A crítica que fazemos ao “autonomismo” está exatamente em construir uma “autonomia” que, descolada das lutas dos trabalhadores (autônomas ou não), só existe na cabeça de seus praticantes. Por Passa Palavra

Chegamos à última parte de nosso debate. Certamente, alguns estranharão um texto de crítica à forma como o “autonomismo” tem se desenvolvido no Brasil ser atravessado a todo tempo por uma aparente “confusão” entre “autonomismo” e as lutas autônomas de trabalhadores em vários ambientes, épocas e países. É que, para nós, não há “autonomismo” sem estas lutas autônomas. A crítica que fazemos ao “autonomismo” está exatamente em construir uma “autonomia” que, descolada das lutas dos trabalhadores (autônomas ou não), só existe na cabeça de seus praticantes. Exemplificamos as diferenças entre o “autonomismo” e as lutas autônomas dos trabalhadores para mostrar a profunda apartação entre uma coisa e outra, e só então trazer o problema para aquilo que nos é mais próximo.

lulayoungO pano de fundo de toda a discussão que travamos é o fato de os trabalhadores viverem, na prática, duas vidas: aquela em que são mera força de trabalho para o capital, e aquela em que são sujeitos políticos autônomos. Numa de suas vidas, vivem de acordo com as regras, hábitos, conceitos, ideologias, práticas etc. impostas pelos burgueses e gestores; noutra delas, inauguram práticas, hábitos, conceitos, regras, ideologias etc. capazes de construir relações sociais novas, que ao se desenvolverem no tempo e no espaço podem vir a substituir o capitalismo. A tensão entre estas “duas vidas” dos trabalhadores resulta em que suas lutas oscilam entre a total integração aos quadros ideológicos e práticos do capitalismo e a total ruptura com ele. Entre estes dois polos de um plano lógico situam-se as infinitas variações e misturas verificáveis num plano histórico entre integração e ruptura, entre exploração e autogestão, entre alienação e plena realização pessoal, entre heterogestão e autogestão. Aquilo que num plano lógico pode ser expresso como dois polos nada mais é que a extremação de características de lutas sociais complexas, na tentativa de extrair elementos que permitam situá-las num continuum de lutas entre classes em tempos e lugares diferentes.

Não se pense que no Brasil a situação foi diferente. As lutas autônomas dos trabalhadores dos anos 1970 resultaram na formação do mais potente instrumento político que jamais tiveram – o Partido dos Trabalhadores (PT). Não por acaso, foi entre intelectuais petistas de primeira hora (Eder Sader, Marilena Chauí, Marco Aurélio Garcia, Herbert Daniel, Marcos Nobre, Maria Célia Paoli, Silvio Caccia Bava, Vera Silva Telles, Amnéris Maroni etc.) que emergiu no Brasil o autonomismo: foi o grupo da revista Desvios quem, nas cinco edições publicadas aperiodicamente entre 1982 e 1986, trouxe à militância de esquerda brasileira nomes como Negri, Guattari, Castoriadis, Lefort e outros “autores” de “textos” tão caros aos autonomistas de hoje (e àqueles que lhes fazem as cabeças); não por acaso, a velha Política Operária optou por dissolver-se no interior do partido; não por acaso, os exilados em contato com as lutas autônomas dos trabalhadores na Europa retornaram com “outras ideias”, que desembocaram no PT e no Partido Verde (PV). (Antes de prosseguir, uma última observação sobre os tais “autores”, estes citados e outros tantos: não é curioso que militantes políticos sejam tratados como autores acadêmicos no campo “autonomista”? E que o inverso seja ainda mais verdadeiro?)

