Por Isadora de Andrade Guerreiro

O título é uma releitura do título do texto de Paulo Arantes, “Depois de junho, a paz será total” [1], que se referia às Jornadas de Junho de 2013. Embora pareça ter sentido inverso ao original, entendo mais como um aprofundamento dos processos que ele descreve ali, pois a “paz” do título de Paulo, com certeza, tem aspas invisíveis — na medida em que ele constrói, no texto, a ideia de uma era da paz armada desde a década de 1990, após as chacinas da Candelária e do Vidigal em 93, sem que nos esqueçamos do Massacre do Carandiru em 92, que só foi superada no último dia 28 de outubro pela megaoperação policial no Rio de Janeiro, que deixou mais de 120 mortos. Outubro, aqui — longe da revolução — também é uma referência às eleições do ano que vem que, com certeza, já são desde este outubro um marco do estado de guerra que nos encontramos. Chacinas como estas não são eventos pontuais. Elas inauguram novas eras políticas pois condensam períodos históricos ao mesmo tempo em que reorganizam o que vem pela frente. Entendê-las, portanto, é fundamental — embora eu não vá fazer isso aqui, pois nem conseguiria, gostaria ao menos de deixar isso assinalado como tarefa coletiva necessária.

Paulo construía naquele texto do início de 2014 a noção de que nossa redemocratização estava baseada na eficiência de uma gestão do social — que, sem isso, seria explosivo — que articulava a miríade ascendente do terceiro setor e empresariado com a “pacificação contrainsurgente”, ou o que, citando Andrew Bacevich, ele chamou de “trabalho social armado” contra nosso “inimigo interno”: o tráfico de drogas territorializado nas favelas. O que, como vejo na prática, também já define o “favelado”, se não como inimigo declarado, ao menos como um socius matável, elemento necessário para a conflagração, inclusive, do território da guerra. Para Paulo, a definição de um inimigo interno seria um dispositivo necessário para produzir e manter essa gestão do social como paz armada, uma espécie de pacto de transição do Estado autoritário — que, portanto, se mantém durante o período democrático ali ao lado, ou nas franjas, altamente aquecido e atualizado nas mais modernas formas de guerra, a guerra urbana — com direito à campo de treinamento no Haiti.

Junho de 2013 seria, neste texto de Paulo, um ponto de virada pois demarcaria o momento de reação, pois até então a “contrainsurgência preventiva” se dava sem ser resposta a qualquer insurgência de fato. Em 2013, os manifestantes não fogem da polícia, eles a enfrentam — e, para Paulo, “o país não voltará a ser o mesmo”. Em outubro de 2025, olhando para os corpos enfileirados na Praça da Penha no Rio de Janeiro, podemos afirmar: o país de fato nunca mais foi o mesmo e não será. Pois não se trata de mais uma chacina dos mesmos corpos pretos de sempre, no mesmo território periférico de sempre, pela mesma polícia assassina de sempre, dentro da lógica de pacificação armada da nossa frágil democracia. Há algo de novo seja no número superlativo, no modo como ocorreu, ou ainda na reação da sociedade — cujos aplausos não se restringiram à Zona Sul, mas foram ainda mais intensos junto ao “público alvo”, como diria Paulo, os mesmos moradores de favelas que estão na mira do fuzil da polícia. Juntemos na mesma frase as duas reações: da insurgência à paz armada — que Paulo adjetiva como “profanatória” — ao abraço no próprio assassino, o que se passou?

O curto-circuito é grande, com ares de patologia psicossocial — e me parece que a narrativa heróica, claramente alucinada, da “retomada de território pelo Estado” envolve deslizamentos semânticos tão grandes quanto a psicose coletiva que não deixa ver que esse Estado não é nada daquilo que a rápida brisa de esperanças pós-redemocratização sonhou. O desespero de viver em território conflagrado é tamanho que vemos as apelações por salvação recaírem sobre figuras tão evanescentes quanto Deus e o Estado Democrático de Direito. A “terapia social”, forma de governo que teria sustentado o sofrimento das populações empobrecidas até 2013, segundo Paulo, dá agora claras mostras de não existir mais. Segundo ele,

“(…) foi se consolidando no Brasil a ideia verdadeiramente consensual segundo a qual, sendo Democracia e Estado de Direito uma coisa só, a gradativa submissão do político ao ordenamento jurídico nada mais seria do que a expressão conforme de uma prática social fundamentada no discurso dos direitos humanos” (Arantes, 2014, p.454).

