Por Arthur Moura
Uma das posições mais recorrentes no campo da esquerda é aquela que defende a adaptação da crítica revolucionária ao nível de consciência imediata das massas. O argumento central é simples: como as massas se encontram em atraso político, qualquer esforço que vá além de sua consciência atual corre o risco de isolamento; por isso, seria necessário vulgarizar a teoria, simplificar a crítica e atuar nos limites do possível. Essa posição, no entanto, expressa um desvio fundamental do ponto de vista marxista: transforma a limitação objetiva do presente em justificativa para a renúncia da perspectiva revolucionária. Para o marxismo, a consciência das massas não é uma essência imutável, mas uma determinação histórica e social. O atraso político não é um dado natural, mas o resultado da dominação ideológica da burguesia, do peso das tradições conservadoras, da fragmentação do proletariado e do papel das instituições reformistas em amortecer os conflitos de classe. Adaptar-se a esse atraso significa, em última instância, reproduzi-lo. O papel da teoria revolucionária nunca foi simplesmente espelhar a consciência existente, mas desvelar a realidade objetiva das relações sociais e apontar para sua superação. Marx não escreveu O Capital para confirmar o que o operário já sabia, mas para revelar a essência oculta da exploração capitalista, mostrando que o salário não é a remuneração justa do trabalho, mas a forma mascarada da extração de mais-valia.
A vulgarização do marxismo surge justamente quando, em nome da comunicação com as massas, a teoria é reduzida a slogans, frases de efeito e conteúdos adaptados ao consumo imediato. Não se trata de tornar a teoria acessível — tarefa legítima —, mas de amputar sua densidade ontológica para transformá-la em produto pedagógico e, cada vez mais, em mercadoria comunicacional. O marxismo, então, deixa de ser instrumento de organização da luta de classes e se converte em linguagem de identidade, em espetáculo de conhecimento. Essa adaptação, apresentada como aproximação das massas, cumpre a função inversa: preserva o atraso, bloqueia o salto da consciência e mantém o horizonte político dentro da ordem estabelecida. O problema do isolamento é, nesse sentido, mal colocado. A história mostra que todo movimento revolucionário verdadeiro nasce em isolamento relativo. Marx e Engels, no século XIX, eram minoritários frente às correntes dominantes do socialismo utópico e do reformismo. Lenin, antes de 1917, era isolado não só frente à burguesia, mas também dentro do próprio movimento operário russo, dividido entre mencheviques e populistas. Rosa Luxemburgo enfrentou o isolamento dentro da social-democracia alemã quando denunciou a traição parlamentar do SPD. Em todos esses casos, o isolamento não foi sinal de erro, mas de coerência diante da hegemonia burguesa e reformista. O verdadeiro perigo não está em ser minoria, mas em renunciar à crítica para evitar o isolamento. Isso conduz ao reformismo, que se dissolve na ordem e abdica da revolução em nome de uma integração supostamente pragmática.

Do ponto de vista marxista, portanto, a posição que defende a adaptação ao atraso das massas não é uma estratégia de inserção, mas uma forma de legitimação da ordem. Ela naturaliza a debilidade da esquerda revolucionária e a transforma em argumento contra a radicalidade. Em vez de trabalhar pela elevação da consciência, reforça a lógica segundo a qual é preciso falar “apenas o que as massas querem ouvir”, mesmo que isso signifique renunciar à crítica do Estado, da mercadoria e da democracia burguesa. Essa é a essência do progressismo: oferecer às massas um simulacro de radicalidade que não ultrapassa os limites da sociedade capitalista. O marxismo exige outra postura. Reconhece as limitações do presente, mas não se adapta a elas. Mantém a crítica radical mesmo em isolamento, porque sabe que a função da teoria não é reproduzir a consciência existente, mas abrir caminho para sua superação. Como afirmou Rosa Luxemburgo, a alternativa segue posta: reforma ou revolução, socialismo ou barbárie. A vulgarização da teoria, ainda que vestida de pragmatismo, nada mais é do que a escolha pelo caminho da reforma — um caminho que, em última instância, leva à derrota histórica do proletariado. Essa discussão sobre reforma e revolução, sobre manter a crítica radical mesmo em meio ao isolamento, ajuda a iluminar também o uso histórico da própria sigla PCBR. Se hoje ela reaparece como desdobramento da crise recente do PCB, é preciso lembrar que já em 1968 o nome Partido Comunista Brasileiro Revolucionário carregava o peso de uma dissidência contra o etapismo e o pacifismo do velho Partidão.