lula4Ocorre que este instrumento político só é tido ainda hoje como o mais potente já criado pelos trabalhadores brasileiros porque conseguiu se pôr como alternativa eleitoral viável para sucessivas eleições presidenciais, e construiu uma base parlamentar sólida ao longo dos anos. Não é pouco, considerando as severas limitações dos instrumentos políticos anteriores (PTB, PCB etc.), mas o PT não é, nem nunca se propôs a ser, outra coisa que não um instrumento para a construção do socialismo por meios eleitorais – e a longa história dos partidos social-democratas mundo afora evidencia os limites desta opção. Malgrado suas limitações e contradições internas, o PT é hoje o centro, junto com o PMDB, de um instável bloco político que hegemoniza o país há pelo menos doze anos (o PMDB encastelou-se no poder há mais tempo). Se se fala em hegemonia, não se pode esquecer que ela não se exerce somente pela força, mas também pelo consentimento; e que o consentimento não se cria apenas mediante propaganda e mistificações ideológicas, mas também por aquilo que as classes hegemônicas cedem em troca de sua sustentação. Se a polarização das eleições presidenciais nos últimos doze anos (especialmente, mas não só) corresponde à disputa inter-gestorial pelo controle do aparelho tradicional do Estado Restrito (vez que seus postos no Estado Amplo – ou seja, as empresas e demais aparelhos privados de hegemonia – não são sujeitos a escrutínio público), não se pode esquecer que a legitimação da ascensão destes gestores ao poder se dá, a cada turno, por processos históricos distintos.

A base histórica da hegemonia petista é a longa luta dos trabalhadores por melhores condições de vida. Os sindicalistas, técnicos, acadêmicos, funcionários públicos etc. alçados a postos de liderança nestas lutas só se inauguram na função de gestores do capitalismo porque ingressam em instituições cada vez mais centrais para o pleno funcionamento e integração da economia capitalista: presidência, ministérios, governos estaduais, secretarias e ministérios de Estado, prefeituras, autarquias, cargos parlamentares, fundos de pensão, conselhos e conferências de políticas públicas, cargos de confiança etc. Nestes lugares, em consonância com sua origem histórica, seu trabalho é manter o capitalismo funcionando ao mesmo tempo em que garantem melhorias na inserção econômica dos trabalhadores – o que não significa, automaticamente, melhorias na qualidade de vida. Sua ascensão às instituições de gestão da política e da economia, e sua progressiva incorporação enquanto nova fração da classe dos gestores, traz consigo a panóplia das instituições de gestão da coisa pública – participativas ou não – que só funcionam para quem participa tanto das lutas que se descolam de sua base social original, transformada agora em mero repositório de legitimidade agitado num ou noutro momento mais crítico. Entretanto, é através desta panóplia que são concebidas e geridas as “políticas públicas” criadoras de parte das condições necessárias à mobilidade social ascendente tão desejada pelos trabalhadores.

E como está a vida destes trabalhadores?

lula-fhcO padrão da inserção no mercado de trabalho permanece parecido ao identificado a partir de meados da década de 2000: aumento dos postos de trabalho apenas na “base” da pirâmide social, em ocupações com alta rotatividade, com remuneração orbitando em torno de 1 a 2 salários mínimos. Se se leva em conta que na década anterior o crescimento foi nos postos de trabalho sem remuneração, o salto qualitativo é notável. Entretanto, ainda enfrentamos altíssima rotatividade nos postos de trabalho (ver aqui). 60% dos postos de trabalho criados desde a década de 2000 têm sido ocupados por mulheres, sendo que homens na mesma função recebam 23% a mais em pequenas empresas e 44,5% a mais em grandes empresas (ver aqui). A maior parte destes novos empregos tem sido ocupado por adultos jovens (entre 25 e 34 anos). Embora a diferença salarial entre brancos e negros tenha caído significativamente entre 2003 e 2013, negros ainda ganham 42,6% menos que brancos e têm taxa de desemprego maior (ver aqui), e os postos na base da pirâmide socioeconômica, com mais baixas remunerações, são ocupados muito mais por eles que por brancos. Os gastos sociais saltaram de 13,5% do PIB em 1985 para 23% em 2013 (ver aqui). Não é de estranhar, com tudo isso, que a participação dos salários na renda nacional, que havia encolhido durante toda a década de 1990, tenha subido de 39,3% em 2004 para 43% em 2010, paralelamente a uma queda na participação empresarial na renda nacional (ver aqui).

