É uma pena: o MPL era uma aposta, não apenas de formação de um exército e de generais como também de formação de um exército onde todos pudessem ser – se quisessem e se esforçassem para tanto – generais. Por Fagner Enrique
O Passa Palavra publicou recentemente o artigo A irresistível centralidade da tática e os dilemas requentados (aqui). Tencionava publicar o texto a seguir como comentário, mas devido à sua dimensão preferi apresentá-lo como artigo. Logo no começo, o artigo de Daniel Lage e Rodrigo Massatelli discute a questão da espontaneidade na luta contra a reorganização escolar em São Paulo. Essa luta recolocou em evidência não apenas a base social do movimento secundarista como também a discussão estratégica. Na verdade, todo o artigo gira em torno da questão da necessidade, em qualquer processo de luta, de uma ampla base social vinculada a uma estratégia revolucionária: o exército e os generais. E como o movimento secundarista defrontou-se com os mesmos dilemas de Junho de 2013, os autores não puderam deixar de fazer analogias entre os processos de luta de 2013 e 2015-2016. No fundo, trata-se do modo como o “campo autonomista” tem respondido a esse tipo de questão. Penso que o modo como os “autonomistas” têm concebido a espontaneidade perpassa todo o problema.
1. Espontaneidade e planejamento
Creio que a questão da espontaneidade deve ser colocada da seguinte forma:
1.1. A espontaneidade de fato
Há casos em que há espontaneidade de fato, geralmente começando e terminando rapidamente e sob a forma de ações pontuais. Não havendo planejamento antecipado, trata-se de uma ação espontânea. Não significa que ela não tenha sido influenciada ou estimulada de alguma maneira: dependendo da conjuntura, criam-se condições favoráveis para cada vez mais frequentes e ousados atos de rebeldia. No fundo, a espontaneidade de fato remete à ausência de planejamento prévio, o que em si não é necessariamente bom ou mal.
1.2. O planejamento pela base
Há casos, porém, em que os trabalhadores diretamente envolvidos num dado conflito social – isto é, pessoas “de dentro”, pessoas da base, os funcionários de uma empresa, os moradores de um bairro, os estudantes de uma escola ou universidade etc. – planejam previamente uma ação, que por isso mesmo não pode ser considerada de fato espontânea, mesmo que organizada por quem é “de dentro”. Esses trabalhadores, mesmo que sem qualquer vínculo com grupos políticos, nos sentidos político-partidário ou dos movimentos sociais tradicionais, constituem uma vanguarda. Por outro lado, se houver vínculos, se houver militantes entre quem é “de dentro”, significa que um grupo político – de instância deliberativa sempre exterior ao local de trabalho, de moradia, de estudo etc. – está participando do planejamento da ação, o que em si também não é necessariamente bom ou mal. Se os militantes não se afirmam como gestores perante a base, há participação, não direção. E mais: também aqui a conjuntura poderá servir de estímulo (um período marcado por greves dirigidas por sindicatos pode propiciar greves autônomas, tanto simultaneamente quanto num período subsequente; iniciativas de organizações estudantis podem propiciar novos atos de rebeldia, tanto espontâneos quanto planejados pela base; a inserção de um movimento ou partido num bairro podem estimular novas lutas etc.).
1.3. O “trabalho de base”
Há também casos em que pessoas “de fora” – isto é, não diretamente envolvidas num dado conflito social – se articulam ou tentam se articular com pessoas “de dentro” para propor alguma ação. Quer dizer, os militantes trazem propostas, discussões, projetos, estratégias etc. que os trabalhadores não haviam inicialmente cogitado, o que também não é necessariamente bom ou mal. Seja como for, é nesses casos, quando há um grupo político buscando inserir-se em locais de trabalho, moradia, estudo etc., que vem à tona a questão do “trabalho de base”. E vem à tona também a questão da “conscientização”, do “trabalho de conscientização”. Nada disso constitui qualquer obstáculo, contanto que o grupo político seja capaz de favorecer um novo patamar de organização dos trabalhadores.
1.4. Alguns exemplos concretos
Para ilustrar a espontaneidade de fato e o planejamento pela base, podemos recorrer à experiência da onda de manifestações nos terminais de Goiânia e em bairros periféricos da cidade na primeira metade de 2014 (aqui). Tais manifestações foram muito provavelmente estimuladas e influenciadas por uma série de iniciativas de grupos políticos, mas muitas vezes – senão em todos os casos – se deram de maneira espontânea ou planejada pela base.
As ocupações de escolas em Goiás parecem ter sido planejadas pela base, mesmo que contando com a presença de vários grupos políticos, os quais pareciam também vislumbrar ali uma possibilidade de veicular suas propostas. A participação numa luta passa a ser concebida – o que também não é necessariamente bom ou mal – como uma possibilidade de divulgação de discussões, projetos, estratégias etc., destinados a gerar novas lutas. Se o objetivo do grupo político não é produzir novos militantes subtraindo lutadores – ou fazer de uma mobilização que mal começa a dar os primeiros passos uma nova organização, fonte de novos militantes e/ou de novos eleitores – a coisa toda pode correr bem.
Enfim, a espontaneidade existe, mas ações planejadas – pela base ou por grupos políticos fazendo “trabalho de base” – podem criar condições favoráveis para a multiplicação de atos espontâneos, que por sua vez reforçam não apenas grupos de trabalhadores, que por aí inauguram uma trajetória de luta, mas também os grupos políticos. Podem… Pois caso não tenham êxito, acabam inibindo novos atos de rebeldia em vez de estimulá-los. Um dos equívocos relativos à noção de “trabalho de base” é o de não se levar em conta que muitos trabalhadores acompanham, mesmo que de longe, os êxitos e fracassos dos grupos políticos. Um tipo de luta que não atinge seus objetivos ou sequer apresenta objetivos e os meios de alcançá-los não é nem um pouco atrativo. A radicalidade, a violência, por exemplo, não sendo empregue racionalmente será pouco atrativa, servirá para afastar os trabalhadores ao invés de agregá-los, algo que já foi discutido noutros artigos publicados neste site.
