Entrevista com os estudantes que produziram o vídeo sobre burocracia sindical e organização de base na Argentina nas últimas décadas. Por Primo Jonas

Primo Jonas (PJ): Como foi feito o video, qual era a proposta de produção de conhecimento na Cátedra onde o fizeram, qual era o papel do estudante nessa produção?

Agustina (A): O contexto do video foi o de um trabalho final para a Cátedra Aberta de Estudos Americanistas, que é uma cátedra de extensão universitária na Faculdade de Filosofia e Letras da UBA (Universidade de Buenos Aires), que tem além dos trabalhos de extensão com temáticas em educação popular, classe trabalhadora e povos originários, tem um seminário com foco também nestes temas mas voltados para a formação acadêmica dos estudantes da faculdade. Esta cátedra está em conflito com a gestão, com o governo da faculdade, faz alguns anos. Por interesses políticos querem que se deixe de dar este seminário e que a cátedra deixe de ter vida. A partir deste conflito nós e outros estudantes nos aproximamos da organização da cátedra e em 2014, ao mesmo tempo que cursávamos o seminário passamos a integrar a organização. Ela segue ativa e está preparando o seminário de 2015 [2o semestre].

José Ignacio (JI): Como dizia a companheira, com relação ao momento em que integramos a organização, a ideia era somar-se a pensar o seminário do ano seguinte. Com relação à avaliação final, era algo aberto para que os estudantes escolhessem o tema, a forma de avaliação. Havia sim uma guia básica que era basear-se no programa que se tratou durante o seminário. Ficava então um pouco para a liberdade e criatividade dos estudantes, sobre a forma e o conteúdo do trabalho, quebrando com o estabelecido normalmente na faculdade, seus métodos de avaliação. É uma postura da cátedra.

A: Tivemos a liberdade de fazer um trabalho que nós consideramos como uma ferramenta que transcende o acadêmico. Isso não era um requisito, mas a possibilidade estava colocada. Tivemos a possibilidade de fazer um trabalho que tem vida e utilidade para além do valor que possa ter para a academia, para a Universidade.

JI: Se por um lado a cátedra tem todo um lado mais além da faculdade, por ser de extensão, tem esse seminário de graduação na faculdade, então a ideia é mesmo articular ambos lados, ajudar a desfazer essa divisão.

PJ: Como foi a escolha do tema, como é que escolheram as fontes para as entrevistas?

347937JI: Um dos eixos do seminário era baseado no tema “formas de organização”, distintas experiências, e a partir de uma entrevista com debate entre Tosco e Rucci (logo falamos mais sobre eles), na qual se apresentavam duas posições bastante antagônicas. Esse debate nos serviu para pensar formas de organização, alternativas de organização, em diferentes aspectos, que inclusive tinham a ver com nossas práticas militantes. Também para pensar a criação de ferramentas para enriquecer essa discussão. Basicamente a organização no sentido anti-burocrático, essa é a ideia que percorre todo o vídeo. Isso nos levou a pensar e entender esses fenômenos nessas experiências, então nos perguntamos o por quê, como é que isso ocorria. Daí disparam um montão de hipóteses e problemáticas que são as que no final tentamos retratar no video.

A: Uma das primeiras coisas que pensamos foi relacionar o que se passava nos anos 70, nesse contexto de Tosco e Rucci com o que se passa na atualidade. Outro ponto que surgiu foi a relação que teriam os desempregados com a classe trabalhadora, ou com que setores dela, pois até poucos anos atrás eles tiveram muitíssimo protagonismo nas lutas na Argentina. No percurso de debater estes temas, foi surgindo naturalmente as pessoas para se entrevistar. Dois são companheiros que conhecemos de distintos âmbitos, mas conhecidos das nossas prática militantes, dos que estávamos fazendo o vídeo. Com as ideias iam surgindo os nomes a partir da referência das lutas. Conseguimos então representar o setor dos desempregados, que se organizavam com os piqueteiros no seu momento de auge, um companheiro para representar o sindical atual, na luta contra a burocracia tradicional, e um companheiro que esteve organizado sindical e politicamente no período histórico de Tosco e Rucci.

PJ: Quem foram então Tosco e Rucci?

863286A: Tosco e Rucci foram dois referentes da vida sindical e política muito fortes na Argentina dos anos 70. Augustín Tosco se reivindicava marxista, publicamente não estava associado a nenhuma organização, mas matinha um contato próximo com as organizações que faziam a disputa contra a ditadura nesses anos (ditatura de Ongania, 1966-70). Não participava organicamente de nenhuma organização mas se “mancomunava” com elas, principalmente nos espaços de luta sindical, que também era o que mais tinha força nesse momento, em termos de organizações que iam às ruas contra a ditadura. Foi dirigente do Luz y Fuerza, que é o sindicato que representa a grande maioria do setor elétrico, depois também assumiu a condução da CGT de los Argentinos, que foi uma corrente opositora dentro da Central General de Trabajadores (sindicato único argentino), uma corrente combativa que lutava contra a parte da CGT que começava a se burocratizar, digamos. Era dirigida por Vandor, que foi um burocrata e traidor da classe, que tinha muita importância e que foi assassinado com cinco tiros dentro do contexto das lutas armadas. Rucci foi o mão direita e também o sucessor de Vandor. Ele era dirigente de uma reginal da UOM (metalúrgicos), e então passou à direção da CGT logo após o assassinato de Vandor. Ele era também militar, estava vinculado estreitamente com as bases militaristas de Perón, era peronista, claro, militou muito a sua volta ao país. Representava a burocracia mais agarrada aos seus lugares de poder, que organizava “administrativamente” os trabalhadores (como diz Tosco), no sentido de não haver uma disputa política, de que os trabalhadores não se organizassem politicamente. Que fosse apenas pelo econômico. Tosco representava a organização frente a necessidade de mudar o mundo, além das condições materiais e econômicas do trabalho de cada um.

