Não se constrói mobilizações populares sem um balanço político do caráter das mobilizações passadas. Por Arthur Moura

greve03A possibilidade de greve que aí se coloca já existe como mobilização prática, com direito a repressão em Estados e municípios que não o Rio de Janeiro neste ano de 2015. No entanto, muito combatida a priori, não só pelos meios de comunicação burgueses mas também pela inoperância dos diversos setores que compõem o corpo universitário através do silenciamento das questões, a greve no Estado ainda se mostra como uma possibilidade distante. Sorrateiramente, a greve vai se impondo como necessária, mas essa necessidade raramente reflete o conjunto das forças que compõem a universidade e a sociedade.

E que necessidade é essa que se coloca a ponto de pensarmos sobre o assunto?

Para além de necessidades específicas e justas de cada setor (como reajustes salariais, por exemplo), a greve deve ter um caráter popular e classista se de fato quiser ser perene e atingir outros setores da sociedade, fortalecendo, portanto, questionamentos de ordem estrutural das relações entre capital e trabalho. A greve para resolver pequenos ajustes não fere em nada questões de ordem estrutural. Mantém, ao contrário, o seu caráter reformista, servindo tão-somente como um mecanismo tático para se angariar determinados direitos já previstos como necessário ao bom funcionamento do Estado burguês, que por sua vez organiza de um modo particular a dominação de classe. Diz Décio Saes sobre a especificidade do Estado burguês: “um tipo particular de Estado (o burguês) corresponde a um tipo particular de relações de produção (capitalistas) na medida em que só uma estrutura jurídico-política específica torna possível a reprodução das relações de produção capitalistas. Essa é a verdadeira relação entre o Estado burguês e as relações de produção capitalistas: só o Estado burguês torna possível a reprodução das relações de produção capitalistas.”

A necessidade da paralisação, portanto, está para além de pautas reivindicatórias do professorado, dos trabalhadores terceirizados, técnicos e estudantes. Parar a universidade significa, na prática capitalista, interromper o processo de produção de mão-de-obra para o mercado. A partir dessa lógica, nenhuma paralisação é legítima, sendo portanto combatida e criminalizada pelo Estado (através do seu aparato jurídico) e empresas que concentram o capital privado.

Por outro lado, o caráter popular da greve universitária tem o desafio de incorporar às paralisações gerais o público que por conta de políticas de Estado são sistematicamente excluídos das universidades federais e estaduais dando espaço prioritariamente a setores de classe média e alta. Primeiro, para se pensar uma greve hoje é obrigatório construir um debate crítico sobre as experiências anteriores, a saber, a greve geral das universidades públicas no ano de 2012. Ou seja, não se constrói mobilizações populares sem um balanço político do caráter das mobilizações passadas. Qualquer pretensão de suprimir este debate denuncia claramente o caráter fetichista da greve, colocando os segmentos de comando como instâncias-limite contra o avanço da luta social.

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E o que nos mostra a greve anterior?

A indicação de greve surgiu em 2012 primeiramente a partir de uma determinação do sindicato nacional de docentes de universidades a nível nacional (ANDES), acatado pela ADUFF a partir de orientação de enfrentamento apenas com o governo e não com a REItoria e garantido, na prática, por uma parcela muito reduzida daqueles que compõem a universidade, neste caso, principalmente pelos estudantes. Em documento produzido em 26 de junho de 2012 por um dos estudantes acampados no Acampamento Libertário de Gestões Autônomas (ALGA) da Universidade Federal Fluminense, é possível detectar algumas questões centrais do processo.