Assim, o ideal é que a espontaneidade e o planejamento interajam dialeticamente, um potencializando o outro.
2. A falência da dialética
2.1. A opção pelo amadorismo
O problema em movimentos como o MPL e o movimento de ocupação das escolas parece ser uma espécie de opção pelo não planejado. Trata-se de uma opção pelo amadorismo em política. Não se trata apenas de pensar que já é revolucionário por si só demandar nos quadros da democracia burguesa: trata-se de pensar que já é revolucionário travar uma luta sem ter uma estratégia minimamente delineada – e pior: sem pretender delineá-la – contanto que se faça uma opção também por ações radicais. E isso porque revolução virou sinônimo de comportamento (aqui). Revolução perdeu o significado de reorganização violenta das relações sociais.
2.2. A “punk-incultura”
Já afirmava certo estrategista e filósofo chinês que “com numerosos cálculos, pode-se obter a vitória. Teme quando os cálculos forem escassos. E quão poucas chances de vencer tem aquele que nunca calcula (aqui)!”. É justamente a falência do “cálculo” que movimentos como o MPL representam hoje, a ausência de uma estratégia. E ao que parece, também o movimento de ocupação das escolas. Tudo isso está intimamente relacionado com a cultura da “punk-incultura”. Sob a “punk-incultura”, “a democracia assumiu um novo sentido, não é mais a luta pelo direito a todos aprenderem o que quiserem saber e passou a ser a afirmação de que é desnecessário saber o que quer que seja (aqui)”.
2.3. Autogestão?
Do planejamento depende um estudo cuidadoso e aprofundado. Mas se o estudo é descartado ou colocado em segundo plano, também o é o planejamento. E a dialética espontaneidade-planejamento fica comprometida. Mas não é apenas a estratégia que depende do estudo. Também dependerá a autogestão do quadro civilizacional vigente, a autogestão da civilização urbano-industrial. Ora, a sociedade em que vivemos é demasiado complexa para ser gerida por pessoas que têm pouco ou nenhum conhecimento dos seus mecanismos internos. O único pós-capitalismo possível passa a ser então o pós-capitalismo da regressão, da regressão em termos de complexidade social, da regressão perante o quadro civilizacional vigente.
2.4. A ânsia por destruir… Mas e o ímpeto de recriar?
As lutas contra o aumento das tarifas estão repletas dessa negação do planejamento e desse apelo ao comportamento: as pessoas vão às ruas para se comportarem “combativamente” depois de serem convocadas às ruas pelo MPL e organizações correlatas. Ali mostram-se “revolucionários” autênticos, só que sem alterar em nada as relações que dão fundamento ao capitalismo. Acaba que a única espontaneidade valorizada e incentivada é a do enfrentamento puro e simples ao Estado, espontaneidade esta que se expressa esteticamente por meio de palavras de ordem, músicas (o funk, por exemplo), faixas, danças, pular a catraca etc. Ou a espontaneidade da “revolucionária” destruição de vidraças. Trata-se de um comportamento que, mesmo sendo ocasionalmente planejado, não aponta para qualquer projeto viável de organização social: segundo um autor, “a ânsia por destruir parece, em certos casos, superar o ímpeto de recriar (aqui)”. O tudo ou nada de que se queixa o prefeito de São Paulo (aqui) tem muito disso: o movimento quer destruir a tarifa, destruir o transporte como mercadoria, mas não apresentou até agora qualquer alternativa programática. A relação do movimento com a tarifa é a mesma de um “black bloc” com uma vidraça: quer vê-la em pedaços, só isso.
Em primeiro lugar, porque tais movimentos não fazem ideia do que propor. Simplesmente não fazem. O MPL, por exemplo, foi e tem sido incapaz de teorizar o transporte público e apresentar um programa minimamente coerente à sociedade e inserido num projeto social mais amplo. Por isso o movimento se limita a acender a fagulha, perdendo depois o controle do piro espetáculo (quando consegue acendê-la). O movimento de ocupação das escolas parece seguir o mesmo rumo, limitando-se em grande medida a demandar que tudo se mantenha como antes, embora em Goiânia se esteja promovendo “aulões” preparatórios para o ENEM, dados por professores voluntários, o que sinaliza para uma reorganização das relações sociais no interior das escolas. Se daí poderá emergir um projeto de Educação e para a sociedade em geral – e uma estratégia de luta – ainda não é possível dizer. A desmoralização e a forte repressão que agora afligem o movimento parecem sinalizar negativamente. Nada está perdido, porém: essa semente pode dar frutos em breve.
Em segundo lugar, é possível que – pelo menos no que se refere ao MPL-SP – o movimento não “sente à mesa” porque seus dirigentes não saberiam por onde começar. A burocratização do MPL resta, assim, incompleta, porque seus dirigentes não são tecnicamente qualificados para “sentar-se à mesa”. Nesse sentido, o MPL-SP fracassou duplamente, primeiro porque não conseguiu promover a organização da classe trabalhadora e segundo porque deu à luz uma burocracia incompetente, insuficientemente qualificada para adentrar o mundo dos gabinetes, uma burocracia que tenta gerenciar a revolta popular, onde a única espontaneidade vigente é a do heroísmo das manifestações de rua, o que no fundo acaba sendo gerenciar a própria impotência. E o movimento secundarista autônomo, que acaba de ganhar evidência? Será capaz de formular um programa, articulado a um projeto social, a ser aplicado por meio de uma estratégia? Esse é o desafio. Caso contrário, essa tarefa caberá aos burocratas estudantis. Ou então o Estado será capaz de construir um consenso em torno de suas políticas.
3. Nem de reformismo se trata
Nesse sentido, discordo dos autores de A irresistível centralidade da tática e os dilemas requentados num sentido: o MPL sequer foi capaz de se afirmar como movimento reformista, afinal a tarifa zero ainda está longe de ser implementada. Ele é reformista nas propostas, mas na prática política mostrou-se incapaz de pressionar os capitalistas e o Estado a ponto de ver atendida sua reivindicação central. Revogação de aumento não é reforma. Militância em prol dos direitos civis a cada novo fracasso também não. É uma pena: o MPL era uma aposta, não apenas de formação de um exército e de generais como também de formação de um exército onde todos pudessem ser – se quisessem e se esforçassem para tanto – generais. Isto é, onde todos pudessem participar da formulação estratégica, bastando para isso engajar-se num esforço de estudo – e de combate – coletivo.
