Na medida em que reconhecemos as diferenças gritantes, mas apontamos as semelhanças que querem varrer para debaixo do tapete, temos um começo. Por Passa Palavra

Publicamos aqui um diálogo sobre os atuais tempos temerários em que vivemos, seus riscos e oportunidades para a esquerda anticapitalista. Nesses tempos em que alguns fatos desmentem as certezas do dia anterior, pensamos que a publicização de algumas de nossas divergências podem auxiliar na busca de critérios mais sólidos para avaliarmos a conjuntura

Fulano: Fatalmente, todas as forças políticas que até há pouco estavam na órbita do governo voltarão suas atenções para as lutas “contra a austeridade” que deverão pipocar daqui para frente. Claro que eles as farão com o propósito de dizer “viram, como era bom com o governo Lula/Dilma?! Precisamos urgentemente voltar ao governo!”. Pois bem, como fazemos para nos diferenciar destes setores?

johfradraakZutana: Há alguns dias eu conversava com um amigo sobre a necessidade de organizar um movimento contra o desemprego, levando em conta o tamanho do desemprego hoje. Depois conversei com mais algumas pessoas, mas a coisa não foi para a frente. A ideia era articular algo aqui onde moramos.

Nessa discussão eu tentei apresentar uma posição contrária à dos ex-governistas: a luta pelo emprego seria defendida como um primeiro passo para a transformação das relações de trabalho através do controle dos meios de produção. O emprego seria defendido como fundamental para que a juventude, a maior vítima do desemprego nos últimos tempos, não somente garantisse sua sobrevivência como também, a partir das lutas nos locais de trabalho, superasse as limitações dos movimentos autônomos envolvendo o transporte coletivo e as ocupações de escolas. No passado os trabalhadores criaram, por exemplo, associações de ajuda mútua para assistir trabalhadores desempregados, e chegaram a organizar serviços por conta própria (serviços de saúde, por exemplo), mas hoje esses serviços foram incorporados pelo Estado ou por empresas privadas. Devido à complexidade da organização social e à incapacidade de uma iniciativa como esta atender às necessidades particulares de cada trabalhador, é necessário ao mesmo tempo lutar contra o desemprego e buscar a solidariedade dos trabalhadores que controlam os mais diversos serviços públicos e privados (desde a educação até a previdência, passando pela saúde etc.).

Seja como for, da mesma forma que o emprego não seria defendido como um fim em si mesmo, também tais serviços não seriam defendidos enquanto tutela do Estado benfeitor, e muito menos objeto de lucro privado, mas enquanto serviços essenciais para o prosseguimento das lutas dos trabalhadores; nos dois casos a ênfase seria sobre a necessidade de um maior controle dos trabalhadores sobre o processo de trabalho, uma forma de potencializar modalidades de luta que vão desde as greves até as ocupações etc.; ao mesmo tempo seria útil promover algum tipo de assistência mútua ou de rede de solidariedade, que possibilitaria ganhos políticos em termos de fortalecimento da solidariedade de classe; por fim, seria o tipo de movimento que não poderia sofrer as acusações geralmente feitas pelos reacionários, de que os militantes não querem saber de trabalhar etc., já que a principal demanda seria justamente o emprego.

erikbaumannBem, esse foi o modo como consegui formular uma política contra a austeridade de modo inteiramente diverso dos ex-governistas. Provavelmente isso já foi até formulado por outras pessoas de modo muito melhor, mas desconheço. Enfim, os ex-governistas vão defender diversas pautas muito importantes: o que devemos fazer nessa conjuntura de tempos temerários é defender as mesmas pautas, e outras ainda, mas dando-lhes um sentido inteiramente diverso.

Beltrana: Respondendo ao questionamento de Fulano, uma primeira demarcação importante que precisamos fazer é a de assinalar as continuidades e diferenças entre o petismo e os temerários. E assim como há muito o que distinguir, há muitas continuidades a assinalar. Porque o discurso do campo petista agora é o de demarcar a diferença enquanto um campo que respeita o diálogo com “a sociedade”, que não é truculento, que atende às reivindicações setoriais etc., enquanto os temerários seriam o total oposto. Na medida em que reconhecemos as diferenças gritantes, mas apontamos as semelhanças que querem varrer para debaixo do tapete, temos um começo.

Sicrano: Estamos dando a crise política como terminada, como se a saída da Dilma acabasse com tudo e começasse imediatamente a aplicação da agenda Temer. Ainda não consigo decidir se esta crise é só um biombo para que outras instituições apliquem uma agenda de forma mais oculta e tranquila. Mas com a crise econômica, o judiciário está aproveitando a falta de grana no caixa 2 dos partidos para fazer uma limpa na classe política. Comprar um salvo conduto está muito caro e a delação premiada está liquidando o que chamava de poder no Brasil. (Só acho estranho ninguém desse povo lá ter sido assassinado ainda. Realmente, o Brasil mudou).

