Os detalhes da tragédia foram silenciados pelos meio hegemônicos de comunicação. O Estado também silenciou seus meios de comunicação alinhados. Frente ao silêncio, um grupo cria a Rede de Trabalhadores. Primo Jonas entrevista dramaturgo Emiliano Montes
Em Buenos Aires ocorreu um acidente trágico de trens em fevereiro de 2012, em que 52 pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas. O episódio ficou conhecido como “a tragédia de Once”. Os detalhes da tragédia foram silenciados pelos meio hegemônicos de comunicação. O Estado também silenciou seus meios de comunicação alinhados. Frente ao silêncio, um grupo cria a Rede de Trabalhadores. Nesta entrevista realizada com um dos integrantes do projeto Ferrodrama, Emiliano Montes faz reflexões sobre teatro e militância a partir da peça mais recente que escreveu: Vestígios.
Primo Jonas: O que é o Ferrodrama, como você o definiria, o que fazem?
Emiliano Montes: Aqui em Buenos Aires ocorreu um acidente trágico de trens há alguns anos que ficou conhecido como “a tragédia de Once”, onde morreram 52 pessoas e centenas ficaram feridas.
Uma das coisas que acontecem a partir desse episódio foi que o grupo Cirigliano – responsável pela concessão da linha Sarmiento, onde ocorreu a tragédia -, começou a a destruir os registros e documentos que tinham a ver com a má aplicação dos subsídios que o Estado argentino repassava a eles (ou seja, o sucateamento planificado da linha) em uma fábrica que era uma das responsáveis pela reparação dos trens, a EMFER, papéis que tinham a ver com a causa, balanços empresariais, etc; a típica estratégia das empresas capitalistas de apagar as pistas de suas sujeiras.
Os trabalhadores da EMFER encontraram o depósito da fábrica fechado, uma situação estranha, então abrem o cadeado e descobrem que estavam queimando papéis. O que eles fizeram? Resgataram estes papéis, pois consideraram que eram provas do que havia ocorrido na tragédia, e os apresentaram à justiça. A justiça então aceita estes documentos, mas a patronal, como vingança, arma processos judiciais contra os trabalhadores como o roubo da propriedade privada dos papéis, além de várias outras coisas absurdas apenas para colocar pressão (alguns companheiros tem mais de 7 processos), já que é uma fábrica com uma forte organização de base.
Como esta tragédia envolve o Estado, muitos dos detalhes foram silenciados pelos meio hegemônicos de comunicação, já que estes representam os interesses dos grupos econômicos que justamente negociam com o Estado, que também silenciou seus meios de comunicação alinhados. Frente a este silêncio, um grupo de companheiros e companheiras que se organiza na Rede de Trabalhadores, que militam no que seria a organização sindical de base, buscam uma estratégia de difusão pela absolvição dos processos feitos contra os delegados. Surgiu então de algumas companheiras a ideia de “sair do tradicional”, que seria o panfleto, o informativo, tradicionais da militância, e logo veio a ideia de usar o teatro como uma ferramenta de comunicação que tem essa potencialidade da comunicação artística.
A partir disso, começam a convocar entre companheiros, aparece o pai de uma companheira que faz a dramaturgia, que tem a característica de que foi feita com constante consulta aos delegados dos trabalhadores da EMFER. Eles viram os ensaios, corrigiram dados, terminologias que estavam erradas na dramaturgia, já que mais além da comunicação do teatro, temos que ter um tato com o que vamos dizer, uma só palavra por exemplo pode mudar todo o significado da coisa. Então todo esse trabalho prévio de ensaios, de consulta com o corpo de delegados, de outros militantes que liam a obra, se forma então o grupo e a intervenção teatral que se chama Ferrodrama, que tem por característica a presença de pessoas que simpatizavam com a difusão do tema da libertação dos trabalhadores. Não é o braço comunicativo de nenhuma organização, é basicamente uma campanha pela absolvição na qual o teatro é uma ferramenta. Uma “ferramenta-para”, não uma ferramenta em si mesma. Tendo isso claro, fez-se a convocatória para pessoas próximas ao grupo que tivessem sensibilidade com a causa, o que resultou em um grupo com experiência prévia de teatro e outras que não, um teatro comunitário, vem quem tem vontade de participar, mas com esse objetivo particular.
P.J.: Como é a experiência de fazer a peça em estações grandes de trem como em Retiro e Once?
E.M.: Na realidade o grupo tem vários públicos, é uma intervenção teatral que pode ser feita em lugares fechados ou na rua, com pouca cenografia, pouco vestuário, o que permite a velocidade de atuar e ir embora. No que são os espaços abertos, já fizemos em praças, que é um público que simplesmente está na praça e se encontra com isso; também como você diz, em estações de trem, Retiro e Once; e também em lugares fechados, geralmente ligados com espaços de apoio e solidariedade a esta causa, como por exemplo eventos de arrecadação de fundo de lutas para a absolvição dos petroleiros de Las Heras ou pela luta dos motoristas da linha 60. Então são vários públicos.