Além disso, é inegável o aumento avassalador na escolarização dos trabalhadores nos últimos quinze anos; a forte curva ascendente nas estatísticas de pessoas com ensino médio completo e ensino universitário completo o indica. A qualificação formal da força de trabalho não significa que tenha havido sua qualificação real; a tragédia do ensino público brasileiro (malgrado os esforços e lutas dos professores) e a commodificação do ensino universitário, prestado majoritariamente em faculdades privadas de questionável qualidade acadêmica, testemunham esta diferença. Entretanto, na hora de apresentar os diplomas e certificados para preencher uma vaga de trabalho com salário achatado, um contador formado pela USP tem o mesmo valor que um formado pelo Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE).

Os trabalhadores ainda não estão assim tão bem – afinal, o salário mínimo atual representa 24,72% do salário mínimo vital, que o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) calcula em R$ 3.186,92 (ver aqui) -, mas, no campo puramente econômico, estão melhorando. Apesar disso, os trabalhadores não se vêem como classe média, como querem o governo e certos setores da economia (ver aqui) – característica a ser comentada adiante.

E o que fazem os trabalhadores com o que ganham?

  portinari_cambalhota Seu crescente uso do cartão de débito frente ao dinheiro ou ao crédito pessoal (“fiado”) indica seu maior enredamento nas malhas do sistema financeiro (ver aqui). Sua participação no mercado de turismo aumentou 242% entre 2002 e 2010 (ver aqui) – e neste mercado incluem-se tanto os que realizam o triste sonho da viagem à Disney quanto as excursões de fim de semana em ônibus informais. Não é de estranhar, pois as viagens são um dos principais sonhos de consumo dos trabalhadores brasileiros, à frente da frequência a restaurantes, bares e boates, da compra de produtos de beleza, da compra de carros e da compra de eletrônicos (ver aqui). Seu consumo de telefonia móvel e internet é maior que o de acessórios, shows, teatro, cinema e produtos de beleza (ver aqui) – indicando tanto a hiperconectividade característica de um trabalho autônomo quanto as cobranças de patrões e supervisores mais exigentes. Hiperconectividade, por sinal, que leva empresas a apostar no crescimento do mercado de smartphones entre a classe trabalhadora, identificando já haver quem se disponha a pagar R$ 700,00 a R$ 800,00 num telefone (ver aqui). Os novos hábitos de consumo dos trabalhadores, além de serem importante fundamento macroeconômico contra crises econômicas de origem externa ao reforçar o mercado de consumo interno, forçam as empresas e os órgãos de defesa do consumidor a alterar suas estruturas e práticas em função da maior pressão que lhes é exercida por estes novos consumidores (ver aqui). Tudo isto, mais o consumo de carros, de eletrodomésticos, de cosméticos, de TV a cabo ou satélite, de planos de saúde etc. demonstram que em paralelo a programas sociais o que há é uma inclusão pelo consumo; embora favorável à perspectiva de luta de classe que adotamos (onde as conquistas materiais e culturais têm papel central), esta inclusão pelo consumo tem problemas a serem tratados adiante.

As flutuações econômicas brasileiras recentes, entretanto, levaram a classe trabalhadora a ser mais pessimista quanto ao futuro, vendo para 2015 um cenário de desemprego, acompanhado por aumentos salariais iguais ou inferiores aos índices inflacionários – e a experiência prática comprova que inflação não é outra coisa senão desvalorização da força de trabalho e, por consequência, dos trabalhadores. Um aspecto da inclusão pelo consumo agravado com a inflação é o endividamento. A Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) indica aumento do endividamento no curto prazo (de janeiro a março de 2015), mas uma melhora no endividamento comparado com 2014, e uma melhora na percepção das famílias sobre sua capacidade de pagar os débitos; no longo prazo, as séries indicam leve curva ascendente no endividamento por cartões de crédito e uma forte tendência à queda no endividamento por carnês de pagamento parcelado de bens, apontando portanto migração da dívida do crédito direto em lojas, ainda que intermediado por instituições creditícias, para a financeirização pura.

portinari_flautistaEntretanto, os hábitos dos trabalhadores de lidar com crises (inflacionárias, recessivas e outras), se se mantiveram adormecidos nos últimos anos, não morreram. 42% deles já estão fazendo “bicos” para complementar a renda (ver aqui e aqui), e os empréstimos junto a familiares e amigos substituem progressivamente os créditos bancários em situação de emergência (ver aqui, aqui e aqui). Produtos ditos supérfluos são cortados da cesta de compras (ver aqui e aqui) – embora o valor total das compras não tenha diminuído (ver aqui). As recentes restrições ao FIES levam ao ressurgimento de linhas privadas de crédito educacional (ver aqui). A fração dos trabalhadores que mais se beneficiou com a mobilidade social ascendente dos últimos doze anos – que a mídia e o governo insistem em chamar de “classe C” ou “classe média”, contra todas as evidências de que se trata de trabalhadores pobres e nada mais – sente que o processo de mobilidade ascendente pode ser brecado caso o cenário se mantenha (ver aqui e aqui).