Mesmo que uma possibilidade de superação da centralidade da tática esteja sendo esboçada em Goiânia, no contexto dos “aulões” acima referidos, que podem ser não apenas espaços de formação para o mercado de trabalho como também espaços de formulação estratégica, talvez seja tarde demais. A repressão, como já dito, recrudesceu consideravelmente (como se pode conferir aqui e aqui) e muito provavelmente o movimento vai terminar na defesa dos direitos civis.
Fagner, que bom que o debate está seguindo. Gostei do seu texto, mas discordo de algumas das teses que você defende quanto ao MPL.
Em primeiro lugar discordo da afirmação de que o MPL fracassou duplamente, pela A) incapacidade de promover a organização da classe trabalhadora e B) pela formação de uma “burocracia incompetente, insuficientemente qualificada para adentrar o mundo dos gabinetes” e que por isso tentaria “gerenciar a revolta popular”, o que seria algo como “gerenciar a própria impotência”, devido ao limite da tática.
Sobre esse ponto, concordo com o tópico A, mas quanto ao tópico B penso o seguinte: o MPL não teve suas lideranças cooptadas. Elas não foram integradas nos esquemas governistas, não “traíram” a bandeira do MPL ou algo que o valha. Tampouco são lideranças que formam uma burocracia incompetente e sem qualificação para os acertos e composições nas mesas dos governantes. Acho que não falta essa qualificação às lideranças do MPL atual, que não se senta nessas mesas não porque não pode, mas porque não quer. São lideranças que não foram cooptadas e seguem sendo militantes “de luta”. A burocratização do MPL se deu em outra instância, que não é a da cooptação e integração dos dirigentes aos mecanismos governamentais. O MPL se integrou à ordem pela assimilação do movimento como um todo, desde a forma organizativa e tática de luta até a bandeira da revogação dos aumentos (imediata) e da tarifa zero (longo prazo). Você mesmo explicou em detalhes algumas das facetas do processo de burocratização do MPL e de perda de sua potencialidade anticapitalista, por exemplo no texto “MPL, a ritualização da autonomia”. Por fim, hoje o MPL “gerencia sua própria impotência” na gestão dos atos de luta devido à perseguição de uma tática anacrônica pela via de uma forma organizativa estruturalmente castrada enquanto germe do novo e, por isso, reprodutora da ordem. Daí a perversa utilidade do movimento, organizado como está, à ordem. Deixou de ser perigoso; o Capitalismo soube assimilá-lo apesar das lideranças terem resistido atá agora ao charme dos gabinetes.
Em segundo lugar, discordo do modo como você articulou a questão do caráter “sequer reformista” do MPL devido à manutenção de uma pauta reformista que se busca por meio de uma prática política “incapaz de pressionar os capitalistas e o Estado a ponto de ver atendida sua reivindicação central”. A meu ver a bandeira é reformista e era buscada via formas organizativas radicais e com potencialidade de impulsionar a classe trabalhadora a empreender lutas radicais que poderiam ser revertidas em ganhos organizativos perigosos para o sistema. Assim, a radicalidade do MPL nunca esteve na bandeira, e se a pressão das mobilizações e das lutas não foi capaz de resultar no atendimento da tarifa zero foi não por incompetência do MPL, mas por incompetência dos gestores do ramo do transporte, que não conseguiram se impor frente aos burgueses do ramo do transporte, de modo que esse setor se mantém apegado a esquemas velhos de lucratividade assentada na propriedade privada dos meios de transporte e na articulação íntima com o Estado e seu pacote de concessões. Tanto que foi o PT quem teve que pressionar o setor a se modernizar, e segue nessa luta até hoje. Quando o setor passar a ser hegemonizado pela classe dos gestores ao invés da classe dos capitalistas privados (burgueses) a tarifa zero será atendida, simplesmente porque é mais lucrativo para o Capitalismo. Daí a questão de que o MPL e suas lutas pelo passe livre cumpre papel de aceleração da modernização do setor de transporte, portanto de aceleração do desenvolvimento capitalista, tal como o MST cumpre no setor da produção agroindustrial. Em suma, o MPL hoje é reformista quanto à pauta e quanto à forma organizativa, e não deixa de ser por conta dos capitalistas estarem numa briga entre si que resulta até agora no burro não-atendimento da demanda da tarifa zero, freando o desenvolvimento capitalista e os mecanismos de aumento da produtividade (e portanto da exploração) não só no setor de transporte, mas em todo o sistema.
Por mais que a luta pelos transportes possa parecer reformista e até capialista – ora, fomentar o acesso a cidade fomenta o consumo – há a questão do empoderamento urbano e isso é temível, capaz de criar uma resistencia até de um capitalismo contra o proprio capitalismo, abstendo do fluxo do consumo e tal. A luta urbana é absurdamente estrategica, David Harvey quem o diga… Creio até que a direita já percebeu isso atrvés da esquerda mais complexa e que a esquerda burra inculta e punk ainda não percebeu – liguem o botãozinho conspiracionista da direita, porque é possivel que ela exista simsenhor, eu pelo menos recomendo. Alias, o MPL perdeu uma chance de ouro de fazer uma manifestação no aniversario de são paulo, senso zero de estratégia, o movimento caducou totalmente, o que antes eram irreverentes no modelo de ação, unia criatividade, apoio social e estrategia. Agora só repetem uma glória que não volta mais, não souberam se reiventar e morreram.
Pablo,
Eu quis dizer que o tipo de competência que o MPL-SP tem, o de deflagrar a revolta da tarifa para depois (tentar) gerenciá-la, geralmente para (tentar) obter a revogação do aumento da tarifa, não é apreciado no mundo dos gabinetes. E o dramático é que também não o é pelo mundo do trabalho. Aí está a chave da questão.