Não é este Estado como terapia social que o abraço no assassino pede, mas sim o Estado vingador, com braço forte. Pois é esta a forma de governo que tais populações conhecem, e que se aprofundou definitivamente em todo o país após 2016, ano não só do fim da era de terapia social, mas também ano de virada no controle de fronteiras do país para o tráfico internacional de cocaína — quando Jorge Rafaat Toumani, chefe da fronteira Brasil-Paraguai é morto e, desde então, as facções brasileiras mudaram substancialmente o tamanho de seus negócios, sua forma de governo de territórios e seu poder de guerra, competindo pelo domínio logístico.

Desde então, não há alternativa de vida a estas populações que não aquela de ser controlada por grupos armados em disputa pelo seu governo, pela legitimidade de ser ao mesmo tempo aquele que protege e aquele que extorque, que extrai. E o Estado que disputa território da maneira que vimos no último 28 de outubro no Rio de Janeiro nada mais é do que mais uma milícia — a única lógica de governo que a população passou a legitimar. Assim, um governo de milícias legitimado por sua população parece ser o único futuro-presentificado no horizonte. É um mundo de falência das possibilidades de construção de alternativas, cuja criatividade — que fazia parte do ethos do trabalhador em seu metabolismo com a natureza — não tem lugar, dando espaço a uma forma política que busca apenas a salvação, um destino messiânico guiado por um governo implacável com a “injustiça”, que não aguenta mais sofrer sem terapia.

Falando em mundo do trabalho, o empreendedorismo aparecia no texto de Paulo como a tábua salvadora oferecida para os territórios sem emprego (“o empreendedorismo dos pobres não é nenhuma esquina da história nacional, mas uma saída de emergência para o colapso da sociedade salarial” p.375), mas pacificados e abertos, portanto, ao mercado. Segundo ele,

“De UPP em UPP, a contrainsurgência sem insurgência vai assim gerando o objeto do acordo tácito entre Estado, Empresas, Terceiro Setor, Comunidade, o simulacro de uma — como se diz no jargão impiedoso — sociedade civil ativa e propositiva, o sonho de consumo no qual convergem as supracitadas entidades, regidas todas por uma mesma e nova racionalidade política, contra a qual ainda estamos aprendendo a lutar. Pois a Pacificação assim entendida não é mais um baluarte a ser tomado de assalto, e sim um processo de autoempresariamento sem fim — pouco importando o grau de ficção e padecimento no processo, bem como a predação concorrencial que ele necessariamente comporta” (Arantes, 2014, p.372. Grifos meus).

Pouco mais de uma década decorrida deste texto, na qual o social foi deixando de ser gerido e passando a explodir de fato, parece que a “ficção e padecimento no processo” passaram a importar sim, na medida em que as lutas que fomos aprendendo a lutar refluíam, a pacificação se mostrava ilusória na disputa armada cada vez mais acirrada por mercados e a salvação se mostra cada vez mais longe de algo que se possa fazer por si mesmo, dentro da racionalidade empreendedora. A necessidade de um Deus vingador, ou de um líder messiânico, que salve a todos, sem gestão, nem terapia, parece ser a única possível para uma população em desespero. A era da pacificação parece chegar ao fim, junto com a derrocada das ilusões colocadas no empreendedorismo.

As eleições, em meio a essa conjuntura, não são mais um simples rito democrático de troca de governo, ainda mais agora que o outro “Messias”, que ainda jogava o velho jogo político, está fora do tabuleiro. Elas são o ponto focal para onde se dirigem os candidatos a deuses vingadores. Sua plataforma política não tem mais propostas, mas sim corpos enfileirados no chão, “sumidos” em casas terapêuticas ou sem poder parar na rua sob a mira do fuzil, como estamos vendo em São Paulo. Isso porque a competição apenas começou — e a profanação mudou de significado.

Nota
[1] Arantes, Paulo. “Depois de junho, a paz será total”. In: O novo tempo do mundo. São Paulo, Boitempo Editorial, 2014.

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