A lua e as estrelas como testemunhas. Uma obra de arte morta como a ópera, um fone dividido e, de repente, sinto a barba de Cris em meus lábios. Por Arthur

Leia aqui a 3ª Carta de Helo a Arthur.

Ouro Preto, 22 de abril 2016

Querida Helo,

Suas cartas foram surpreendentes. Hemingway adoraria sua penúltima carta pela expressão de verdade nela contida. Fico aflito. Uma gravidez nos é algo desconhecido e de todo incompreensível.

Morro de medo. Tenho algum dinheiro guardado se precisar, e quiser, pode pegá-lo, afinal de contas se for interromper a gravidez tem que se precaver e fugir dos açougueiros.

Peço-te, não vá tomar nada, pois minha prima quase morreu tomando Cytotec. E veja só; hoje a menina está lá inteirinha, correndo para lá e para cá. Quer dizer, um sacrifício vão e humilhante ― os médicos no hospital ainda queriam prendê-la (horripilante!).

Tome chá!

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Vinicius é realmente um middle class, desde suas entranhas até os menores sinais de seus gestos. E não estou aqui falando de suas escolhas conscientes, mas daquelas inconscientes. Aquelas que não percebemos, mas que, no entanto, nos é determinante.

Os dias passam por aqui. Se estendem como um olhar infinito pelo deserto. Vejo todas as curvas, a calma silenciosa e um fragor suado que embota a visão. Nosso delírio geralmente é nossa verdade.

Aconteceu algo inusitado. Como o deserto, os dias em Ouro Preto ocultam, sobre a aparente calma, centenas de pulsações, pulsões e desejos. As escolhas inconscientes que fazemos revelam muito sobre nós.

Essa escolha, que se revela por vezes vergonhosa, não se escreve. Não se teoriza. É refletida a noite, ao nosso ouvido, com voz angustiante. No travesseiro. Não nos deixa dormir e nos envergonhamos. Estamos entregues a dor de nosso próprio julgamento.

E o que é uma vida essencial senão aquela que abdica de todo conforto e de toda segurança, da lei, das regras e, sobretudo, do ideário burguês? A única vida épica sob o capitalismo é a vida dos párias que abdicam das leis e se entregam ao crime.

Desculpe se soei absurdo! Talvez, sim. Talvez porque agora tenho minha nova paixão. Cris. A paixão é algo muito estranho, de fato. E eu acreditando que não havia esse sentimento mais no meu coração.

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Estou apaixonado por um homem. Um homem. Agora, muita coisa faz sentido. Meu asco pelos peitos fêmeos. Minha ojeriza sobre os assuntos. Pelos cabelos, pelas ancas, minha frieza absoluta em matéria sexual.

Centenas de páginas escritas sobre verdadeiras moças devassas, aparecem agora como uma recompensa pelo recalque vivido durante vinte e oito anos. E Vanessa entenderá? Mas, que nada, ninguém precisa entender nada!

O sexo de Carla me mostrou muitas coisas. Minha tendência ilibada e assexuada me respondeu outras mais. Tornando-me forte, sou agora meu próprio governante. Aplicada a minhas escolhas a palavra beleza me indica liberdade.

Enfim, ensandeço. À minha alma sedenta ao meu corpo propõe dedicação. Cris me envolveu, me trouxe consigo. Tudo aconteceu tão de repente que em pouco tempo eu me vi contaminado. E descobri, sou, como se dizia antigamente, um pederasta.

Com orgulho.

A paixão agora me arrasta. Cris é comerciante de drogas e sua vida é desde sempre desregrada. Mas, o que me chamou atenção não foi isso. Comprando meio quilo de maconha com alguém que leu Bakhtin? Foucault? Sensível e persuasivo.

Fez-me ceder. Criticou-me. Achincalhou-me. Em suas palavras o que era minha vida senão uma vida vazia a espera de Godot? O respeito decoroso as instituições e uma revolta “revolucionária” que raramente ultrapassa os trinta anos.

Os bandidos têm o seu poder: não é um vão elogio. A graça elegante, um pouco diminuída pela desfaçatez do andar gingado. Tudo soa neles como algo trágico, e não é simplesmente a miséria que os guia para esse caminho. O poder da vontade sim.