Num artigo publicado neste site, o autor afirmava que “consolidou-se nos últimos anos em vastos meios da juventude do Brasil a ideia de que a agitação é, por si só, positiva, qualquer que seja a agitação, porque é dotada de uma carga de energia que, assim como destrói, constrói. Sem dúvida. No plano social não existe nada que seja apenas destrutivo, porque não existem vazios. Mas este é precisamente o problema. Quando não se constrói nada de racionalmente definido, programado passo a passo, com objectivos claros, então sucede o pior de tudo. As ideias difusas são propostas como solução e adquirem assim um novo prestígio (http://www.passapalavra.info/2013/07/81647)”.
Ora, esse tipo de postura tanto não serve para formar lideranças cooptadas quanto não serve para fazer a revolução. E por isso o MPL-SP fica a meio do caminho. Mas não se trata apenas do MPL-SP.
Por não conseguir apresentar qualquer programa com objetivos claros, o MPL, não apenas em São Paulo, não consegue transformar a massa em revolta em militantes, justamente a única coisa que poderia impedir sua burocratização ou sua desagregação. Foi justamente esse tipo de burocratização que possibilitou que o MPL-SP – mas será somente ele? – fosse hegemonizado pela política identitária. Os defensores da política identitária aproveitaram-se da incapacidade de massificação do movimento, porque se o movimento se tivesse massificado as pautas identitárias não encontrariam terreno fértil. Disso eu já tratei no artigo que você mencionou.
De um lado, o movimento afasta o grosso dos trabalhadores e justamente por isso se burocratiza, enquanto que, de outro, não conseguiria ter inserção no mundo dos gabinetes mesmo se quisesse, porque não está disposto a estudar a fundo o funcionamento do Transporte (que o diga da economia) e ir encontrando os meios de reformá-lo. É por isso que, quando os gestores debatem com os militantes, os primeiro se veem na obrigação de dar lições de economia e administração aos segundos. A única solução proposta é sempre a mesma: convocar atos no Facebook. Mas a mesma incompetência que de qualquer forma o manteria fora dos gabinetes também o impede de se massificar: sem um plano claro e fundamentado, o MPL não pode encontrar os meios de revolucionar o Transporte a partir da mobilização dos trabalhadores do Transporte e dos trabalhadores em geral. A ausência de um programa repleto de alternativas críticas e radicais, que possam ir além da mera revolta da tarifa, resulta do desconhecimento e da resistência ao esforço de estudo coletivo: se os GT’s concebidos no Encontro Nacional de 2013 não foram levados adiante, enquanto muitas outras coisas foram, ao mesmo tempo em que vozes críticas eram suplantadas, é algo muito sugestivo.
Enfim, um movimento desse tipo não vai a lugar algum. E são os gestores do Transporte os incompetentes? Ora, me parecem muito competentes, pois sabem que o movimento não vai a lugar algum, sabem que a revolta da tarifa pode ser administrada, sabem que os trabalhadores do Transporte e os demais trabalhadores não se vão mobilizar em torno de um projeto inexistente, então conseguem manter as coisas como estão, como melhor lhes convêm.
No capitalismo contemporâneo, a tendência predominante, que perpassa todos os partidos, é a da busca de uma parceria política e econômica entre público e privado. Nesse sentido, parece-me que não se trata apenas da burguesia do Transporte contra uma facção dos gestores, a tecnocracia petista, uma disputa entre a burguesia retrógrada e os gestores modernos. Parece-me, pelo contrário, que temos as classes capitalistas de um lado, fortalecidas, e o proletariado de outro, enfraquecido. E como é que o MPL contribui nesse quadro?
Fagner, camarada, você traz ao debate contribuições interessantes, mas me chama especialmente atenção quando coloca que “tais movimentos não fazem ideia do que propor” como um sinal de seu “fracasso”. Ora, não foi justamente na recusa negativa e intransigente do MPL que reconhecemos – em artigos publicados neste site mesmo – uma das maiores forças do movimento de junho de 2013?
Ao mesmo tempo, quando cobra uma atuação “propositiva”, repete nos mesmos termos o debate da Articulação Sindical que marcou, nos anos 1990, a guinada decisiva da CUT à conciliação com o capital. A avaliação de que supostamente falte no MPL um projeto viável para o transporte também ecoa a avaliação feita pelo setor majoritário do PT após a derrota eleitoral de Lula em 1989: o partido não podia fazer simplesmente oposição social; precisava de um projeto viável para o governo.
Todavia, falei que só “supostamente” faltaria um projeto de transporte ao MPL porque discordo desse seu pressuposto. Não falta projeto. Filho de seu tempo (o tempo da sucesso da estratégia do PT), também o MPL desenvolveu seu lado “propositivo”: a Tarifa Zero, política pública elaborada por uma gestão petista nos anos 1990. Qualquer militante do MPL sabe argumentar sua perfeita viabilidade dentro do capitalismo – e até suas vantagens à economia da cidade! -, além de indicar fontes de financiamento.
Coloco, agora, uma questão: de onde veio a força real que fez do MPL um movimento social de fato? Ora, o MPL não surgiu da cabeça de algum doido, surgiu de um movimento real da classe trabalhadora: das repetidas lutas contra o aumento da tarifa que explodiram em cidades de todo país entre 2003 e 2013. Contrapondo uma tática de “perda de controle” aos mecanismos de controle dos conflitos sociais desenvolvidos pelo projeto de governo petista, essas lutas (as “revoltas”, como chamamos algumas vezes) apontavam para um futuro: a ruptura do consenso.
Foi a força desse movimento histórico real que fez existir de fato o MPL. Porém, ainda que essas revoltas se apresentassem como uma novidade ao inverter a lógica predominante das lutas do período, quando é fundado o MPL ele tem um corpo próprio do seu tempo, não tão diferente assim dos movimentos da tradição “democrática-popular”: uma pauta específica, reivindicando um projeto de lei do governo, etc…
Desde que saí do MPL, no ano passado, tenho pensado que existe aí um conflito constitutivo do MPL, dois caminhos que apontavam para sentidos diferentes. Se por um lado a recusa expressa nas lutas contra o aumento apontava a uma força crítica prática que, pela ação direta de massas, poderia abrir caminho a uma reconfiguração da luta de classes; por outro lado, o projeto viável da Tarifa Zero aparecia como uma solução elaborada pelo próprio movimento aos gestores que quisessem frear definitivamente aquela potência das revoltas, recuperando a luta e cooptando sua direção. Sob essa ótica, hoje compreendo melhor o que estava de fato em jogo quando, no dia-a-dia do MPL, os militantes divergiam entre dar prioridade à coleta de assinaturas para o projeto de iniciativa popular da Tarifa Zero ou ao trabalho em escolas e bairros visando preparar as bases para as próximas lutas contra o aumento.