O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), surgido em 1968, inscreve-se em um momento histórico de crise da esquerda brasileira após o golpe de 1964. Sua fundação por Jacob Gorender, Mário Alves e Apolônio de Carvalho expressa uma cisão real com o PCB no plano programático, já que suas teses etapistas e a orientação pacifista se mostraram incapazes de enfrentar a ditadura militar. O PCBR nasce, portanto, sob o signo de uma radicalidade retórica: recusava a via democrático-burguesa e a estratégia de aliança com a burguesia nacional, defendendo a imediaticidade da revolução socialista e a centralidade da luta armada. No entanto, à luz do materialismo histórico dialético, essa ruptura mostrou-se parcial: apesar do discurso intransigente, o PCBR permaneceu preso às formas e ao imaginário burocrático do movimento comunista do século XX, reproduzindo a lógica do partido de vanguarda centralizado e hierárquico.

O contraste entre o PCBR histórico e o PCBR de Jones Manoel é revelador: se o primeiro, fundado em 1968 por Mário Alves, Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender, surgiu como cisão contra o etapismo e o pacifismo do PCB, reivindicando a imediaticidade da revolução socialista e a centralidade da luta armada, o segundo nasce como seu avesso, em plena adaptação à institucionalidade burguesa. Enquanto o PCBR original buscava negar as alianças com a burguesia nacional e recusava a via eleitoral, ainda que preso ao imaginário burocrático do partido de vanguarda, o projeto encabeçado por Jones assume a burocracia como forma e o reformismo como conteúdo, apostando numa frente eleitoral de “esquerda radical” que reedita, em chave digital, as velhas ilusões da conciliação. A ironia histórica é que, se o PCBR dos anos 1960 pecava pelo voluntarismo e pelo excesso de radicalidade estratégica, o PCBR de Jones se caracteriza pela ausência completa de horizonte revolucionário, limitando-se a administrar sua imagem midiática e a negociar alianças dentro da ordem. Trata-se, portanto, não de continuidade, mas de negação farsesca: a radicalidade histórica é substituída por um personalismo domesticado, que faz da ruptura apenas uma retórica vendável.
O marxismo libertário de Otto Rühle e Anton Pannekoek fornece um ponto de partida decisivo para essa análise. Ambos denunciavam a burocratização do marxismo a partir do stalinismo, mas já em Lenin identificavam o germe de uma concepção autoritária da organização, que reduz a classe trabalhadora a massa de manobra de um partido dirigente. O PCBR, ao mesmo tempo em que criticava o etapismo e a conciliação do PCB, mantinha-se dentro do mesmo paradigma de vanguarda dirigente e centralização partidária, transferindo a mediação da emancipação para uma estrutura organizativa fechada, clandestina, hierárquica, incapaz de se constituir como auto-organização do proletariado. Nesse sentido, embora se apresentasse como alternativa revolucionária, não rompeu com o núcleo fundamental da ideologia da representação, que Nildo Viana aponta como uma das formas centrais de alienação política. A defesa da luta armada, embora historicamente compreensível diante da violência da ditadura, assume no PCBR um caráter militarista que carecia de lastro orgânico nas lutas concretas da classe. Maurício Tragtenberg, em sua crítica à burocracia sindical e partidária, mostrou como as organizações revolucionárias podem degenerar em aparelhos separados da classe, funcionando como substitutos ao invés de instrumentos da autoatividade popular. O voluntarismo armado do PCBR, ao não enraizar-se no cotidiano das lutas proletárias urbanas e camponesas, transformou a luta revolucionária em uma operação de comandos, mais próxima de um esquema militar do que de um processo de emancipação. Aqui se evidencia uma contradição central: ao pretender superar o reformismo, o PCBR acaba por cair no isolamento de pequenos grupos armados, afastando-se da perspectiva de massificação e auto-organização da classe trabalhadora.