Nossas primeiras movimentações foram no sentido de pautar um início de greve que, para além de pressionar governos pelas pautas inicialmente puxadas pelos professores (reajuste, plano de carreiras e gratificações), colocasse questionamentos na base da comunidade acadêmica sobre diversas questões da universidade como: A QUEM ESTÁ SERVINDO ESSE CONHECIMENTO PRODUZIDO? POR QUE NÃO EXISTE UMA REAL DEMOCRACIA NOS ESPAÇOS DECISÓRIOS DA UNIVERSIDADE? QUE RELAÇÃO DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO ENTRE DOCENTES AUTORITÁRIA É ESSA QUE VEM SENDO CONSTRUÍDA? QUE TIPO DE CONHECIMENTO VEM SENDO PRIORIZADO NA PRÁTICA UNIVERSITÁRIA? Etc. (…) Vejo que as pautas estudantis tendem a ser enxugadas pelos comandos estudantis de greve local e nacional, que incorporam pautas generalistas e sem norte político com materialidade específica, ou seja, sem relação com as demandas por assistência estudantil e discussão da estrutura de produção do conhecimento na universidade como um todo. O que quero dizer com isso? Aliado a isso se utiliza de uma tática de greve que priorizam as cúpulas de negociações e não a alimentação das bases reais de resistência. Quero colocar também que nossos motes materiais mais objetivos como equiparação das bolsas ao salário mínimo, moradia sob autogestão dos estudantes, duração por todo o ano dos pagamentos das bolsas e diversos outros questionamentos acerca da construção do conhecimento não serão incorporados as ditas lutas nacionais dos comandos de greve, sejam os comandos dos docentes que não entendem essas questões como centrais na sua luta, sejam nos próprios comandos estudantis, formados por poucas lideranças burocratizadas e sem relação com uma base social humana e viva politicamente. (…) Outra questão importante a ser colocada é a falta de comprometimento da universidade com as escolas da comunidade ao entorno. A relação que se têm é muito pouca e na maioria das vezes burocratizada. Na maioria das vezes a relação que se estabelece através dos estudantes graduandos em licenciatura se dá no comparecimento a algumas aulas em escolas para cumprir uma carga horária e na maioria das vezes se encerra a relação nessa questão frequencial, obrigatória, burocrática e sem vida. Na maior parte do tempo a universidade contribui para que as relações que hoje existem nas escolas públicas continuem sendo das piores possíveis e que não apontam para a produção de um conhecimento escolar que sirva de fato àqueles que estão submetidos cotidianamente ao convívio escolar. A escola tem sido garantida para controlar, disciplinar aqueles corpos que ali estão e a doideira é que a universidade, além de reproduzir muitas dessas práticas em suas salas de aula, contribui cada vez mais para que o abismo entre universidade e as escolas seja cada vez maior.”

(Carta aos acampados, ex-acampados, afastados momentaneamente e a meus amigos; Acampamento de Gestões Autônomas; Universidade Federal Fluminense; 26/06/2012)

A experiência anterior mostrou, portanto, um claro desinteresse em se debater e questionar a nível estrutural todos os limites impostos pelo próprio sistema capitalista, tendo no Estado burguês o seu regulador essencial. As mobilizações de base também praticamente inexistiram, tendo por isso surtido efeito reverso no que diz respeito ao avanço na luta popular. Os interesses do professorado, que no interior das universidades se impõe como uma elite de comando às principais diretrizes a ser traçadas no âmbito político, mostrou-se também como fator de impedimento de maior lastro da greve, assim como as instâncias burocráticas representativas estudantis partidárias (PSOL, PT, PSTU, PCdoB, etc). Por fim, as REItorias cumpriram suas funções burocráticas de afastar qualquer possibilidade de democratizar e popularizar os rumos das universidades, agindo formalmente através da criminalização de ações antagônicas ao seu funcionamento, se concretizando na forma de violência policial contra estudantes, técnicos e professores. Para construir a greve é preciso construir a memória política dos movimentos sociais, assim como seus aspectos contraditórios.

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5 COMENTÁRIOS

  1. considerando que um dos motivos pelo desinteresse do estudantado nas mobilizações massivas também passa pela construção de pautas irreais e “demasiado avançadas”, em contraponto às pautas economicistas e burocráticas, pergunto:

    – uma moradia estudantil requer verba, seja para manutenção, seja para novos investimentos em infraestrutura. Reivindicações como “autogestão dos estudantes” de um espaço necessariamente vinculado a órgãos que gestionam verba pública, será que isso realmente é possível dentro de uma sociedade controlada pelas relações capitalistas?
    Será que esse tipo de fetiche pela autogestão em qualquer contexto não é também algo que afasta a possibilidade de uma construção popular e massiva?

    Me faz pensar um pouco nas consignas que certos movimentos autonomistas parecem copiar de um programa trotskista de transição: “Transporte público sob controle de trabalhadores e usuários!”… ok, soa lindo. Mas sejamos francos, tanto entre nós mesmos quanto com as massas que queremos agitar: qual é o sentido de propor isso num cenário de sistema capitalista? Alguém realmente acredita que “de pouco em pouco” vamos “corroendo por dentro”, como se o capitalismo estivesse já na UTI apenas esperando o novo chegar para entregá-lhe as chaves?