Paralelamente à mobilidade social ascendente e ao temor de sua brecagem pela chegada da inflação, entretanto, há outro elemento a ressaltar, correlato a ela: o individualismo e sua consequência econômica, o empreendedorismo, ambos resultantes da lenta mobilidade social ascendente vivida pela classe trabalhadora na última década. Tomemos a questão pelos dois extremos: os trabalhadores menos qualificados, representados pelos beneficiários do programa Bolsa Família, e os trabalhadores mais qualificados, egressos do ensino universitário.

É comum em círculos conservadores que se diga que os programas sociais, os aumentos no salário mínimo e o crédito ao consumo estimulam a preguiça dos mais pobres. Entretanto, basta ver o cotidiano de qualquer dos beneficiários destas políticas para notar que seu esforço para ascender social e economicamente, malgrado os auxílios governamentais, ainda é hercúleo. A mobilidade social ascendente, mesmo quando estimulada e apoiada, não é tão simples quanto parece.

Beneficiários do Bolsa Família, por exemplo, estão nos mais baixos estratos de renda da sociedade, e para garantir a continuidade do benefício precisam manter os filhos na escola – não podendo mais empregá-los como força de trabalho, tal como em tempos já passados, levando os adultos a sobrecarregar-se de trabalho (em geral em atividades com baixa exigência de qualificação formal) para manter os filhos na escola. Não obstante, é entre os beneficiários deste mesmo programa que se encontram notáveis melhorias no desempenho escolar dos filhos (ver aqui), notáveis estímulos ao empreendedorismo e ao trabalho por conta própria – embora em posições muito subalternas no mercado (ver aqui); ademais, a opinião preconceituosa de que as famílias mais pobres estariam multiplicando filhos para receber mais benefícios não se sustenta, pois é justamente aí que as taxas de natalidade têm tido maior decréscimo (ver aqui).

normal_carnica_portinariEm outro exemplo, mutuários do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e beneficiários do Programa Universidade para Todos (PROUNI) estão na universidade, mas estão em geral incluídos nos 63% do total de estudantes universitários que precisam trabalhar de dia e estudar à noite – e a recente queda no total de formandos evidencia as dificuldades que enfrentam (ver aqui).

Nos dois casos, há uma questão. A mobilidade social ascendente, nestas situações, resulta da conjugação entre os programas econômicos e sociais, de um lado, e a iniciativa e esforço do trabalhador individualmente considerado, de outro; sem a iniciativa e o esforço, o programa não funciona, e sem o programa, a iniciativa e o esforço vêm-se dificultados pela multiplicação dos obstáculos entre sua posição na estratificação social e aquela que deseja alcançar. Sendo assim, a mobilidade social ascendente verificada nos últimos anos resulta não apenas dos programas de governo, mas também – e muito – da iniciativa e esforço dos trabalhadores que souberam aproveitá-los para acumular tanto benefícios materiais quanto maiores qualificações profissionais, maior repertório cultural etc.

Ora, é muito comum que a iniciativa e o esforço sejam mais imediatamente perceptíveis pelo trabalhador individual que os programas econômicos e sociais – afinal, quem não percebe o tempo e energia que dedica à sua ascensão social? Eles são, com certa dose de razão, alçados ao primeiro plano pelos trabalhadores enquanto ascendem, e os apoios recebidos vão sendo lançados ao segundo plano. Este é o solo fértil em que as ideologias da meritocracia, do empreendedorismo e do individualismo germinam. Não negamos o papel da iniciativa nem do esforço individual na mobilidade social ascendente; ressaltamos, apenas, que um de seus elementos tem sido destacado do outro – o que não é de estranhar, diante do quadro ideológico capitalista já desenhado na parte 2 deste ensaio (ver aqui). E quem ascende socialmente tende a desejar, evidentemente, fugir das humilhações, das atribulações, das limitações e da sensação (real) de exploração e opressão vividas no trabalho assalariado – o que consideramos, anticapitalistas que somos, sentimentos absolutamente legítimos. O problema está no tipo de saída do assalariamento apontado pela meritocracia, pelo empreendedorismo e pelo individualismo.