Fagner, você afirma que “o movimento (…) não está disposto a estudar a fundo o funcionamento do Transporte”. Mas isso fazíamos aos montes no MPL! O que dificilmente fizemos foi ir além do transporte, e tentar entender a configuração da luta de classes no Brasil e no mundo hoje. Entendo que é nesse sentido que os companheiros Daniel e Rodrigo colocam o problema da “estratégia”: faltou ao MPL um horizonte da transformação revolucionária de toda sociedade (não se trata da falta de uma “estratégia para a luta do transporte”, como me parece que você às vezes diz no texto, pois isso é “tática”).
Se havia uma potência no MPL, estava na recusa prática das revoltas, que apontava para um horizonte. Mas em 2013 esse horizonte se realizou, e de lá pra cá refez o cenário das lutas. Esse é o limite do movimento histórico que fez o MPL, limite que eu e o Leo analisamos aqui: http://www.passapalavra.info/2014/05/95701. Em junho de 20113, a “perda de controle” foi usada pelo MPL-SP como uma tática consciente para planejar uma revolta, conduzi-la e atingir um objetivo. Trata-se de uma ocorrência da “espontaneidade” que não se enquadra exatamente em nenhuma das modalidades que você levantou. Teria sido um “planejamento pela cúpula”, uma “espontaneidade conspiratória”?
Quando aquela tática é levada ao seu limite e esgotada em 2013, as novas tentativas do MPL de reproduzi-la desde então giram em círculos – não apontam mais para um futuro, mas para uma tentativa vã de volta ao passado -, tal como mostrou a luta de 2016. Nesse sentido, é perfeita sua análise do MPL como uma burocracia impotente: “uma burocracia que tenta gerenciar a revolta popular, onde a única espontaneidade vigente é a do heroísmo das manifestações de rua, o que no fundo acaba sendo gerenciar a própria impotência”. Mas exatamente por isso me parece melhor que a burocratização do MPL tenha apenas o condenado à condição de um grupelho impotente, do que o alçado à condição de um potente gestor do transporte, integrado ao governo, transformado em cooptador das futuras lutas – ao menos até agora, não parece essa a tônica do que está ocorrendo (no limite, talvez esse risco esteja hoje bloqueado pelo encerramento de um ciclo econômico).
Enfim, em relação ao debate como um todo, tenho tentado cozinhar algumas ideias a partir das discussões com mais camaradas, e esperamos em breve apresentá-las também por aqui na forma de texto.
Caio,
Acho que o debate precisa se dar em duas frentes aqui:
1) de um lado temos a questão das proposições do MPL aos gestores do Transporte etc., que poderiam alçá-lo ao nível de um movimento reformista.
2) de outro temos a questão das proposições do MPL ao proletariado, que poderiam não apenas manter a chama da revolta acesa como promover um novo patamar de organização da classe trabalhadora, convertendo milhares de trabalhadores em militantes, sempre engajados na elaboração de novas estratégias para cada aspecto e momento da luta.
As considerações abaixo levam em conta essas duas dimensões.
Penso que conceber a luta pelo Transporte como tática, mera tática associada à estratégia maior de transformação da totalidade, do todo social, é um equívoco. Cada aspecto da luta tem de ter sua estratégia (um ato deve ter sua estratégia, uma campanha contra o aumento deve ter sua estratégia, a luta pela tarifa zero deve ter sua estratégia, todas articuladas à estratégia maior de derrubada do capitalismo e instauração do comunismo, que um movimento como o MPL dificilmente poderá elaborar sozinho, sem estabelecer uma comunidade prática com outros movimentos). Veja, não digo que cada uma das atividades acima são “momentos”, “etapas” diferentes do processo de luta, mas “aspectos” de uma mesma realidade. Mas se, por exemplo, a estratégia de luta pela tarifa zero não está clara, não está bem definida, se não dispomos de todas as armas práticas e ideológicas e do “exército” que vai empunhá-las, aí sim ela se torna um “momento”, uma “etapa” sempre posterior, desarticulada do “momento” atual, da “etapa” atual, que por isso mesmo se repete incessantemente, como você mesmo coloca. Não quer dizer também que só existem aspectos. Existem também “momentos”, que delimitam a forma de realização dominante de determinada prática, ou melhor, que delimitam quando ela sofre alterações.