Por outro lado, eu não entendo a ânsia de alguns entre nós de tentar explicar a crise política por meio de uma crise econômica, quando o novo é a crise política e o Ministério Público Federal como agente depurador dos outros poderes da República.

louiswainBeltrana: Ao que tudo indicava semanas atrás, a situação estava dada imediatamente após o impedimento: governo Temer se estabelecendo, anúncios de medidas de certa forma já antecipadas ou esperadas etc., mas dada a demora em reagirmos e em construirmos leituras de cenário mais precisas, qualquer análise fica datada antes mesmo de ser publicada. Teríamos de preparar uma análise mais aberta, capaz de enredar novos acontecimentos e explicá-los mediante tendências que só se pode ver na análise econômica do capitalismo em nível global.

Quanto à ligação entre a crise econômica e a crise política, há razões de curto e de longo prazo para demonstrar esta ligação. No longo prazo, a novidade da crise política, a meu ver, é que ela só se tornou possível mediante a chegada ao poder do bloco hegemonizado pelo PT, que como fração dos gestores cuja origem social é em alguns casos diametralmente oposta à da fração até o momento dominante (bloco capitaneado pelo PSDB), instaurou, com algumas medidas simples de qualificação da força de trabalho, de ampliação do endividamento da classe trabalhadora, de cooptação dos movimentos sociais através do planejamento (conferências) e execução (conselhos gestores) de “políticas públicas” num modelo participativo de gestão etc., um regime em que a melhoria da qualidade de vida de frações significativas da classe trabalhadora se deu não pela ruptura com o capitalismo, mas com seu mais aprofundado enredamento nas malhas de reprodução econômica e social de sua exploração. Entre outras coisas, este modelo estava fundado no combate à corrupção como forma de garantir a eficiência e eficácia do investimento estatal, em especial na saúde, educação e outras áreas ligadas à reprodução social do capitalismo. Se hoje há um MPF que atua como “agente depurador dos outros poderes da República”, isto só se dá porque, em primeiro lugar, já era sua atribuição institucional fazê-lo pelo menos desde 1988, e porque o próprio PT reforçou-o neste papel desde seus primeiros tempos de oposição; em segundo lugar, porque em virtude deste histórico o PT foi vítima de seu próprio compromisso com o combate à corrupção, ao deixar Ministério Público e Polícia Federal de certa forma “sem pesos e contrapesos” e ao dar-lhes maior margem de manobra que sob Collor, Itamar ou FHC.

johfradraak02Quanto ao curto prazo, vamos segurar o papo para quando os dados que estamos recolhendo apontarem um quadro mais estável, mas basta dizer, para começo de conversa, que há ligação fortíssima entre a Lava Jato e a queda no preço do petróleo no mercado internacional.

Como se vê, a economia não explica tudo, mas se ficarmos somente no imediato, na crítica do noticiário ou no ressentimento, perdemos o fio da meada e deixamos sem explicar uma série de tendências importantes para compreender o desenvolvimento da conjuntura e provocar debates importantes.

Sicrano: Não acho que apontar o centro do problema sem passar pela economia seja pensar no imediato. O que você acha que vai acontecer com o PT quando Lula for preso? E os movimentos, como é que ficarão sem ter abertas as portas do Estado? Ou alguém duvida da prisão de Lula nos próximos dias? O PT foi desmantelado, só não vê quem não quer. Por exemplo, as gravações até o momento foram coletadas em março, bem antes do impeachment, e foram lançadas na imprensa pelo Judiciário, não pelo PT. O PT não tem mais nenhum truque: está na lama contando com essas mobilizações ordeiras de ocupação do MinC, dos escritórios do SUS etc., que nem atrapalham o funcionamento normal desses órgãos, nem chamam a população para tomar a gestão pública em suas mãos, nem fazem nada a não ser dar uma zuada. Fora destas mobilizações que giram no vazio, o PT não tem mais nada: não tem mais presidência, governo, máquina federal, não tem recurso para bancar os quadros e gestores que serão ou foram enxotados do Estado. Teremos um revival de grupos e coletivos?

E antes que me esqueça: o futuro da esquerda parlamentar petista será a reabilitação de seus membros depois do cumprimento das penas impostas durante a Lava Jato. E o futuro da esquerda radical será como essa massa de junho de 2013, caótico, sem qualquer instância de organização além de páginas nas redes sociais.

Beltrana: Vamos por partes, então:

Temos acordo de que a crise política não acabou, como imaginávamos dias atrás (todos nós, sem exceção).

Temos acordo de que um dos fatores da crise foi a “falta de controle”, por assim dizer, do PT sobre o MPF e a PF.

