A sociedade dominada pelos imperativos do capital configura-se como uma sociedade de proprietários de mercadorias, ou seja, de Sujeitos de Direito, titulares e destinatários do máximo de pretensões possíveis, vinculados por pretensões recíprocas. Por Diego Polese
Recapitulando o essencial da forma-mercadoria, temos que a configuração fundamental das relações de produção entre as unidades econômicas privadas baseia-se na forma da troca, isto é, na igualação dos valores trocados e, em última análise, na igualação das próprias pessoas que dela participam. Deste modo, a vinculação entre os produtores de mercadorias enquanto sujeitos econômicos iguais, autônomos e independentes configura-se como expressão material “espontânea” da relação de produção e de circulação da sociedade capitalista. As relações jurídicas, não obstante, se imbricam com as relações sociais de produção e troca, por consequência da interposição do elemento da “vontade” entre as partes.
Piotr Stučka, Comissário do Povo para Justiça no início da tentativa da construção socialista da União Soviética e posteriormente exercente do cargo de Presidente do Supremo Tribunal do Estado, em seus estudos para elaborar uma ciência do Direito que identificasse como ele se manifesta sob o jugo do capital com vistas a encontrar respostas para uma questão-chave do processo de transição socialista – “há a possibilidade de existência de um direito socialista?” – afirmou que o Direito destrincha-se em três formas: a concreta, a abstrata (legal) e a ideológica.
A forma jurídica concreta, segundo a concepção de Stučka, é a que coincide necessariamente com as relações sociais de produção e circulação. Logo, quando se troca certa mercadoria por outra (por exemplo, entre a força de trabalho e salário, entre um valor de uso e dinheiro, etc.) necessariamente interpõe-se na relação um elemento potencialmente jurídico: a “vontade” (ainda que ela não seja necessariamente livre). Assim, o fato de a relação social ser concomitantemente econômica e jurídica torna-se extremamente importante para a sobrevivência do sistema do capital, porque encobre o fato de que as trocas são desiguais, por meio da simples equiparação das vontades contrapostas.
O movimento direito encontra sua dinâmica em suas formas concretas, ou seja, sem a participação imediata do aparato estatal, o qual somente visa: 1) garantir e proteger tal relação; 2) operar sua positivação quando as formas concretas conseguem adquirir um razoável grau de universalização nas relações sociais de produção e circulação (ou quando possui essa tendência); 3) intervir na relação por meio da concepção de direitos e garantias (forma-legal) conformados para os ciclos da mais-valia relativa, mantendo a reprodução da lógica capitalista.
A forma jurídica concreta, diga-se, detém a primazia em relação à forma legal, apesar de no curso da história, especialmente após o final da segunda guerra mundial, a última forma jurídica ter adquirido uma importância cada vez maior, uma vez que o capital necessita – e clama – por padrões formais de normatividade que proporcionem estabilidade para que os valores produzidos no âmbito de suas relações de produção se realizem. A relação entre forma jurídica concreta e forma jurídica legal, portanto, remete-nos à metáfora base e superestrutura, já que a primeira está imbricada às relações de produção da base material, enquanto a outra possui feições superestruturais, que interage com a forma-concreta e tem o condão de até modificá-la, mas sem nunca solapar a lógica da equivalência.
Isso quer dizer que a forma jurídica concreta pode regular ab initio as relações sociais de produção quando estas estão em seu processo de germinação, sem que ocorra a sua absorção pelos aparelhos institucionais do Estado. A positivação do Direito ocorre posteriormente, ou seja, somente quando as relações pré-existentes se expandem – ou há fortes indícios do aparecimento das correspondentes relações em um futuro imediato ou a tendência para que isso ocorra –, de forma a tornar necessária sua positivação simplesmente para assegurar a ordem de reprodução de tais relações, agora desenvolvidas sob o véu legalista.
O cerne do fenômeno social objetivo do Direito provém, assim, dos fatos concretos e, portanto, da lógica da forma jurídica concreta.