  2. tanto com relação à moradia estudantil quanto com relação ao transporte público creio que as pautas concretas são o principal, seja a reforma disso ou daquilo, seja o remanejo de linhas e a tarifa zero (mais vagas para estudantes, mais veículos, melhor comida, mais segurança, etc…)
    Tenho sim muitas dúvidas com relação à solução por meio de uma mudança de gestão quando estes serviços dependem quase exclusivamente de verbas públicas. Se hoje esta verba já é precária e insuficiente, o dia em que forem destinadas a um órgão sob controle autônomo, e portanto altamente subversivo em relação ao sistema econômico vigente, muito rápido se aproximará do zero. E o grave aqui não é a simples derrota, mas sim iludir os indivíduos que estão sendo convocados à luta com promessas de algo que é irrealizável sem mudanças estruturais mais profundas.

    Creio que ambas construções baseadas em pautas concretas tem potencial de vitória e são a base para a organização popular e de massas citada no texto. Creio que a impossibilidade de se criar ilhas de auto-gestão baseadas em verbas públicas se constitui como conteúdo ideal para os debates e formações que permitirão a estes movimentos ultrapassarem estas pautas específicas e fomentarão massa crítica para lutas estruturais de fundo, sem as quais estas pautas específicas nunca terão uma solução plena.
    Minha descrença não é relativa à auto-gestão, apenas penso que ela não deve ser encarada como um horizonte quando ela é incapaz de auto-sustentar-se. Auto-gestão de uma fábrica, auto-gestão de um transporte popular em certos bairros, auto-gestão de um centro cultural; são espaços que podem obter uma autonomia econômica que outros não podem, especialmente aqueles que foram criados nas sociedades de massas através das intervenções estatistas nos processos econômicos, tal como o transporte público e as universidades públicas.

    Para resumir, dando seguimento às reflexões propostas pelo PassaPalavra, creio que é necessário que o “autonomismo” pense a auto-gestão como um processo inserido na dinâmica econômica da sociedade, não como um voluntarismo que tenta entufar conteúdos comunistas-libertários em supostas fissuras do capitalismo.

  3. Lucas,

    Acho que a redução das verbas para próximo de zero em situação de controle popular é uma suposição apressada sua. Só aconteceria isso se as lutas esfriassem e o fato de ter controle popular do transporte não servisse de estímulo a mais exigências, a uma maior ofensiva das lutas visando o transporte de qualidade, novos ônibus e metrôs, novas relações laborais nesses veículos autogeridos etc. tal como a receita do Marx de exigir sempre mais, até chegar no impossível de ser concedido (na Mensagem à Liga dos Comunistas em 1850). Aliás foi com essa msg que o Passa Palavra concluiu a série sobre autonomia. Você fala que seria iludir as pessoas com algo que é irrealizável sem mudanças estruturais profundas, mas as mudanças estruturais profundas virão assim, passo a passo, com momentos de avanço das conquistas e momentos de recuo, momentos de aceleração da história. Esse semestre brasileiro, por exemplo, está sendo um momento de mudanças estruturais profundas, com todas essas conquistas da direita que estamos assistindo atônitos, em especial a da terceirização e a retomada de direitos trabalhistas históricos. O outro lado da moeda, que sei que vc não defenderia, seria iludir as pessoas dizendo que basta uma tomada do poder de Estado para que todas as mudanças substantivas nas questões cotidianas venham depois. Essa sua questao, portanto, a meu ver toca no central do debate sobre tática e estratégia hoje em dia, já que o que mobiliza e leva as pessoas a lutas são as pautas específicas e “menores”, que muitas vezes são irrealizáveis sem as mudanças estruturais profundas, sendo que uma bandeira de mudança estrutural profunda não mobiliza ninguém a não ser bolcheviques convictos etc.

    Na sequência do primeiro parágrafo vem uma boa reflexão sua, com a qual concordo, com exceção de que você não está ponderando o conteúdo pedagógico dessas lutas que porventura não se sustentem economicamente. É a questão de “ganharmos uma derrota”. Nas lutas os trabalhadores experimentarão novas práticas, e só de ver que são possíveis já temos uma vitória, para além de por exemplo a experiência de autogestão do transporte fracassar e tudo voltar aos gestores privados. É pouco, mas é isso que temos, e é assim que tem que ser: a questão não é acertar ou errar nas escolhas que fizermos durante a luta, sobre a maior ou menor proximidade com o Estado, a forma de financiamento da iniciativa, ou coisa assim. O central é de onde vem essa escolha: se vem dos trabalhadores autonomamente organizados, errar já é um ganho. Claro que pro trabalhador essa perspectiva de longo prazo importa menos, ele quer é resultados, e resultados imediatos, mas em todo caso não dá pra saber se os resultados serão efêmeros ou não, se a mudança será pontual ou abrangente e estrutural, antes da própria luta acontecer, por isso discordo da sua colocação sobre esse tipo de fomento desse tipo de lutas ser uma forma de iludir os trabalhadores e “entufar conteúdos comunistas-libertários em supostas fissuras do capitalismo”. Esses conteúdos brotam ali porque a realidade objetiva impõe eles ali, quando o arcabouço político menos radical se mostra insuficiente pra explicar e pra fundamentar a prática social no sentido que ela precisa andar se quiser resultar nos ganhos almejados imediatamente, e também no longo prazo.