Séculos atrás, além do aquilombamento, havia outra saída para a escravidão, usada nas décadas finais do regime escravista colonial especialmente por escravos urbanos (considerados aqui não enquanto classe social, mas enquanto mero conjunto heterogêneo de indivíduos): a compra de sua própria alforria, algumas raras vezes seguida, com o passar dos anos, pela compra de mão-de-obra escrava pelo liberto. Não se tratava, nunca, nestes raros casos, de libertos com grandes plantéis de escravos, como os grandes senhores rurais, os grandes comerciantes urbanos etc. O que ocorria era, digamos, o liberto que trouxera da África técnicas artesanais de metalurgia comprar, depois de anos de trabalho e economias, um ou dois escravos para auxiliar-lhe em sua oficina; a vendedora ambulante já remediada comprar um ou dois escravos para, com mais gente a circular pela cidade, tirar um lucro extra de seu comércio; e por aí vai. Para a maioria dos libertos, todavia, a vida era uma luta constante para conseguir num dia dinheiro (ou crédito) suficiente para comprar a comida do dia seguinte, e sonhar com o dia em que poderiam comprar braços extras para vencer a faina diária.

O-Cafe-Candido-PortinariVamos encarar: em linhas muito gerais, o processo se repete quanto ao assalariamento. Se nenhuma outra saída ao assalariamento aparece, o negócio próprio é apresentado e estimulado nos meios de comunicação, nos órgãos e entidades de fomento ao “empreendedorismo” (SEBRAE, SENAC, SESCOOP, SENAR, OCB, IEL, SENAI etc.) e nas conversas informais como o oposto do assalariamento, como sua negação. A escassa difusão de experiências de autogestão que sejam ao mesmo tempo representativas de seus setores e factíveis para o trabalhador tornam-lhe utópicas quaisquer outras iniciativas que não “tornar-se o próprio patrão”. É isto o que levou 34,5% dos adultos brasileiros a estar envolvidos em negócio próprio em 2014, tornando o Brasil o primeiro país no ranking mundial do Global Entrepreneurship Monitor (GEM), à frente dos EUA e da China (ver aqui). Seria isto puro reflexo da “pejotização” do mercado de trabalho brasileiro? Cremos que a causa não está somente aí. Hoje, 40% dos moradores de favelas querem abrir negócio próprio. O número representa queda em relação à pesquisa anterior, de 2013, quando 53% manifestavam o desejo de empreender (ver aqui). Mesmo assim é superior à média nacional. De acordo com o Sebrae, 23% da população brasileira deseja criar um empreendimento próprio (ver aqui). É curioso que 70% dos moradores de favelas afirme querer morar no mesmo lugar, mesmo se sua renda duplicasse (ver aqui) – um curioso enraizamento, cujas possíveis consequências serão discutidas adiante.

São estes alguns dos elementos materiais formadores de um quadro ideológico e prático complexo, mas marcado pelo individualismo, pela “meritocracia” e pelo “empreendedorismo”. Os três, juntos, embaçam o fato de a mobilidade social ascendente resultar de décadas de luta coletiva dos trabalhadores contra os esforços conjugados de burgueses e de certa fração dos gestores. Livres para empreender e chamados à política somente de quatro em quatro anos para escolher a facção gestorial que os conduzirá ao paraíso, não é de estranhar que a esta mobilidade social ascendente dos trabalhadores brasileiros nos últimos doze anos não tenha correspondido um aumento da participação política, que às conquistas materiais não se tenham somado conquistas políticas de maior monta (ver aqui e aqui).