Algumas instituições políticas e jurídicas existem independentemente das relações de produção, ainda que ajudem a sustentá-las e reproduzi-las; e talvez o termo ‘superestrutura’ devesse ser reservado para elas. Mas as relações de produção em si tomam a forma de relações jurídicas e políticas particulares – modos de dominação e coerção, formas de propriedade e organização social – que não são meros reflexos secundários nem mesmo apoios secundários, mas constituintes dessas relações de produção. A ‘esfera da produção é dominante não no sentido de se manter afastada das formas jurídico-políticas ou de precedê-las, mas exatamente no sentido de que essas formas são formas de produção, os atributos de um sistema produtivo particular. (WOOD, 2011, p. 33)
A reprodução societal do capital está, assim, inerentemente vinculada às formas jurídicas, sendo decorrência do próprio sistema a universalização das mesmas para proporcionar garantias para o dinamismo das relações de produção que conduzem ao acúmulo das riquezas em poucas mãos. Portanto, a forma jurídica é indispensável para o bom funcionamento do metabolismo social sob o controle do capital, uma vez que visa que as relações sob sua chancela se deem com o mínimo de interrupções possíveis, além é claro de funcionar como conformador/assimilador das possíveis contestações ao poderio do capital.
Destarte, o fato de a exploração do trabalho ser feita por meios econômicos, mediatizado pelo Direito (em especial, o contrato), ao invés de exercer sua dominação direta por meios políticos, torna-o a forma mais sofisticada de exploração de classes da história:
Ele implica a separação dos produtores diretos (dos trabalhadores) dos meios de produção, na produção particular, no trabalho assalariado e na troca de mercadorias, o que faz com que a apropriação do sobreproduto seja realizada pela classe dominantes não através do uso da violência direta, mas por meio da aparente troca de mercadorias equivalentes, inclusive a força de trabalho. (HIRSCH, 2010, p. 28)
A ordem jurídica compõe-se, assim, de alicerces abstrativos cunhados durante a história pela própria forma de ser da dominação capitalista. A partir do momento em que a sociedade feudal iniciou seu processo de desintegração, o sistema de produção de mercadorias do capital concomitantemente encetou um processo de camuflagem da desigualdade substantiva que abarcava a grande massa populacional, subordinando-a aos nuances do fetichismo da mercadoria e da igualdade formal. Dessa maneira:
o argumento de Marx é que a ‘abstração’ que testemunhamos não é apenas um traço da teoria jurídica, que em principio poderia ser remediado através de uma solução teórica adequada, mas uma contradição insolúvel da própria estrutura social” (MÉSZÁROS, 2011, p. 159).
Portanto, tendo em vista que o sistema sociometabólico do capital está permanentemente orientado para a expansão irrestrita de seu domínio sobre o seu adversário histórico (o trabalho), cuida-se o Direito e a Política – concentrada ideologicamente no âmbito do Estado – na interligação de suas formas para assegurar a apropriação privada da mais-valia por parte das personificações do capital. O Direito, aliás, tratado como ‘fonte da justiça’, cujo fundamento material é a forma-equivalente advinda da forma-mercadoria, acaba produzindo na consciência dos homens a doce ilusão de legitimidade do sistema, ajudando a dominação capitalista a se manter quase que incólume por tempo relativamente considerável.
Expostos tais pontos, passemos aos elementos configuradores da forma jurídica concreta.
Sujeito de Direito
Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. Explica Marx:
As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. (1983, p. 209 – grifos nossos)
Desse modo, configura-se a sociedade dominada pelos imperativos do capital como uma sociedade de proprietários de mercadorias, ou seja, de Sujeitos de Direito, titulares e destinatários do máximo de pretensões possíveis, vinculados por pretensões recíprocas. Portanto, nada mais representam do que a propriedade encarnada em uma Pessoa, o que fez Marx utilizar-se do termo “personificação do capital”.