O documento do PCBR, ao propor a revolução socialista imediata, rejeita explicitamente a noção de “burguesia nacional progressista” e denuncia o imperialismo como núcleo da dominação. Trata-se de um avanço em relação à linha do PCB. No entanto, José Chasin nos lembra que o marxismo, enquanto ontologia da vida social, não pode ser reduzido a um receituário estratégico ou a um plano de poder. O PCBR ainda concebia a revolução como conquista de Estado e como reorganização da sociedade a partir de cima, sem romper com a forma-Estado e sem projetar a auto-emancipação do proletariado como sujeito histórico. Dessa forma, mesmo ao se colocar contra a conciliação, permanecia atado à lógica da reprodução da dominação por meio de novas formas de centralização política.
A herança stalinista se manifesta também na concepção de partido. O PCBR defendia uma organização centralizada, com disciplina férrea e clandestinidade permanente. Essa forma, ainda que compreensível em face da repressão, reproduzia a ideia de que a consciência revolucionária deveria ser introduzida de fora da classe, cabendo a um núcleo dirigente a tarefa de conduzir as massas. Rühle já advertia que o partido político, nesse molde, deixa de ser instrumento e torna-se fim em si mesmo, desenvolvendo interesses próprios e afastando-se da autoatividade dos trabalhadores. O PCBR não rompeu com essa lógica; apenas a revestiu de um discurso mais radical e intransigente. À luz do materialismo histórico dialético, podemos compreender o PCBR como síntese de um movimento contraditório: representava, de um lado, a justa recusa ao reformismo do PCB e a tentativa de recuperar a perspectiva revolucionária; de outro, reincidia nos limites da tradição burocrática e militarista do comunismo do século XX. Como observa Nildo Viana, o marxismo revolucionário não se confunde com as formas degeneradas que se cristalizaram em partidos burocráticos e Estados socialistas, pois sua essência é a emancipação humana integral e a auto-organização do proletariado. O PCBR não foi capaz de realizar essa ruptura essencial.

O saldo histórico do PCBR é, portanto, ambivalente. Seu heroísmo diante da ditadura e sua recusa à conciliação merecem ser reconhecidos. Mas a análise crítica nos obriga a perceber que sua derrota não se deveu apenas à repressão brutal do regime militar, mas também às suas próprias insuficiências teóricas e práticas: ausência de enraizamento de classe, concepção de partido burocrática, fetichização da luta armada e subordinação da emancipação à conquista do Estado. Em última instância, o PCBR é testemunho de como a radicalidade aparente pode conviver com a permanência de estruturas ideológicas herdadas, reforçando a necessidade de um marxismo antiautoritário e libertário. Hoje, revisitar esse documento é essencial para compreender a genealogia do reformismo e do radicalismo no Brasil. Ao passo que o PCB persistiu como força conciliadora, e figuras como Jones Manoel atualizam essa função em chave midiática e institucional, o PCBR representa a memória de uma ruptura inacabada. Sua crítica ao etapismo foi justa, mas sua prática não logrou realizar a emancipação. Para que a história não se repita como farsa, é preciso retomar o fio do marxismo libertário, que recusa tanto a conciliação parlamentar quanto a substituição militarista e recoloca no centro a autoatividade da classe trabalhadora como sujeito da emancipação.
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As obras que ilustram este artigo são do pintor Nicolas Carone