Desde que entrei para o MPL, me deparei com debates acerca da tarifa zero, sua viabilidade, suas possíveis fontes de financiamento etc. Isso sempre aconteceu. Mas daí para a elaboração de uma estratégia nacional de luta pela tarifa zero, programada passo a passo, estudando as condições concretas de cada cidade, articulando cada luta local com uma luta mais ampla, nacional (e sabe-se lá, até internacional), há uma grande diferença. Qualquer militante sabe argumentar em defesa da tarifa zero? Sim, da mesma forma que qualquer militante do MST sabe argumentar em favor da reforma agrária. Mas os militantes do MPL têm respostas prontas – ou em construção – para o processo de luta em cada cidade e para a articulação desse processo com um processo maior, nacional, internacional? Esses militantes conhecem realmente a fundo o funcionamento do Transporte em sua cidade, no Brasil e no mundo? Conhecem bem os inimigos, sabem numerá-los e nomeá-los, suas trajetórias institucionais, sua localização geográfica? Conhecem igualmente os aliados? Sabem quando, onde e como melhor golpear os inimigos? Sabem como deitá-los ao chão? Sabem construir alianças e reforçá-las? Esse tipo de conhecimento não decorre automaticamente de debates sobre a viabilidade da tarifa zero etc. E nem mesmo sairá da cabeça de um gênio. Muitas vezes me deparei com pessoas que, nas atividades que organizávamos, nos questionavam “mas então qual é a proposta do MPL para aplicar a tarifa zero”? E os militantes respondiam “não temos uma proposta pronta e acabada… queremos construir essa proposta junto com os usuários e trabalhadores do transporte coletivo”. É algo muito bonito, sem dúvida, mas é o mesmo que dizer “não sabemos realmente”. E no fundo, a condição para proceder ao estudo e à elaboração estratégica era o acúmulo de forças: juntem-se ao movimento e vamos debater juntos, encontrar caminhos juntos, porque no momento não temos nada de muito bem elaborado para oferecer. Mas como se vai acumular forças sem apresentar algo minimamente detalhado? Só a mim – ou a mim e a outros poucos – incomoda que o Encontro Nacional de 2013 não indicou nada de muito concreto nesse sentido (insisto nesse ponto)? Sim, temos consciência da viabilidade da tarifa zero etc., mas e daí? Já basta? Sabemos onde queremos chegar, não apenas quanto à tarifa zero mas quanto a outra sociedade. Mas e cada passo que nos levará até lá? Nos familiarizamos com um tabuleiro que muda a cada momento, com peças que não prevíamos? Aprendemos a jogar o jogo com estratégias baseadas em fatos concretos, levando sempre em conta que alguns fatos vão deixando de ser fatos enquanto outros vão entrando em cena? Temos sido capazes de apreender as posições, os movimentos das peças, o formato do tabuleiro etc.? Temos sido capazes de fazer o inimigo jogar como queremos ou continuamos jogando como ele quer que joguemos? Tudo isso depende de cálculos constantes. Onde está a racionalidade do processo?
Da mesma forma que o MPL não abraça o mundo dos gabinetes e negocia seu projeto pelo alto, ele também não se aproxima dos trabalhadores com um acúmulo ideológico significante. Não significa que ele tem de vir com toda uma coleção bem estruturada de dogmas, mas ele precisa pelo menos apresentar uma análise bem fundamentada, sujeita a correções e aperfeiçoamentos, uma análise que fundamente o planejar passo a passo das ações, o planejar passo a passo dos atos, das campanhas contra o aumento, da luta pela tarifa zero etc. E na verdade, podemos até conceber uma luta pela tarifa zero que não tenha como um de seus aspectos centrais os atos e campanhas contra o aumento (ou pelo menos não os atos e campanhas como têm ocorrido), bastando para isso conceber alternativas que escapem ao esquema consolidado. Quantas ações radicais podem constituir aspectos de uma luta pela tarifa zero? Apenas os atos? É claro que lutar pela tarifa zero é um meio de lutar por uma transformação mais ampla, mas qual é a mediação entre uma coisa e outra? O MPL, depois de tanto tempo, apresentou a mediação?
Requerer do MPL que ele seja mais “propositivo”, como você coloca, é o mesmo que assumir a postura da Articulação na CUT? Seria, se o que quiséssemos fosse uma atuação “propositiva” elaborada de cima para baixo, pela direção e sancionada pela base, e direcionada de baixo para cima, dos gestores do movimento aos gestores do Estado e gestores e proprietários de empresas. Mas o que queremos, na verdade, é uma atuação “propositiva” na base, organizando a base, contra os gestores, contra os burgueses, contra a tarifa e contra o capitalismo. E a base é a classe. O que se requer é que, massificando – será que nos seduzimos pela radicalidade dos atos de massa e nos esquecemos da radicalidade dos movimentos de massa? – a luta, ou o capitalismo seja enfim derrubado, o que é de fato nosso objetivo, ou os gestores e empresários sejam obrigados a pelo menos ceder e reformar os Estados Amplo e Restrito, sejam obrigados a recorrer aos mecanismos da mais-valia relativa, que são sempre mais favoráveis aos trabalhadores que os da mais-valia absoluta: seria ser derrotado em condições mais favoráveis. Suspeito que, privilegiando os atos radicalizados de rua e não apresentando um programa relativamente detalhado de luta pela reforma do Transporte, luta esta que pode constituir um dos aspectos da revolução vitoriosa ou um dos aspectos da derrota em condições menos aviltantes, o movimento se coloque unicamente duas alternativas: ou a derrubada imediata da ordem vigente, impossível sem uma classe para si e contra, contra o capital, ou a continuidade do atual ciclo de mais-valia.
O que se requer é a alteração da forma de realização dominante dessa luta específica, que se pode tornar uma mediação possível para a alteração da forma de realização dominante da classe, não em direção à conciliação mas em direção à ruptura social. E isso porque a atual forma de realização dominante já está administrada, já está enquadrada, já se tornou elemento cotidiano e por isso mesmo administrável, como tantas outras pequenas calamidades. E cabe ao movimento encontrar os meios, a serem expressos ideologicamente, de recuperar a luta, recuperar a radicalidade, recuperar a possibilidade de voltar a classe para si e ao mesmo tempo contra.
Enfim, a história é dialética: outrora a força do MPL estava na “negatividade intransigente”, mas a sua fraqueza – e trata-se de uma fraqueza que afeta o proletariado, que vê mais racionalidade na ordem vigente do que num movimento proletário, fruto de suas próprias forças – agora reside justamente nessa “negatividade intransigente”, porque se ele não apresentou um programa que articulava, com mediação da direção, a base e os capitalistas num projeto de conciliação, ele também não apresentou um projeto – não debates mas um projeto mesmo, o passo a passo, a resposta para a velha questão, que todos os marxistas desde Lenin sabem muito bem qual é – que articulava as bases horizontalmente e progressivamente. Seria necessário passar da ação direta das massas nos atos de rua para outro tipo de ação direta das massas, digno da denominação movimento social. É claro que o MPL nunca fez apenas atos de rua, mas este é o aspecto central da atuação do movimento desde pelo menos 2013. Essas outras atividades constituíam, é claro, um tipo de planejamento pela base e/ou um tipo de trabalho de base. Mas e hoje? Na minha cidade, o MPL abandonou qualquer iniciativa de planejamento pela base ou de trabalho de base há algum tempo, mesmo porque ele praticamente não existe mais. E nas outras cidades?
