Por Golgona Anghel

Alguns versos podem projectar uma sombra que chega até aos nossos pés e nos devora. Sim, a literatura faz mal. Se não fôssemos as suas vítimas não estaríamos aqui, ensaiando até à exaustão um «gesto insensato» que se alia ao acaso e à desrazão e se atribui «algum dever», o dever de «recriar tudo», como teria exigido o olímpico Mallarmé. Porque o autor, na sua condenação, arrasta também os seus leitores na solene cerimónia de expiação. Porque escrever é inaugurar uma nova ordem, desobstruir uma realidade e assim anunciar uma urgência. Uma urgência louca, pois a sua necessidade permanece indecidível: «em virtude de uma dúvida…» Trata-se, certamente, de escrever ou, melhor, de re-escrever[1]. Talvez, por isso mesmo, «escrever [seja] uma porcaria», diria agora Artaud meio alucinado. Bataille, por sua vez, mais sereno no seu pessimismo, limita-se a mostrar a impossibilidade de escrever, a sua culpa, portanto. Culpado por tentar pensar, já que pensar é insuficiente. Mas Bataille sabia que a escrita é a única oportunidade que temos de nos recuperarmos, uma vez que estamos tão cercados por aquilo que nos desapossa. A oportunidade de permitir que a escrita opere a execução do autor, de fazer desaparecer a caneta e a mão de quem escreve à medida que avança. Talvez seja por isso que Blanchot, ao falar de Madame Edwarda, diz que o livro mais incongruente pode ser o mais belo, o escândalo pode surgir associado à ternura.

Quando a prosa do mundo já não inspira os poemas e os versos exigem já terem existido[2], tudo passa por um laboratório místico, pois o novo verso é um verso antigo que quer ressuscitar: «Assim, os poemas que pretendem subir do nosso coração até aos nossos lábios, remontam, na verdade, da nossa memória. A inspiração? Reminiscências, um ponto é tudo»[3]. Não há mais nada a não ser matéria, «éternel clapotis de l’Être […]»[4].

Mallarmé, «criatura de matéria pura», queria, no entanto, produzir uma ordem superior à matéria. A sua impotência era teológica. Perante a morte de Deus, o poeta elege-se no seu lugar. Transforma o eterno em temporalidade e o infinito em acaso. Expressa-se em termos de dramas, e não em termos de essência. Define-se, mais uma vez, mas doutra maneira, pela sua impossibilidade. Num horizonte sem futuro, assombrado pela volumosa estatura do rei ou pelo triunfo de uma classe, a invenção parece uma pura reminiscência: já foi tudo dito.

Chegámos demasiado tarde. Estamos talvez cansados. Algo frágeis na nossa impotência. É esta sensação de impotência que (des)anima «O Esgotado» de Beckett: esgotámos todos os possíveis. «Activamo-nos, mas a nada. Estávamos cansados de qualquer coisa, mas esgotados, de nada»[5]. É com esta impressão, de termos chegado no fim da festa, que testemunhamos o primeiro plano do filme Amor (2012), de Michael Haneke. Espectadores intempestivos, seduzidos pelo cheiro de uma história quente, damos connosco diante de uma câmara que arromba o ecrã enquanto vários desconhecidos patrulham por dentro de um apartamento, aparentemente vazio. Arrombam portas, as portas que separam o mundo dos vivos do mundo dos mortos, o espaço íntimo do espaço público, os predadores de vidas de um caso sério.

A experiência mallarmeana da angústia perante uma página em branco adquire nestes primeiros minutos do filme o peso grave, não de que esteja tudo por escrever, mas de que já esteja tudo escrito. Já não a angústia diante de uma página em branco, mas a angústia de uma página em preto, a violência da sua impotência. Já não apenas a violência do olhar voyeurista da câmara, mas também a intrusão da vida no lugar onde a morte se tinha apoderado do espaço e do tempo.

A câmara de filmar está no apartamento de Georges e Anne e podíamos agora, à força de um flashback, ficar à espreita, ampliar planos, dilatar tempos, perceber como se adoece e se morre (ou se mata) no laboratório fechado de uma vida a dois.