PJ: Como vocês veem que se expressam essas duas “vertentes” do sindicalismo na Argentina de hoje?

JI: Bem, como fala a pergunta, são de fato duas formas de se pensar o sindicalismo, de se atuar politicamente, que hoja na Argentina tem bastante vigência. No que seria o lado do Tosco, ou do atuar do movimento classista, tem havido nos últimos anos experiências bastante difundidas, como a dos Petroleiros de Las Heras, uma que pudemos acompanhar bem de perto que foi nas fábricas EMFER e TATSA, onde os trabalhadores protestavam não apenas pelo salário mas também num aspecto mais amplo a respeito do que é o transporte na Argentina, a venda indiscriminada de toda essa infraestrutura a gente que não tem nada a ver com o que ocorre aqui, como o chineses. Pudemos acompanhar isso bem de perto pois no processo de fazer o video, nós participamos de forma ativa no conflito. Fizemos reuniões na fábrica ocupada para tocar o vídeo, para conversar com os que estavam de fato construindo a luta. É uma experiência digna de se lembrar e analisar, para entendê-la como uma dessas experiências de enfrentamento à burocracia, de colocar problemas que vão mais além da questão salarial, e fazendo até a disputa com essa outra lógica sindical que é a que propunha Rucci. De fato, hoje são mais visíveis o atuar e as práticas desse sindicalismo mais burocrático, verticalista, são os setores hoje vinculados a Moyano, Caló [1] , que estão encrustados nesses lugares de poder, pessoas que inclusive tem ações em empresas, são patrões dos trabalhadores que eles dizem representar. São personagens, ou melhor dito, personagens e centrais também, não são apenas pessoas específicas, que convocam paralisações de uma semana para a outra, quase sem nenhum conteúdo político que responda aos interesses dos trabalhadores, sem que haja ação nas bases, sem que haja assembleias nos locais de trabalho, que gere essa ida e volta entre os lugares de decisão e as necessidades e preocupações da classe em conjunto.

A: Tosco tinha muita força no que seria o metodológico da construção, uma diferença fundamental. Ele defendia fortemente a organização de base e reconhecia a assembleia como órgão máximo de decisão, própria dos trabalhadores, enquanto que Rucci representava uma forma metodológica que tinha mais a ver com uns poucos sentados a portas fechadas, resolvendo a vida dos trabalhadores. Creio que isso é uma das coisas mais fortes que hoje está representada nesses conflitos que comentava Juanito, na EMFER e TATSA, nos Petroleiros de Las Heras, na Kraft, em outros casos onde o que se vê são os trabalhadores organizando-se por si mesmos, mediante assembleias e tomando decisões que consideravam melhores para suas próprias vidas; por outro lado estão essas paralisações impostas pelos burocratas atuais. São paralisações que as vezes podem, digamos, ser decididas por telefone ou entre quatro pessoas, e são anunciados antes para os meios de comunicação do que para os próprios trabalhadores, que são quem deveria gerar essas paralisações.

JI: Nesses conflitos que citamos, existe uma posição ativa dos trabalhadores de tomar em suas mãos a ação: ocupar fábricas, fechar ruas, bloquear estradas, tomando decisões em conjunto, claro, discutindo em conjunto e decidindo em conjunto.

A: Tosco reivindicava uma forma de luta muito ligada ao combatismo, à ação nas mãos dos trabalhadores. Isso está bem representado, creio, em algumas das imagens do video, desse contexto, da época do Tosco, de uma ocupação de fábrica, e também de uma luta que foi muito importante na época que foi a da Mercedez-Benz. Também tem as imagens do que foi a luta de rua e a rebelião popular no 2001, ou seja, de situações de luta também mais atuais onde os trabalhadores ou a classe mesma assume com suas mãos a sua própria defesa.

PJ: Alguma coisa mais que queiram acrescentar?

JI: Morte aos burocratas.

A: Quais?

JI: Nós todos.

A: (risadas) Claro, temos um problema, porque a hipótese do vídeo era que todos temos alguma prática burocrática que devemos identificar e atacar. Se matássemos todos os burocratas, estaríamos matando nós mesmo também. Eu acho que a gente tinha que fazer uma lista de prioridades: em algum momento vai aparecer meu nome, mas não estarei na lista como a primeira!

A: Ah, e que por fim, quero que fique registrado que você tem que subir junto a marcha que te mostrei outro dia, do sindicato de Luz y Fuerza [2]

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Notas

[1] Respectivamente, o principal dirigente da CGT e atual presidente do clube Independiente; e o principal dirigente do sindicato dos metalúrgicos, UOM.

[2] Resquícios fascistas do sindicalismo argentino.
Música e letra.

2 COMENTÁRIOS

  1. Camaradas do Passa Palavra, o link para a música da Marcha Luz u Feurza está “quebrado” redirecionando ao próprio passa palavra.

  2. Caro Lucas,

    Já corrigimos o link quebrado. Obrigado por alertar-nos.

    Cordialmente,
    o coletivo do Passa Palavra

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