Rapaz… vejo um burocrata falando de burocracia… dirigentes burocratas o MPL? Dirigentes burocratas e incompetentes? quanto ressentimento em busca da direção para classe trabalhadora… esse sonho de um bolchevismo que só respondia ao fordismo, mas que é incapaz de responder a era toyotista! Quanto choro… traga as velas para enterrar seu defunto camarada! Porque ele já começa a feder!
Um dos grandes problemas da esquerda dita “autônoma”, embora autônoma deva ser a classe e não a esquerda, é levantar-se contra programas e estratégias. Pior: tudo que passa pela dimensão programática e estratégica passa também por leninismo.
Mas o curioso é que essa mesma esquerda, essas organizações autoproclamadas “autônomas”, esses militantes autoproclamados “autônomos”, como bem colocado num artigo publicado neste site, “na prática […] estabelecem padrões de comportamento inalcançáveis e dedicam boa parte do seu tempo à caça fratricida aos hereges; criam ritos e códigos herméticos, causa de sérias restrições à renovação de seu quadro de integrantes; esperando a completa submissão de seus integrantes a seus ritos, códigos e padrões de condutas, mostram-se incapazes de lidar com as contradições próprias de indivíduos cindidos entre a integração nos quadros sociais e ideológicos do capitalismo e a construção de relações sociais novas; falam um jargão incompreensível por quem não é da “cena” a que pertencem; isolam-se paulatinamente das lutas do presente, por não quererem se misturar com os “impuros”; por tudo isso, não articulam suas pautas com o cotidiano da exploração e da opressão vivido pela classe trabalhadora, descolam-se completamente dos trabalhadores e de suas lutas. São, assim, autônomas por antífrase (aqui: http://www.passapalavra.info/2015/04/103884)”.
E assim prossegue a esquerda “autônoma”: aqueles que, contra o leninismo, sugerem que os movimentos formulem claramente seus objetivos e os meios (passo a passo) de alcançá-los… Aqueles que, contra o leninismo, sugerem que todos os envolvidos numa luta participem de um esforço intelectual coletivo, base de uma necessária síntese programática e estratégica… Aqueles que, contra o leninismo, opõem o planejamento ao amadorismo… Aqueles que, contra o leninismo, sugerem que isso seja feito visando a massificação dos movimentos, único antídoto contra a burocratização… São o quê? “Burocratas”. A alternativa que busca combinar autonomia com estudo e planejamento é chamada “burocrática”.
Mas é claro: a esquerda dita “autônoma” deixou há muito de ser instrumento de luta. E portanto, não vai propor (a si mesma ou à classe) nada capaz de levar a luta a novos patamares… Nada capaz de potencializar a autonomia e a espontaneidade… Reduziu-se a ideologia e, portanto, ritual. É uma igreja, de santos portadores de “lugar de fala” e adeptos do “politicamente correto”: atestam seu “lugar de fala” mostrando seus estigmas… “Sou negro”… “Sou mulher”… “Sou da periferia”… Sendo assim o passe é livre… Basta seguir o “politicamente correto”, como os cristãos seguem os Evangelhos, para não perder o benefício… É esse o problema: a esquerda “autônoma”, “politicamente correta” e com “lugar de fala” criou um novo sistema biológico-racial-censitário. Convenhamos que não é necessário muito estudo e planejamento para demandar políticas de cotas em toda parte… Infelizmente a estratégia de renovação das elites, que a igreja da autonomia prossegue, em nada contribui para a emancipação do proletariado. É essa outra estratégia que faz falta.
A lógica do “substituísmo” é reeditada: não temos mais a substituição do proletariado por uma elite partidária intelectual, característica do leninismo e que deve ser criticada… O que temos agora é a substituição do proletariado por uma elite punk anti-intelectual, o que me parece muito pior. A primeira pelo menos produzia grandes obras teóricas e as divulgava amplamente entre as massas, contribuindo para seu refinamento intelectual, embora muitas vezes vulgarizasse a teoria e obstruísse tal refinamento, enquanto que o “autonomismo” em voga representa a falência da teoria. E o que responde à era do toyotismo para essas pessoas é justamente isso.
eu li partes ai desse debate e concordo com a falta de estudos e de uma busca de estudo coletivo acerca da questão do transporte, ta cheio de gente avuada nessas manifestações ai, baita massa de manobra que tenta ganhar coro com showzinho de confronto com a policia e não com debates de ideias. Por isso eu sugeria tanto aqui quanto no facebook, atos que pudessem ser pacifico para que desse possibilidade de ser um ato de conversa e ensino mutuo e não um ato de barulho. Eu cheguei a sugerir atos mensais na paulista, mas que fossem atos-aula, para discutir a questão dos transportes, mas quando se sugere isso, vc é açoitado como um pacifista boboca que não quer afrontar o status quo, mas afinal, afrontar o que? se as pessoas nem sabem como manejar a questão, que exige todo um aprofundamento teorico… Esse movimento portanto caiu nas mãos de um mote juvenil e ingenuo e que chega até a dar vazão para ideias esdruxulas conspiracionistas dos direitistas que zoam as vezes com razão, como aquele moviemento generico direitista zuado fez, o MBL. Virou piada isso tudo
Fagner, voltando ao ponto anterior do debate, queria observar um problema da sua argumentação, que é o seguinte: a organização de base não é antídoto à burocratização. Não é por ser “uma atuação ‘propositiva’ na base, organizando a base” que essa atuação necessariamente será “contra os gestores, contra os burgueses”. Com as bases bem organizadas, o controle dos gestores sobre os trabalhadores pode ser ainda maior. Não é justamente isso que mostrou, afinal, a experiência das organizações forjadas no último ciclo de lutas do Brasil? Não foi por ser um partido de massas com capilaridade em organizações de base de todo o tipo que o PT não se burocratizou ou deixou de governar para o capital; muito pelo contrário, foi esse enraizamento nas organizações da classe trabalhadora que permitiu ao governo petista desenvolver mecanismos renovados e ainda mais potentes de administração dos conflitos.