Não seria a primeira vez que Haneke nos conta uma história de violência que começa com uma intrusão. Em Brincadeiras Perigosas (1997, 2007), uma família burguesa é confrontada com dois jovens psicopatas que invadem a sua casa de férias e os torturam até à morte. «Terroristas da boa educação», Peter e Paul instauram um jogo perverso cujas regras alimentam um espectáculo da crueldade gerido com frieza e neutralidade. A crise que os dois «anjos exterminadores» instauram não é o resultado de algo, é a condição mínima para que algo aconteça. Mas que fazer com este excesso de intimidade? Como gerir a proximidade com a doença? Como suportar a exposição de um corpo em sofrimento? Como medir a crueldade com que o mestre de cerimónia da violência contida ostenta a morte? Quanto tempo se pode fixar o plano sobre um corpo em agonia? Quanto é, em definitivo, que aguenta um corpo? O que é que é que já não pode suportar?

Numa conferência intitulada «O tempo, hoje» (1987)[6], Lyotard diz que para pensar ou escrever, para fazer com que algo aconteça, hoje, é preciso construir um «cordão sanitário» à nossa volta, é preciso habitar um gueto temporal.

Oscilando entre um sadismo calculista e um «academismo autoritário», Haneke inventa esta espécie de gueto de tempo amortecido. Por aí passam alguns intrusos temporários: a empregada de limpeza portuguesa, simpática mas tola, a cabeleireira ucraniana, mal agradecida e pouco profissional, o jovem pianista talentoso, inevitavelmente francês e «genial» na sua «origem». A passagem destas figuras-cliché é faccionista, é breve e maniqueísta, mas corrobora para um efeito comum: retardar a morte. Tal como no gueto de Varsóvia, neste gueto «chic» instalado num apartamento em Paris, a violência tem também o seu lado ambíguo, pois retarda a morte dos enclausurados e os protege. Perante a ameaça de uma epidemia de febre tifóide, os alemães constroem um muro para isolar os reclusos judeus; Georges, por sua vez, protege o corpo frágil da mulher dos maus-tratos da cabeleireira, do cansaço das visitas, da luz demasiado forte. Ajuda-a a recordar, a sobreviver. É, talvez, esta a situação dos criadores hoje: condenados a um gueto temporal, estão ameaçados pelo reinado do tempo controlado, mas, ao menos, espera-os uma morte diferida. «Compram» o seu intervalo de sobrevivência, breve e inútil, aceitando modificar as obras, de maneira a torná-las mais «comunicáveis», mais intercambiáveis, isto é, vendíveis.

Deveríamos ficar contentes, no entanto, felicitar-nos, por termos sobrevivido à cultura, à arte, à beleza, no sentido desse aviso que Walter Benjamin nos tinha deixado em 1933. A sentença de Hitler, pronunciada na sessão sobre a cultura do Congresso do Partido do Reich em Nuremberga, em 1935 – «Nenhum povo sobrevive aos documentos da sua própria cultura» –, encontra hoje a sua realidade diferida. Pois se fizemos o que nenhum povo podia fazer, é porque já não constituímos povos. Não podemos invocar a «existência histórica de um povo» como origem da obra de arte (Heidegger), nem referir-nos à unidade do estilo artístico enquanto expressão vital de uma comunidade (Nietzsche). Não adianta nada ir produzindo resíduos sociais, pois já não temos onde vertê-los, não há guetos possíveis, nem ilhas desconhecidas onde abandonar os cães vagabundos, os criminosos, os doentes terminais ou os pobres. Não estamos apenas cansados. Não gastámos apenas todo o possível subjectivo. Esgotámos todos os possíveis, objectivamente. Chegámos demasiado tarde, ou talvez seja por isso que temos a sensação que não paramos de chegar. Pois não é este o nosso mundo: com ou sem ar condicionado, habitar tornou-se irrespirável. No lugar da pátria, temos agora outro lugar-comum, o lugar onde «possamos crescer e educar os nossos filhos».