Num contexto em que as práticas de ruptura com o capitalismo foram substituídas pelas que impulsionam a mobilidade social ascendente dos trabalhadores, e portanto sua maior integração ao sistema; num contexto em que não se vê mais as grandes mobilizações de trabalhadores que marcaram as décadas de 1980 e 1990; num contexto de exaltação midiática das agitações políticas de setores conservadores da sociedade (que, não se iludam, estão presentes também entre os trabalhadores); num tal contexto, como é possível continuarmos a falar, então, da autonomia desta classe? Como é possível esquecer que vivemos sob a hegemonia compartilhada entre burguesia e gestores no Brasil e no mundo? Estaríamos pretendendo reacender chamas de utopias irrealizáveis, retornar a uma “era de ouro” das lutas sociais massivas?

Não. Somos mulheres e homens de nosso tempo, e intervimos nas lutas de nosso próprio tempo. A tragédia que se apresenta diante de nós, especialmente em tempos de vacas tuberculosas, não nos autoriza a encenar farsas.

lula-metalc3bargico-suplicy-ao-fundoSabemos reconhecer, entretanto, que, mesmo fortemente integrados no capitalismo, não há trabalhador que não queira romper com o assalariamento – é a nossa interpretação de sua “vocação empreendedora”. Vimos, além disso, que a identidade de classe – sob o nome que se achar mais adequado: “peões”, “guerreiros”, “batalhadores” etc. – é forte ao ponto do enraizamento territorial ser um de seus traços marcantes. Vimos, ainda, que reemergem laços elementares e primários de solidariedade entre os trabalhadores, mesmo sob toda a escumalha individualista e em contextos de dificuldades econômicas. Entendemos, ainda, que no miudinho de suas vidas pessoais, não há trabalhador que não esteja lutando por conquistas materiais e culturais. E, num contexto marcado por políticas voltadas a promover a mobilidade social ascendente (e, portanto, a maior integração ao sistema capitalista), entendemos que esta luta é apenas um dos frontes de luta, e que é possível abrir outros.

Ao intervirmos nas lutas de nosso tempo, saímos de nossa zona de conforto. Se já o fazemos na prática, é preciso fazê-lo igualmente em nossas reflexões políticas. Isto implica em sair do debate estéril – e politicamente ambíguo – do “governismo” e entrar no debate do fortalecimento da classe através de conquistas materiais e culturais. Nas democracias capitalistas, é tático exigir mais e mais daquilo que atenda aos eixos de luta dos trabalhadores, até bater no impossível; os limites do “impossível” são dados a cada momento pela correlação de forças entre as classes envolvidas nesta luta; e a “correlação de forças”, ao contrário do que dizem certos conservadores de esquerda acomodados com o reformismo lento dos últimos doze anos, não pode ser medida senão enquanto se luta.

Para dar este salto, é preciso fazer a cada momento uma análise fina do impacto de cada medida governamental, de cada resultado de lutas no trabalho e fora dele, de cada mudança comportamental, para identificar nelas o que, de fato, significa conquista material e cultural dos trabalhadores, e o que reforça sua relação com os gestores e a burguesia. E esta análise precisa ser feita em cima da atualidade, não com o que dizem os “textos” de dez, vinte, cinquenta, cem, cento e cinquenta, cento e setenta anos atrás. É preciso saber transformar em problemas concretos das lutas este caráter dual dos resultados das lutas travadas na formação social em que nos encontramos, qual seja, o de que as conquistas materiais para os trabalhadores somam-se a um simultâneo reforço da hegemonia dos gestores. Só então poderemos, com nossos companheiros do trabalho, da escola, da universidade, do movimento etc., questionar o sentido e o conteúdo da mobilidade social ascendente enquanto construímos alternativas de luta que agreguem não apenas um pequeno clube de iniciados, não apenas uma minoria ativa ou uma vanguarda, mas amplas massas de trabalhadores. Só assim poderemos avançar nas lutas e criticá-las por dentro – e não é outra coisa o que o Passa Palavra tem feito desde 2009. Viver os riscos, apontando-os para superá-los.

instituto-lulaAs jornadas de junho de 2013 são o primeiro sintoma deste grito por “mais” vindo desta nova composição da classe trabalhadora, mais qualificada, com renda inversamente proporcional a seu investimento educacional e sujeita a alta rotatividade no trabalho (pesquisas mais recentes indicam ser este o público majoritariamente participante das manifestações da época – ver aqui); que outros sintomas podem ser vistos no presente? O descolamento entre PT e classe trabalhadora que se vai apontando nas últimas eleições presidenciais (ver aqui e aqui) – que significados políticos pode vir a ter no futuro? Não quererá dizer, para além das sempre suspeitas questões relativas à corrupção (que preocupa também os trabalhadores, como se pode ver aqui), que o PT já não aparenta mais representar este desejo por “mais”?