101Temos desacordo quanto ao desmantelamento do PT. Nenhuma estrutura organizativa deste porte se deixa desmantelar assim tão fácil. Pode se ver sem alternativas diante de uma conjuntura, pode inclusive deixar de ser a força política hegemônica em dado momento, mas não deixa de existir pura e simplesmente porque a figura que colocou em sua proa caiu na água durante a tempestade. Veja-se, por exemplo, os casos do PC russo sem Lenin, do PCB diante do golpe de 1964 e com o caso das cadernetas de Prestes, dos peronistas depois da morte de Perón, dos trabalhistas depois do suicídio de Vargas, dos sankaristas sem Sankara… poderia citar muitos outros, em situações muito díspares e certamente mais graves que a do PT sem Lula. A falta de norte imediato é evidente na completa desorientação do partido diante da futura prisão de Lula e do impedimento de Dilma; isto não quer dizer, entretanto, que o partido deixe de ter seu peso na conjuntura. Ainda mais quando ainda tem 640 prefeitos e 5.181 vereadores até o final de 2016, sem contar os 108 deputados estaduais, 15 senadores e 59 deputados federais, além de uma base eleitoral fiel capaz de garantir até o momento, em qualquer circunstância, entre um quinto e um terço de votos cativos entre os votos válidos, sem contar os 1.589.574 de filiados (por mais que grande número destes filiados tenha sido arrebanhado sem qualquer compromisso para votar nos PEDs). Sem contar, evidentemente, os milhares de sindicatos filiados à CUT, que repassam a ela parte do imposto sindical. É exatamente esta base parlamentar, executiva, sindical e eleitoral que não pode ser desconsiderada, uma vez que muito antes de existir PT encastelado nos cargos federais mais importantes foi ela quem sustentou incontáveis ações de movimentos sociais.

Temos acordo quanto ao revival de certos grupos.

Temos desacordo quanto ao futuro da base parlamentar petista. Se há uma coisa que o PT aprendeu a fazer nos 22 anos de existência antes da eleição de Lula foi oposição. É certo que haverá uma “revoada” no PT para outros partidos mais ao centro ou mais à direita, mas mesmo considerando a “revoada” o PT tem bancada muito maior que em 2002. Não garante maioria parlamentar, mas garante muita zuada no Congresso, que certamente reverberará naqueles mobilizados “contra o golpe”.

064Temos desacordo mais profundo quanto ao futuro da esquerda radical, e mais profundo ainda quanto à pertinência desta categoria para analisar a conjuntura. Em primeiro lugar, porque a dita “esquerda radical” sempre foi e continuará a ser um zero à esquerda em qualquer conjuntura da história; são “radicais” exatamente porque pegam os problemas pela raiz e apontam para onde ninguém está olhando, e estes traços condenam a “esquerda radical”, historicamente, ao cassandrismo, ao papel de “visionários” ou “gênios” (quando suas ideias chegam a ser adotadas tardiamente por movimentos políticos e sociais massivos) etc.. O que importa, numa análise política que se pretenda precisa e acurada, é entender não o que diz e faz a “esquerda radical”, mas sim por que o que ela diz e faz não “cola”, não “empolga”, não “arrasta as massas” no momento em que esta mesma “esquerda radical” é mais ativa.

Por último, queria registrar que só o diálogo que construímos para construir um artigo já valeria ser transformado em outro artigo. Há divergências, mas são divergências tão nodais e importantes na conjuntura que não vejo por que não levá-las a público.

As ilustrações deste artigo são de Johfra Draak, Louis Wain e de esquizofrênicos anônimos.

3 COMENTÁRIOS

  1. foda se o pt, agora.

    a urgência está em tirar temer e seus aliados retrógrados do executivo!

  2. “O que importa, numa análise política que se pretenda precisa e acurada, é entender não o que diz e faz a “esquerda radical”, mas sim por que o que ela diz e faz não “cola”, não “empolga”, não “arrasta as massas” no momento em que esta mesma “esquerda radical” é mais ativa.”

    Esse trecho me faz pensar em eixos de análise: composição social da esquerda radical, como se organiza entre si, como se relaciona com a base social (faz), quais são os canais e métodos de comunicação para “empolgar” ou não (diz).

    Creio pessoalmente que existem dois planos, o político e o econômico, que certamente se entrelaçam, mas podem e devem ser analisados em suas particularidades. O âmbito político é preferido pelos diversos partidos que ou tentam manter-se nos cargos de gestão ou por aqueles que estão em constante auto-construção. A política volta a dominar o econômico por meio do sindicalismo partidista, hegemônico na esquerda, tanto popular-democrática quanto trotskista. Quanto ao econômico, acredito que a crise política abre brechas para agitação, o problema realmente é que a economia não vai deixar de retrair esse ano, e talvez nem ano que vem. São duas questões que se abrem: a possibilidade de uma crítica de fundo sobre o sistema, mas também a fragmentação e a degradação social que são um obstáculo à luta e fomentam o desespero e as saídas salvadoras.

  3. PT or not PT : DILEMA DA IDIOTIA HEMIPLÉGICA
    .:. onde abunda fuck you e escasseia take it easy
    assiste-se à fanfarronice catártica
    supercompensando a troglodítica &
    enciclopédica
    imbecilidade.

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