O nosso modo de sobrevivência institui-se na incerteza do jogo, entre aparecer e desaparecer, entre infinito e nada. O nosso mundo recusa-se a forjar relações de causa e efeito. Prefere investir no episódico e no elíptico. Tudo o que acontece, acontece longe do nosso olhar. Sentimo-nos perdidos, como as crianças do filme O Laço Branco (2009) que descobrem que a morte sempre chega a uma hora. O que tememos não é a violência de uma intrusão, de um assalto armado, de um ataque terrorista, mas a violência do silêncio que tudo impossibilita. Porque «agora, as sereias têm ainda uma arma mais aterradora do que o canto, e esta é o silêncio. Nunca aconteceu, mas é concebível que alguém conseguisse salvar-se do canto das sereias, mas certamente que não do silêncio»[7]. Preservar o indizível mas pisar com os passos da morte nos sapatos do dia-a-dia, é esta a condição da violência em O Laço Branco. O mal aparece como co-extensivo à existência humana, habitando a terra como o seu lado invisível e excessivo. Surge como algo invisível habitando a aldeia, alimentando as intrigas, aumentando o medo como se fosse o seu lado excessivo mas necessário. É por intermédio daquilo que se cala que a violência se dá. O seu modo de dizer é o silêncio, a sua maneira de fazer é a intrusão, o seu modo de ser o conflito. O importante neste movimento poético é a alusão, a sugestão e a sua instantaneidade. O problema de Haneke é que o silêncio não é apenas o silêncio material da violência ou a alegoria da sua imposição. O silêncio pertence ao movimento e à textura do filme. A sua superfície opaca é o lugar do acontecimento. O plano surge do nada, suspende o nosso olhar e regressa ao silêncio. Não é o mesmo plano nem o mesmo silêncio. É o silêncio determinado que venceu o acaso. Não se trata apenas de compreender o mistério, mas também de o constituir. Haneke transforma o anonimato eterno em eternidade do anónimo, em glória de qualquer coisa, de qualquer um. Mas o intruso não é apenas um qualquer. A sua tarefa é inverter a hierarquia do alto e do baixo. No filme O Castelo (1997), a violência frequenta altas esferas, vive acima dos homens, como se vê nas religiões monoteístas ou nas estruturas tirânicas. O seu modo de estar é transcendente, a sua força totalitária. O mal pode, no entanto, surgir também enredado na interioridade da alma, como acontece em A Pianista (2001). Aqui é um fantasma que habita o sujeito, enquanto (ger)ente diabólico do seu (con)domínio psíquico. Mas há momentos em que a imagem mostra tudo, a imagem torna-se obscena, isto é, sem a cena que todo o jogo pressupõe. Porque o próprio jogo em Brincadeiras Perigosas é a regra da violência. A sua exposição é total, a promiscuidade táctil, o seu regime, a pornografia.

Agora, não se trata aqui apenas de descrever as manifestações da violência na arte. A violência faz parte da arte, da sua produção, assim como a água faz parte da vida das baleias. A violência nega-a e afirma-a na sua alternância. O acto insensato de escrever, criar, pensar, introduz uma dissonância radical na concordância comunitária tal como a pensa Platão, como harmonia entre os modos de fazer, de ser e de dizer. A obra só se alça no conflito, e é apenas no perigo que podemos encontrar a sua salvação. Entrar em conflito é a única salvação possível. Agora, dentro da arte contemporânea, não podemos associar estas produções conflituosas a uma espécie de ataque a um cânone excludente, pela simples razão de que o cânone se tenha flexibilizado ou até diluído completamente. As Joanas Vasconcelos funcionam, por exemplo, como resquícios fora de tempo desse cânone repreensível que alimentam com bibelôs o folclore nostálgico de um Estado-nação. Mas se Deus não existe, então já não tem sentido blasfemar, assim como se torna impossível levantar obras «revolucionárias» contra a opressão do grande ditador. É, talvez, a saudade dessa figura, a ausência dos seus abusos que nos levam a inventá-lo continuamente.