A teoria econômica de John Locke, aliás, somente declarou o que o próprio processo histórico estava cunhando, uma vez que definia a propriedade como união de vida, liberdade e bens [1], ou seja, como uma pessoa humana que possui a propriedade de si mesma e, portanto, capaz de alienar a si mesma. Bernard Edelman, por sua vez, partindo de outros argumentos e de uma matriz conceitual totalmente distinta de Locke, situando o sujeito de direito no terreno histórico e, portanto, nas estruturas cunhadas pelo capital para a reprodução de si mesmo, expõe no mesmo sentido:
O que quero demonstrar é que o sujeito de direito, na sua própria estrutura, é constituído sobre o conceito de livre propriedade si próprio; é que esta Forma, que é a forma-mercadoria da pessoa – o conteúdo concreto da interpelação ideológica a pessoa como sujeito de direito -, apresenta este carácter, inteiramente extraordinário, de produzir em si, isto é, na sua própria Forma, a relação da pessoa com ela própria, a relação do sujeito que se toma ele próprio como objeto. Este caráter de facto espantoso, designa a relação jurídica de si consigo; índica que o homem investe a sua própria vontade no objeto que ele se constitui, que ele é para ele próprio um produto das relações sociais. O que vou pois descrever, definitivamente, é a necessidade para a pessoa humana de tomar a Forma Sujeito de Direito, isto é, em última instância, de tomar a Forma geral da mercadoria. (1976, p. 93)
Assim, a atribuição de subjetividade jurídica é indispensável para assegurar a reprodução segura das relações de exploração mediatizadas pelo capital, já que comporta a circulação de vontades aparentemente livres e iguais para a troca das mercadorias. A esfera da circulação, então, é a única esfera em que o homem aparece livre, apesar de na verdade estar sendo compelido, tal qual na esfera de produção, a participar de tais relações. Ele próprio leva a si mesmo ao mercado, pois não passa de uma mercadoria que precisa vender-se para realizar-se, tal como a mercadoria-coisa que precisa ser trocada para que o valor seja realizado e o capitalista consiga seu almejado lucro. A circulação abole todas as diferenças, pois todo sujeito de direito é igual a outro sujeito de direito, uma vez que ambos colocam-se como vontades, ou seja, como equivalentes.
Quanto a este ponto, Celso Naoto Kashiura Júnior faz uma interessante analogia do sujeito de direito como uma máscara que o indivíduo é impelido a vestir para participar das relações com o outro:
[…] o sujeito de direito não passa de uma ‘mascara’ que iguala abstratamente indivíduos ontológica, social e culturalmente diferentes – ‘mascara’ sob a qual se ‘esconde’ um indivíduo concreto. A função desta ‘mascara’ é justamente fazer ignorar o que permanece por detrás dela, é dissipar as diferenças para que, no plano das relações jurídicas, todos os indivíduos se coloquem num mesmo patamar, isto é, para que todos se reconheçam como semelhantes e não-dependentes entre si. (2009, p. 61)
Por isso que a mercadoria e o sujeito de direito são as duas facetas da mesma relação social, qual seja, a relação de troca:
Tudo que importa à troca é que as mercadorias sejam referidas umas às outras em proporções determinadas de acordo com uma ‘medida comum’, o valor, que instaura uma espécie de ‘fungibilidade universal’. No outro extremo, importa que os portadores das mercadorias, agentes da troca, sejam referidos uns aos outros em termos de igualdade abstrata, o que implica dizer que também entre os homens se instaura uma ‘fungibilidade universal’: pouco importa quem é o homem que concretamente traz a mercadoria ao mercado, importa apenas que a traga e que, para tanto, esteja vestido com a ‘mascara’ do sujeito de direito. (KASHIURA JÚNIOR, 2009, p. 61).
Bernard Edelman, por sua vez, ao explicar a forma jurídica concreta também pelo prisma do seu constituinte-chave, “o sujeito de direito”, remete-nos à dialética entre produção e circulação, a qual segundo seus ensinamentos possui o condão de explicar toda a problemática jurídica dos modos de produção da vida material, seja o asiático, escravista, feudal ou capitalista. Segundo sua teoria:
A universalização da forma sujeito de direito, fenômeno determinado imediatamente pela circulação, é tornada possível pela e, ao mesmo tempo, torna possível a produção capitalista. Quando todos se tronam sujeitos de direito, todos se tornam consumidores em potencial, vendedores em potencial e, principalmente, potenciais fornecedores de trabalho, no preciso esquema em que o trabalho é assimilado no capitalismo: como trabalho abstrato, mercadoria a ser livremente vendida e comprada no mercado através pactos voluntários entre sujeitos de direitos livres e iguais. (1976, p. 69)
Em outras palavras: o fato de a produção do tipo capitalista implicar no afastamento imediato dos produtores diretos dos meios de produção necessários torna crível a propagação universal do sujeito de direito no âmbito do mercado. A produção, contudo, é inimaginável sem o processo de circulação, já que ela pressupõe a última, estando ambas intimamente interligadas de forma indissociável. A circulação das mercadorias, especialmente da força de trabalho, a qual necessita ser perpetrada livremente para depois aparecer no processo de produção agrilhoada sob o comando incontestável do capital, torna todos os indivíduos sujeitos de direito e obrigações. Ou seja, a forma-mercadoria – fonte equalizadora dos processos de sociabilidade alienados do capital – traspõe suas marca indelével para o sujeito de direito, tornando todos consumidores e vendedores em potencial de qualquer coisa, sobretudo de sua força de trabalho. Os sujeitos de direito voluntariamente se colocam à disposição da exploração.