É este, segundo entendemos, o conteúdo da autonomia. Autonomia é, para nós, muito mais que a simples capacidade de dar-se as próprias regras; é isso também, mas a tradução desta definição quase etimológica no contexto das lutas sociais significa a construção tática de um caminho que leve a um horizonte estratégico além do capitalismo, através de conquistas materiais e culturais da classe trabalhadora e da sua progressiva organização autônoma e independente, sob diversas formas e nas mais diversas escalas. É através do acúmulo destas conquistas, somado a esta organização autônoma, que os limites das concessões capitalistas se tornarão evidentes, e poderão, assim, ser identificados e atacados.

Não falamos aqui da identificação, pela enésima vez, de limites já verificados em outros contextos da história – qualquer escolástico da revolução conseguiria fazê-lo com duas horas de pesquisa na internet e uma redação inflamada. Não se trata, tampouco, de propor a agitação por meio das clássicas, avançadíssimas e desgastadas palavras-de-ordem que, por isso mesmo, isolam lá adiante quem as agita.

Trata-se de que estes companheiros com maior acúmulo e, portanto, consciência mais alargada sobre os limites históricos do capitalismo, possam identificar, nas lutas em que estão inseridos com outros companheiros, até onde sua experiência comum permitiu identificar limites concretos, atuais e palpáveis das lutas, e até onde é possível ir sem desencadear seu descolamento da maioria. Trata-se, igualmente, de avançar nas conquistas (e não só nas lutas, pois radicalização sem conquista é sinal de isolamento) e testar estes limites na prática, até que sua ruptura se mostre possível – e se tenha não somente a ousadia, mas também as condições necessárias para efetivá-la.

É no contexto de lutas que reivindiquem mais do que já se conquistou, e simultaneamente questionem o custo político das atuais conquistas materiais e culturais e apontem para o esgarçamento e ruptura dos limites das concessões capitalistas, que as incontáveis práticas do “autonomismo” podem fazer algum sentido. Do contrário, não passam de tapeação, mimimi, quatchá-quatchá de quem quer se afastar ao máximo da luta de classes – e, por isso mesmo, enfraquece a luta dos trabalhadores.

É à reflexão sobre estas questões, na verdade pontos iniciais de um debate mais complexo, que convidamos quem está na luta, porque os tempos do porvir não estão para brincadeira. E que este debate possa frutificar lá onde se faz mais necessário.

A série Reflexões sobre a autonomia foi publicada em 6 partes.

2 COMENTÁRIOS

  1. FELIX GUATTARI entrevista LULA (*)
    São Paulo, 01/9/1982, o “intelectual burguês branco ‘de esquerda'” (Guattari) e um espécime conspícuo dos “pobres infelizes subeducados” (Lula) trocam figurinhas.(**)
    Suely Rolnik, porta-bandeira sem mestre-sala, faz a última e quase desnecessária pergunta.
    (*) editora brasiliense, 1982
    (**) ver CITANDO… CHARB [passapalavra – maio 1, 2015]

  2. a etapa de conflito social inaugurada em 2013, e especialmente a “saída do armário” dos setores da extrema-direita jogou na cara de muita gente que o senso comum não basta mais. Quem ficar no senso comum vai ser levado pela onda. Pressionados pelo contexto, muitos terão que levar a sério pensamentos e reflexões que antes pareciam trabalho superficial levar a cabo.
    Afinal, o marxismo serve para quê? A quê vem a importar a história das lutas dos trabalhadores?
    Pois tanto a luta sem o pensamento, quanto o pensamento sem a luta, são terreno estéril. Também o é a autonomia sem o classismo, parece ser a mensagem do passapalavra.

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