    Enfim, no básico concordei com quase todos os seus apontamentos, em especial o conclusivo: que o autonomismo pense a autogestão “como um processo inserido na dinâmica econômica da sociedade”, mas toda transição se dá a partir de dentro, e o aspecto pedagógico das lutas não pode ser diminuído, pois é ali na prática que se inventa a janela.

  4. Eugênio,
    não entendo como “auto-gestão” entra necessariamente como pauta específica. Da mesma forma, não entendo porque questionar a autogestão como horizonte de luta seria diminuir o aspecto pedagógico da luta. Seria essa consigna a única capaz de gerar luta e aprendizagem?
    Entendo que gratuidade, melhores serviços e tudo o mais que signifique para o trabalhador ou para o estudante uma melhor qualidade de vida, tudo isso são pautas específicas, concretas e que mobilizam inclusive espontaneamente.
    Exatamente como já ouvi/li black blocs pedindo a “auto-gestão” na Sabesp como proposta frente à crise hídrica em São Paulo, me parece que muitos militantes autonomistas veem na auto-gestão uma fórmula para superar a dicotomia “reforma-revolução” através das bases. A auto-gestão de qualquer espaço seria uma autêntica mini-revolução, já que esperar ou se organizar apenas para a “grande revolução” seria um projeto falido.

    Me parece se tratar de uma falsa resposta, e especialmente nestes casos de órgãos e empresas públicas, um erro estratégico e principalmente de compreensão a respeito do capitalismo (partindo do principio que para sermos anti-capitalistas consequentes temos que entendê-lo). O erro de leitura é não ver que se tratam justamente de espaços sociais que NÃO deveriam produzir valor (como dizem as faixas contra a mercantilização da educação, do transporte, da água, etc), e que então só podem se sustentar a partir dos recursos extraídos de outras áreas da economia produtiva. Me interessaria conhecer casos concretos de serviços públicos estatais sob controle de trabalhadores, pois eu nunca ouvi falar disso nos regimes capitalistas em situação estável (estou pensando nas possíveis exceções da espanha em plena guerra civil ou no chile de allende).
    Não acho que reivindicar a revolução socialista seja incompatível com a construção de base por pautas concretas, também me parece que reivindicar a auto-gestão não garante nenhum conteúdo anti-capitalista, especialmente quando se trata de auto-gestões financiadas pelo circuito capitalista da economia.

    E definitivamente os trabalhadores autonomamente organizados é o que importa. Mas são eles que levantam o tema da auto-gestão como solução para estes serviços (afinal, quem garante que trará melhorias para o transporte, para a moradia estudantil, se a fonte de dinheiro lhes é alheio)? Ou são os militantes autonomistas que trazem essa consigna devido à sua linha política? Os militantes e os trabalhadores autonomamente organizados não podem também pensar a revolução sem serem bolchivistas ou partirem para a luta armada?
    Sinto que auto-gestão serve para muitos como resposta pronta e acaba bloqueando a vista para horizontes mais importantes, tendo sempre em mente que o horizonte é algo que contemplamos à distância, mas sem o qual não temos como guiar-nos.

    E para voltar ao texto, penso que se trata de um exemplo de pauta que afasta estudantes que não estão inseridos no movimento estudantil, muito menos nas ideias e estilos de vida dos setores que costumam propor a auto-gestão estudantil em serviços dos quais estes outros estudantes dependem. A confiança virá de onde, da “proposta mais libertária”? Ao invés de fortalecer o movimento estudantil frente à massa de estudantes, construindo um movimento forte e de referência, um problema inclusive relatado em outro texto recentemente postado aqui no PP (http://passapalavra.info/2015/04/103717), é comum ver setores autonomistas/anarquistas que preferem criar espaços livres de agrupações políticas opositoras na intenção de fazer surgir do nada espaços de auto-gestão. De volta ao gueto-anarco/autonomista.

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