O público da classe trabalhadora é um público que gratifica o que fazemos, tem a ver com sentir que estamos sendo solidários com eles e eles conosco. Depois está o que seria o público da praça, que seria um público indiferente, e acabam ficando apenas aqueles que se solidarizam com o conteúdo do que estamos fazendo. Ou seja, é uma massa de pessoas que vai e vem, mas ao ser um lugar que claramente não está feito para esse tipo de intervenção teatral e que as pessoas estão na praça curtindo sua tarde, a repercussão é menor. Os que se sensibilizam em geral ficam para conversar depois, o que é muito bom, mas os que ficam durante toda a intervenção são bem poucos. Finalmente, está o público dos usuários, trabalhadores, da linha Sarmiento, da linha Roca, das diferentes estações. Nesses lugares ocorre a ruptura da rotina, isso provoca que as pessoas se aglutinem na expectativa dessa ruptura. Então é um público que se aproxima mais.
P.J. :A polícia tirar vocês de lá ou incomoda de alguma forma?
E.M.: Não porque geralmente, quando fazemos essas intervenções nas estações, fazemos em rede com outras organizações, por exemplo a “Autoconvocados pelos Trens” ou a “Usuários Organizados do Sarmiento”, assim somamos gente que não é apenas o grupo da peça. Existe uma preparação para a segurança que é feita entre nós. Claro que as forças de segurança algumas vezes chegam, mas também muitas vezes não. Um bêbado pode ser mais perigoso. Já tivemos uma ocasião em que um bêbado pôs em risco uma intervenção. Mas isso tudo só é possível porque está estruturado em rede, ou seja, existe uma inteligência pensada para a apresentação, que é maior do que quando fazemos num lugar fechado. Além do que, é um público que de repente pode se incomodar com alguma coisa que dizemos, pois a apresentação tem características claramente subjetivas, de difusão das injustiças que estão sofrendo os trabalhadores e com uma postura clara em favor da organização de base e da luta operária. Mas geralmente as pessoas que se incomodam apenas ficam em silêncio e vão embora. Com certeza é sempre mais gratificante atuar para esse público, infelizmente por limitação do grupo não podemos fazer muitas mais vezes, mas a potência é principalmente essa de chegar ao usuário do trem.
P.J.: Falando agora do seu trabalho pessoal como ator e dramaturgo, na sua peça Vestígios existe um contexto de crise da estética, da comunicação. São dois personagens que parecem não encontrar as palavras, não sabem nem como buscá-las ou por que buscá-las. Como funciona então o teatro nesse contexto onde a comunicação está inviabilizada?
E.M.: Vestígios tem uma característica de ser uma obra de teatro que coloca a questão sobre o que estamos fazendo com a militância, com a linguagem, com o teatro também. Se bem que não é uma obra que seja uma representação de algo, ela é vivenciada a partir deste aspecto. É um debate com a gente mesmo, inclusive aqueles que fazem a peça. Quando eu começo a escrevê-la, ela surge frente à impossibilidade de sentir que o que eu faço pelo teatro possa chegar a transcender. Amigar-me com a derrota de que o teatro na atualidade transcende muito pouco. Partindo dessa derrota, abrem-se outras derrotas, por exemplo a derrota como humanidade. Tudo é tão cíclico, né, vem a crise, depois vem o progressismo, depois vem a direita e assim vai. Com o teatro as coisas também são cíclicas, eu vejo que o artista que costuma falar pelo discurso da arte não se coloca num lugar de derrota, se coloca num lugar de iluminado, e eu não compartilho isso eticamente de forma alguma.
Ao recusar a posição do iluminado, expomos nossas contradições: estou todos os dias tentando criar algo novo, mas sei que já está tudo inventado. Por que o faço? Porque eu choro, porque dói não chegar à essa invenção nova, se realmente essa invenção nova está num coágulo que ainda é alheio a um sujeito artista. Mas como artistas, nós seguimos pensando que podemos inventar esse coágulo. Então no texto da peça aparece essa ideia de que da decomposição das coisas pode surgir algo novo. Eu como dramaturgo aceito isso, mas ao mesmo tempo, quando escrevo a peça estou tentando fazer algo novo, me entende? Então é colocar a contradição a partir da derrota. Colocar o silêncio como linguagem, e também a ruptura do relato lineal. De volta a questão do iluminado, os artistas se colocam numa posição de que estão comunicando algo. Eu não comunico nada, se tenho sorte, posso gerar perguntas, é isso o que eu busco. Porque a pergunta gera inquietudes e é movimento, enquanto que a resposta é estática, serve para o ego e para a masturbação de nós mesmos. A pergunta nos joga na questão de quê caralhos estamos fazendo; que faço com meu tempo, se me mobilizo, se não me mobilizo, quando sim e quando não.
P.J.: Essa ruptura do linear, esse questionamento também tem a ver com o momento na peça onde ocorre uma ressurreição, uma personagem que estava no cenário escondida o tempo todo e que aparece fazendo um discurso revolucionário. Isso tem a ver com essa ruptura? Você vê isso como uma questão histórica da militância adormecida, com a queda do muro de Berlin e o neoliberalismo, ou seria algo mais para uma ruptura subjetiva do militante que desperta para a luta?