Não basta dizer que a violência paira sobre o mundo como uma espécie de nuvem, nem que ela atravessa as coisas como um virtual que, uma vez actualizado, as redistribui, provocando nelas rupturas, recomposições, derivações, terras incógnitas.

Não adianta tentarmos domesticar os rebeldes, integrar os excluídos, incluir a margem, pois estamos todos no mesmo barco. Não podemos continuar a tratar a excepção como algo de que precisamos fugir. Somos todos pretos, ciganos, judeus, palestinianos. Vivemos todos fora de sítio. Falamos todos numa língua estrangeira. A excepção é a nossa regra. Este mundo, certamente, é um lugar inóspito. Mas isso não significa que temos de aceitar a inospitalidade com resignação. Não podemos seguir reproduzindo as suas caras sinistras, os seus lugares agrestes como se precisássemos de ser fiéis ao nosso desastre, como se fosse necessário «adequar» a arte a este asilo planetário e assim fazer ressoar os passos dos doentes nos seus corredores.

Não é fácil, certamente, de pensar ou entender, muito menos de tornar compossível, um pensamento que atravessa o cinema, a literatura, a política. Interessa-nos antes de tudo uma certa politização da violência. Porque a violência não está no Céu, nem na Terra, nem nas nossas cabeças, nem na superfície do nosso plasma 2×3 m, mas entre tudo isto, assim como uma espécie de microclima, um campo de ressonância magnética. Isto é, a violência não é uma cópia do mundo material, nem uma estrutura inconsciente, transcendente, nem um poder superstrutural ideológico, imaginário. A violência é um intervalo do indizível, é um intervalo da realidade, da natureza, da cidade. É algo que se intersecciona com os poderes, os saberes e os seus dispositivos. Não podemos programá-la. Não é algo que faça parte do foro privado dos poetas e outros videntes de ocasião, muito menos das ferramentas de intervenção dos analistas políticos. A violência exige uma estirpe que sempre existiu: a estirpe dos intrusos, os tártaros que existem em cada um de nós, como potência de um exercício de liberdade, como força de ressignificação. A violência exige, sim, essa prática, exige uma hora (in)certa, o tempo Aiôn, o ponto de efervescência de uma aspirina que agita na nossa mesa-de-cabeceira não a água que ficou no copo, mas a noite e o seu silêncio.

Notas:

[1] Cf. «C’est, ce jeu insensé d’écrire, s’arroger, en vertu d’un doute… quelque devoir de tout recréer, avec des réminiscences», em Mallarmé, Stéphane (1945), Villiers de l’Isle-Adam, em Oeuvres complètes, Paris: Gallimard, p. 481.

[2] Cf. Sartre, Jean-Paul (1986), «Mallarmé», em Mallarmé, La lucidité et sa face d’ombre, Paris: Arcades-Gallimard, p. 151, primeira edição de Queneau, Raymond (1953), Écrivains célèbres, III, Mazenod (ed.): «Il choisit le terrorisme de la politesse; avec les choses, avec les hommes, avec lui-même, il conserve toujours une imperceptible distance. C’est cette distance qu’il veut exprimer d’abord dans ses vers. /Au temps des premiers poèmes, l’acte poétique de Mallarmé est d’abord une recréation. Il s’agit d’assurer qu’on est bien là où l’on doit être».

[3] Id., ibid., pp. 152-3, «Ainsi les poèmes qui prétendent monter de notre coeur à nos lèvres, remontent, en vérité, de notre mémoire. L’inspiration? Des réminiscences, un point c’est tout».

[4] Id., ibid.

[5] Deleuze, Gilles (1992), L’Épuisé, Paris: Minuit, p. 59.

[6] Lyotard, Jean-François (1988), L’inhumain. Causeries sur le temps, Paris: Gallimard, pp. 82-3.

O presente artigo é o segundo de três artigos inicialmente publicados no dossier «Violência» do n.º 3 da revista Imprópria. Editada pelo coletivo português Unipop, a Imprópria é uma publicação em papel dedicada à pesquisa e reflexão na área do pensamento crítico.

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