Não há liberdade e igualdade, simplesmente porque as relações estabelecidas são na verdade desiguais e independem da vontade consciente dos indivíduos que nela embrenham-se. São impostas às pessoas por forças materiais objetivas que desde a sua concepção convivem com elas. A liberdade e igualdade do Sujeito de Direito só pode ser a mesma da propriedade privada: a liberdade de explorar e abusar do seu semelhante para seus próprios propósitos, que por sua vez não são livres. Depreende-se, portanto, que a igualdade e a liberdade produzida pelo sistema exploratório do capital têm como produtos a escravidão e exploração do homem pelo homem.
O papel do Direito, de tal modo, está diretamente relacionado à relação que o valor de troca estabelece com a base real da produção. O valor de troca apareceu inicialmente na história humana como constituinte exclusivo da esfera de circulação, não integrando nem interagindo imediatamente sobre a produção. O Direito Romano, explica Karl Marx em seu “Contribuição à crítica da economia política”, assenta-se exatamente das determinações do processo de circulação simples do valor de troca:
Tendo se desenvolvido no mundo antigo, pelo menos entre os homens livres, as diversas fases da circulação simples, explica-se que em Roma, e especialmente na Roma imperial, cuja história é precisamente a da dissolução da comunidade antiga, se tenham desenvolvido as determinações da pessoa jurídica, sujeito do processo de troca; assim se explica que o direito da sociedade burguesa aí tenha sido elaborado nas suas determinações essenciais e que fosse defendido, sobretudo em face da Idade Média, como o direito da sociedade industrial nascente (1984, p. 146)
Assim, a partir do desenvolvimento dos processos de trabalho alienados, o valor de troca foi avançando e associando-se cada vez mais à esfera produtiva-material, a ponto de se tornar a mediação fundamental para reprodução do capital.
Relação Jurídica
A compreensão exata da relação jurídica é elemento-chave para o conhecimento da Forma Jurídica Concreta na sociedade sob a autoridade do Capital e do Estado, uma vez que somente nela o Direito realiza seu movimento. Unicamente por meio dela é que os sujeitos de direito se projetam e os direitos e deveres subjetivos se criam. Sem ela não há fenômeno jurídico algum. Os códigos, leis e todo aparato jurídico não teriam razão de ser. As relações jurídicas configuram-se como uma relação entre pessoas, ou seja, entre os sujeitos de direito e os objetos que transacionam, invertendo a realidade estabelecida pela forma-mercadoria, uma vez que sob o ponto de vista científico desta situaríamos tal relação como uma relação entre coisas mediadas pelos Sujeitos de Direito. A esta realidade Marx chamou de fetichismo da mercadoria:
O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. (1983, p. 198)
A forma jurídica, deste modo, cria uma aparência de que as pessoas é que dominam as coisas, ou seja, ela inverte a verdadeira ordem das relações para que pareça um ato de pura liberalidade das partes sustentada na igualdade dos contratantes. A única coisa que importa, portanto, no que concerne às pessoas que movimentam as coisas é simplesmente a sua manifestação de vontade. Nada mais. Esta, aliás, é o grande segredo da produção de mercadorias sob a forma capitalista: a liberdade de contratar livremente.