E.M.: Olha, quando eu escrevi a obra, não sei te dizer. É uma ressonância que eu tenho, que certamente tem um corpo ideológico por trás. Não podemos idealizar que eu o entendo justo quando escrevo, não. Eu vou entendendo o que escrevi com o passar do tempo, na medida em que a obra vai ganhando vida. A tua pergunta faz com que eu me questione sobre isso, então a partir da pergunta vou pensar uma resposta.
O corpo está na cena, mas não o vemos porque também não vemos muitas coisas. Quando achamos que temos a verdade, por mais que ela seja uma verdade potente, de que vamos transformar o mundo e tudo o mais, não deixa de ser uma verdade que é uma bolha. Então, aqueles dois personagens que estão presos em cena por escolha própria, nisso de pensar sobre um mundo melhor e sobre o que os levou à derrota, não deixam de ser pessoas que estão em uma bolha. Não se salva ninguém na obra. Estes personagens que se poderia dizer que contagiam, em realidade estavam ignorando um corpo que sempre esteve no cenário e nunca o viram. Este corpo é um corpo militante, que tem uma ideologia parecida com a deles mas com um foco na ação, de sair ao campo de batalha. A ressurreição é claramente um evento simbólico, é a ressurreição dos fracassos de todos os dias do militante, da verdadeira militância, não da militância consumista que busca a vitória imediata. Sim a militância que constrói e que muitas vezes é derrotada, pois por ser uma busca tão profunda… digo, são muitas as buscas, mas estou me referindo à militância com ideais libertários, na qual é frequente nos encontrarmos com derrotas e fracassos, e eu creio que são mortes. Então este personagem que ressuscita representa todos aqueles que apesar de tudo estão vivos. Por isso diz o texto “Você sabe quantas mortes tem meu corpo? E sigo.” É como um luto em vida, e não uma ressurreição de um lugar iluminado, cristão. Tem a ver com uma militância que não é plataformista, que busca ser o voto; mas sim aquela que apesar de tudo segue, e busca uma transformação verdadeira. E pode, sim, ter algo a ver com os anos 70 talvez, com essa militância que foi morta pelo neoliberalismo, mas eu acho que o progressismo também mata a militância. Porque senão sempre falamos do neoliberalismo, e eu considero que o progressismo também mata ela. Então seria resgatar ideais libertários, que estão presentes mas nos fazemos de desentendidos. Esta personagem os expõe claramente. Ocorre uma ruptura da linguagem, que era uma linguagem do contraditório, fragmentado, a algo outro que é claramente de exposição, uma agitação claramente política, com um corpo ideológico pontual e que é claríssimo. Essa ruptura estética o que faz é expor aos outros dois personagens que eles estiveram toda a obra pensando em como fazer um mundo melhor, e aparece a questão clássica de quando afinal então é o momento da ação. Por quê acreditamos que temos a verdade, por quê não duvidamos de nós mesmos. O que a personagem então propõe é isso, a ação imediata, dizendo algo como “se já sabemos tanto, por quê não agimos?”. Afinal, o que fazemos com o que sabemos? Já sabemos que vamos morrer, o que fazemos com relação a isso? E não ficar apenas nisso de que a vida é um fracasso, que é o começo da obra. Então, houve 30.000 desaparecidos. E então…? Institucionalizamos a cifra, como se tem feito? É que não são apenas 30.000, são muitos mais, que são os desaparecidos da democracia. E disso não se fala. É aquela satisfação da resposta que falávamos antes, de levantar a bandeira dos 30.000 como algo que não ocorre mais. OK, então eu sei o que ocorreu nos anos 70, mas e aquilo que ocorre agora? É ver o corpo ideológico como um corpo, não como uma cabeça.
P.J.: Colocar em uma cena o corpo militante, tirá-lo da abstração da linguagem.
E.M.: Exatamente. É uma crítica a nós mesmos, porque também quando eu escrevi a peça eu quase não militava, tinha contradições que hoje eu já trabalhei, mas que é interessante justamente nesse sentido porque me expõe da mesma forma essas contradições. Mas tirar essa ideia de que o corpo é uma cabeça. Uma crítica também ao papel do artista, do intelectual. Ele pensa, conceitualiza… mas e então? Como se insere essa produção no campo popular? Essa grande desconexão, que segue sendo atual, não é só dos anos 70, entre o campo intelectual e o campo popular. Uma intelectualidade geralmente vinculada a um liberalismo, ainda que não o pareça. E a partir da sua pergunta, também isso de que nossa geração é órfã. Nossos avós foram os lutadores dos anos 70, aparece também uma orfandade, não estão presentes nossos pais. Talvez essa orfandade é o que me leva a fazer essa crítica à falta de corpo na ação, e esse é o desfecho da obra: os dois personagens que pensavam ser os mais avançados ficam expostos em sua negação final à ação. Ficam com vergonha que o público os tenha visto nessa negação.