e declarou que o Comitê Central havia realizado reunião extraordinária sobre o caso e emitiria posição oficial. Acrescentou ainda manter respeito e admiração por Ivan, mas admitiu não saber se essa relação pessoal permanecia após a carta — gesto mais retórico do que político, que pouco enfrenta o núcleo das críticas. O episódio, assim, ultrapassa a dimensão individual: explicita as tensões entre a tradição da disciplina partidária e as novas formas de militância mediadas pelo capital simbólico digital. Se, de um lado, Ivan reafirma a primazia da identidade revolucionária vinculada ao partido, de outro, Jones encarna a contradição de um militante que projeta sua figura acima da organização. A crise, nesse sentido, não indica apenas um impasse conjuntural: revela o limite estrutural da forma-partido, incapaz de conter o personalismo midiático sem reproduzir burocratismo ou autoritarismo, e, portanto, incapaz de oferecer uma via real de emancipação.
A expulsão de Jones Manoel do PCB e sua posterior tentativa de reconstrução partidária em torno do PCBRR revelam, em última instância, o esgotamento dessa forma de organização burocrática, que há décadas se apresenta como herdeira de uma tradição comunista mas que, na prática, desempenha o papel de contenção da luta. Esse esgotamento deriva da própria natureza estrutural da forma-partido burocrática. Desde Marx, já estava claro que o Estado e seus aparelhos de representação funcionam como instâncias de separação: colocam a política fora da vida social, transformando a classe em objeto de administração e não em sujeito de sua emancipação. A burocracia partidária repete, dentro do movimento revolucionário, o que a burocracia estatal faz na sociedade capitalista: apresenta-se como portadora do interesse coletivo enquanto, de fato, cristaliza privilégios, carreiras e uma lógica de conservação do aparato. É por isso que, como já advertiam conselhistas como Otto Rühle e Anton Pannekoek, “o partido acima da classe” degenera inevitavelmente em substitutismo e contenção. Sua função histórica é canalizar a energia da base para a institucionalidade, seja na forma parlamentar, sindical ou eleitoral, impedindo que a radicalidade da luta se converta em ruptura. Assim, a experiência com o PCB e com o PCBRR confirma teoricamente a tese de que tais aparelhos não podem ser reformados nem redimidos: são formas organizativas integradas à reprodução da ordem, cuja razão de ser é precisamente bloquear a emancipação autônoma do proletariado.
A publicação deste artigo foi dividida em 7 partes, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6
Parte 7
As obras que ilustram o artigo são de Sergei Senkin.






Espero que até a última parte o autor entre no mérito da crítica às posições programáticas do Jones Manoel, que deveria, na minha humilde opinião, ser o essencial do texto e, portanto, por uma questão lógica, estar nas partes iniciais da série…
Giancarlo, acho que um dos problemas de criticar um influencer personalista (perdão pela redundância) que pretende se filiar a um partido nos moldes do que é (ou quer convencer que é) o PCBR é justamente o descompasso entre posições programáticas e pessoais. Como Ivan Pinheiro e no vídeo do Arthur foi apontado, por exemplo, o PCBR em seu programa pretende romper com o campismo geopolítico do PCB, mas a prática de Jones, justamente pela sua forma comunicacional de influencer (e portanto sua prática política), o faz no mínimo uma pessoa acrítica ao campismo – basta ver que ele arreganhou o seu espaço digital a ninguém menos que Ellias Jabbour, que divide sem maiores pudores espaço com neofascistas como Dugin e teóricos da conspiração como Escobar. Jones poderia ser cobrado quanto a isso, e foi, mas simplesmente se negou a discutir a adequação de sua prática ao programa partidário ao qual se vincula.
E qual será a ilusão de radicalidade do passapalavra?