Celso Naoto Kashiura Júnior observa, em seu livro “Crítica da Igualdade Jurídica”, a mesma linha de pensamento aqui exposto, apontando o seguinte:
A relação de troca, que é preponderantemente uma relação entre coisas, estabelece, em seu aspecto subjetivo, a própria forma do direito. Em seu aspecto objetivo, a troca vincula mercadorias e, este vínculo é constituído com base no valor – em seu aspecto subjetivo, a troca vincula sujeitos de direito, e este vínculo, que é constituído pela vontade, é por si mesmo um vinculo jurídico (2009, p. 71)
Do ponto de vista econômico, os homens são postos somente enquanto coisas que movimentam uma totalidade de relações reificadas, que a partir do momento que se universalizam fluem como se fossem dadas naturalmente. Do ponto de vista jurídico, os homens somente são determinados a partir do momento que se oponham a uma coisa, ou seja, quando se mascaram em sujeito. Eis a análise completa da imbricação reciproca da relação de troca capitalista. Nas palavras de Pachukanis:
A vida social, ao mesmo tempo, se desloca, por um lado, para uma totalidade de relações reificadas, nascendo espontaneamente (como o são as relações econômicas: nível de preços, taxa de mais-valia, taxa de lucro, etc.), isto é, nas relações nas quais os homens não têm outra significação senão que a de coisa e, por outro lado, para uma totalidade de relações nas quais o homem somente é determinado na medida em que se oponha a uma coisa, quer dizer, é definido como sujeito. Esta é precisamente a relação jurídica. Tais são as formas fundamentais que, originariamente, distinguem uma da outra, mas que ao mesmo tempo, condicionam-se mutuamente e estão estreitamente ligadas em si. O vínculo social enraizado na produção apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas, de um lado, como valor mercantil e, do outro, como capacidade do homem ser sujeito de direito. (1989, p. 85-86)
Depreende-se, portanto, que a relação jurídica é uma sociabilidade objetivamente estabelecida, na qual o direito realiza o seu movimento real, podendo trazer para si inclusive relações sociais que possuem conteúdos outros que não o intercâmbio de mercadorias na medida em que se constituam como relações entre sujeitos de direito. O fato de a Norma Jurídica-Legal ser difundida como a criadora e fundamento-base do Direito serve tão-somente para legitimá-lo, uma vez que não pode irradiar seus efeitos sem que exista essa determinada relação social. Contudo, os nuances do direito objetivo serão objeto específico do próximo artigo. Por enquanto, debatamos.
Nota
[1] “E não é sem razão que ele procura e almeja unir-se em sociedade com outros que já se encontram reunidos ou projetam unir-se para a mútua conservação de suas vidas, liberdades e bens, aos quais atribuo o termo genérico de propriedade”. (Locke, 2005, p. 494)
Bibliografia
EDELMAN, Bernard, O direito captado pela fotografia – elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976.
HIRSCH, Joachim. Teoria. Materialista do Estado. Rio de. Janeiro: Revan, 2010.
KASHIURA JUNIOR, Celso Naoto. Critica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
LOCKE, J. Dois tratados sobre o governo. 2ºed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MARX, K. O Capital. Crítica da economia política. 3 vols. SP: Abril Cultural, 1983.
_. Para a Crítica da economia política. In: Os Economistas. SP: Abril Cultural, 1984.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. SP: Boitempo, 2002.
_. Estrutura Social e Formas de Consciência II. SP: Boitempo, 2012.
PACHUKANIS, Evgeny. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.
RUBIN, I. I. A teoria Marxista do valor. São Paulo: Braziliense, 1980.
SIMÕES, Carlos Jorge Martins. Direito do Trabalho e modo de produção capitalista. São Paulo: Símbolo, 1979.
STUCKA, P. I. Direito e Luta de Classes. São Paulo: Acadêmica, 1988.
WOOD, E. M. Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
2 x KAFKA:
I) O Messias só virá quando já não precisarmos dele.
II) Muitos se queixam de que as palavras dos sábios são sempre só parábolas, inúteis na vida quotidiana; e só esta nos é dada. Todas as parábolas dizem apenas que o incompreensível é incompreensível; e isto já sabemos. Disse um: “Porque resistes? Se obedecesses às parábolas, transformar-te-ias em parábola, e estarias livre da vida quotidiana.” Outro disse: “Eu gostaria de apostar em que isto também é uma parábola.” O primeiro respondeu: “Ganhaste.” O outro disse: “Mas infelizmente, só na parábola.” E o primeiro: “Não, na realidade! Na parábola, perdeste”.