Caio, note que eu me referi a uma burocratização onde a atuação “propositiva” (termo seu) dos movimentos é concebida de cima para baixo, pela direção e sancionada pela base, e direcionada de baixo para cima, dos gestores dos movimentos aos gestores dos Estados “amplo” e “restrito”, quer dizer, empresas e Estado propriamente dito. Contra essa perspectiva, eu defendo a organização da base, pela base e para a base, contra os gestores e os burgueses. É tirar a prática da horizontalidade do campo da “punk-democracia”. Se o PT, o MST e a CUT, entre outros, tivessem funcionado dessa forma, “propositiva” mas ao mesmo tempo horizontal, eles não se teriam burocratizado. Um movimento ou partido de massas pode se burocratizar e dar lugar a um controle dos gestores ainda maior sobre os trabalhadores? Sim, PT e cia. estão aí para provar, mas isso não tem nada a ver com o que eu defendo. No PT e cia., há bases organizadas? Sim, mas organizadas por quem? Quem é que traça as diretrizes? Enfim: para que a sociedade comunista seja planejada e auto-organizada, a luta deve ser também planejada e auto-organizada. O proletariado deve aprender a lutar de maneira planejada e auto-organizada. (É até curioso que eu tenha de usar na mesma frase “planejado” e “auto-organizado”, porque o “auto-organizado” deveria pressupor já o “planejado”, mas certo autonomismo nos fez o favor de dissociar as duas coisas.) E o planejamento, tanto na autogestão da sociedade comunista quanto na autogestão da luta, deve ser cientificamente embasado: baseado num estudo da dinâmica da realidade concreta (Será pedir demais? Não importa, a demanda vem não deste ou daquele indivíduo mas do processo de luta.). PT e cia. transformaram movimentos de massa em movimento organizados, sim, com uma estratégia, sim, mas hetero-organizados. Então não vamos confundir uma coisa com a outra. Eu não sou leninista, nem stalinista, nem petista. Não sou um burocrata e nem dirigente do que quer que seja (e nem pretendo). E não quero ressuscitar o Partido Bolchevique nem dar nova vitalidade ao projeto democrático-popular.
não seria exatamente por isso que “apenas os Soviets” não são a revolução socialista?
Digo, a base pode estar organizada de muitas formas, inclusive teocraticamente. E não estou muito seguro da diferença, nestes casos, entre o auto-organizado e o hetero-organizado.
Autonomismo por autonomismo, os fazendeiros americanos em sua luta contra o Estado ianque estão se organizando militarmente pela base para defender sua autonomia. Poderiam lutar por um território controlado por eles mesmos e ainda realizar uma reforma agrária nas terras que o Estado americano controla.
Onde entra a ciência nisso tudo, aquilo que Fagner chama de “estudo da dinâmica da realidade concreta”? Isso as vezes parece ser irrelevante, frente ao imperativo de horizontalidade e formalismo de base ocos de conteúdo.
Lucas, pode-se “auto-organizar” qualquer coisa. Mas eu me refiro a uma auto-organização voltada para a apropriação e gestão do processo produtivo, pela qual os trabalhadores enquanto classe destruam as relações de tipo capitalista e inaugurem uma nova sociedade. O que precisamos é de uma organização da luta sem direção burocrática mas dotada de um programa baseado na realidade como ela é, e não como ela nos parece (aí entra a ciência). Um programa que aponte caminhos. E na verdade, não um programa engessado, nem mesmo um único programa. Precisamos é de um conjunto de alternativas programáticas, de um debate programático, que sejam testadas no processo de luta, sem perda da radicalidade. Enfim, cedo ou tarde a luta coloca impasses. E é preciso buscar respostas para eles na produção teórica, não na Bíblia. Comparar o que eu estou chamando de auto-organização com o que quer que se possa passar por, ou se queira chamar de, auto-organização me parece um modo equivocado de prosseguir o debate.
Contudo, revendo outro debate (aqui: http://www.passapalavra.info/2015/08/105836/), cheguei às seguintes conclusões. Nesse debate, eu argumentava que o que atrai os trabalhadores para a luta não é um programa fechado. Em parte, continuo pensando assim. O que atrai efetivamente, não todas as pessoas mas algumas pessoas (eu colocaria hoje) para a luta são as ações concretas das mobilizações e organizações, os choques com os capitalistas, na medida em que essas pessoas percebem que tais ações, sejam espontâneas ou não, estão de acordo com os seus interesses. Mas depois de atraídas, essas pessoas precisam saber qual rumo tomar. A repetição do mesmo roteiro e a ausência de um programa que se vai construindo, não de cima para baixo mas horizontalmente, funcionam então como repelente. O que começava a fazer sentido, através de ações de combate às iniciativas dos capitalistas, começa a perder sentido. É aí que adquire importância a elaboração estratégica horizontal. Mas outras pessoas precisam de algumas respostas primeiro, para se colocarem em movimento. Precisam que o movimento lhes apresente algum acúmulo ideológico que sirva de fundamento para a ação. Essas pessoas provavelmente, penso, já participaram ou testemunharam outras experiências de luta, mesmo que com certo distanciamento. De qualquer forma, esses trabalhadores já resistiram de alguma forma, mesmo que passiva, às iniciativas dos capitalistas. E precisam por isso de algumas respostas para se sentirem motivados a lutar.
Então, nesse sentido, não precisamos de um programa porque é a ideologia que gera a prática (questão, penso, cara aos leninistas e afins). Mas por outro lado, vemos que a prática vai demandando estudos e um programa que aponte possibilidades de desenvolvimento da própria prática. Descobrir tais possibilidades ajuda a reforçar uma prática. Não é à toa que os capitalistas estão sempre em busca de possibilidades de ampliação de sua dominação político-econômica, o que se faz através do patrocínio de diversos estudos. Mas aqueles estudos respondem a impasses da luta de classes. A classe trabalhadora precisa aprender a fazer algo semelhante.
Mas voltando àquele debate, eu me mantenho fiel em parte àquela perspectiva, mas mudei levemente de opinião, como se pode notar. Eu acho que eu era menos crítico à trajetória recente do MPL naquele momento do que sou agora.