Insensato tudo que digo. Estou apaixonado Helo! Apaixonado. Obstino-me na servilidade. Pouco importa. Os mais bonitos criminosos são aqueles que diante da morte riem. Nós “homens de bem”, jamais vamos entendê-los.

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Há um quê de tomada de ação. De congelamento do tempo. O crime rouba para si novamente o que nos foi tomado: o tempo. Há um roteiro, uma cena, os personagens. Há a vida. Há a morte. Tudo feito no risco, em risco e pelo risco, com tranquilidade.

“Quem empunhou uma arma dificilmente irá querer empunhar um martelo”, disse Cris rindo-se. A violência dos seus olhos, acostumados a audácia apaixonada pelo perigo, deslizava sobre mim.

Um tremor eu senti. Havia uma espécie de sedução. A violência seduz e produz dentro de nós redemoinhos. Ela se torna uma agitada calma que nos acostumamos num piscar de olhos.

O rosto de Cris é encantador. A barba grossa junta ao bigode. Um figurino especifico para agradar a clientela universitária que o faz lucrar. O nariz lhe dá uma aparência viva de uma alma inquieta.

Aqueles que o devem, universitários ou não: revista-os, rouba-os, às vezes lhes dá, como numa lição não aprendida dos pais, um pontapé na cara. Sob as roupas hippster se oculta uma raiva sombria, e de toda radiosa, visível nos traços.

Tudo era indício de que eu havia de fato cansado de viver nos palcos e gostaria agora de viver na vida. Atrai-me. Excita-me. Toda aquela violência obviamente é contida. Uma calma obtida pelo costume ao submundo.

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Cris opera, na noite perturbadora, nas subidas e descidas históricas de Ouro Preto. Se mete em ruelas. Passa papéis para meninos que saem rapidamente, e tudo com uma seriedade que exclui toda brincadeira.

Quando comigo se encontrou, eram quase duas da manhã. Foi Ronaldo quem me apresentou para ele. Senti o cheiro de aventura. O modo como me olhava com uma espécie de contentamento e humildade era apenas um convite as boas conversas.

Ronaldo demonstra imensas saudades e sempre toca no seu nome. Aquele rosto alegre com covinhas estruturadas assimetricamente com o furo no queixo sempre o torna singular. Sem contar sua alegria infinita. Gente que nos esforçamos para que não se vá.

Eu estava no nosso amado Porão [1] me acabando na cerveja, acompanhado de todo nosso elenco. (Uma coisa que ainda não te contei, estamos ensaiando Navalha na carne e Carla está me ajudando).

A noite tinha um certo mormaço no ar e aquele aspecto soturno e barroco que somente essas ruas propicia. Você sabe! Tem-se aqui a impressão de que a qualquer momento se verá donzelas de vasquinhas e homenzarrões de Gibão e cartucheira.

O elenco foi-se embora e, novamente, não ia poder voltar para casa. Em todo caso Vanessa preferia que eu dormisse na casa de alguém ao invés de pegar a estrada. Ficaram Ronaldo e seu desconhecido amigo.

Do bolso Cris sacou diversos papelotes, alguns celulares que os nóias “acadêmicos” o haviam entregue ― ou ele havia roubado. Ao beber conosco, contou-nos suas maravilhosas aventuras numa linguagem despretensiosa e precisa:

“Um futuro médico filho de deputado a quem ele dá um pontapé e furta o celular e que, de dedo em riste, brada: ‘vai pagar muito caro, você não sabe com quem está se metendo!’”.

Esse foi o prólogo de uma noite vitoriosa. De repente, uma perturbação me fez perceber que estava para nascer em mim um novo papel: o criminoso. Na realidade tudo era inebriante. Tudo é melhor fora de nós.

Quem se habitou com a violência torna a vida algo simples. Domestica-a. Os movimentos compostos pela unidade entre a alma e o corpo são simples. São traços marcados com precisão. Assim é Cris.

Aquela aparente calma dos bandidos é como a folha que cai levemente, mas que de repente é violentamente arrastada pela impetuosidade de um brusco movimento, rápido e devastador, que causa surpresa e é desfeita, em seguida, pela indignação:

“Logo comigo!”, pensam as vítimas.

O que sou eu no meio disso Helo? Como posso fazer essa descoberta tão de repente? Tais definições que faço, naturalmente estão imiscuídas na aventura, desejo e paixão que agora nutro por Cris.

As escolhas das palavras nessa carta têm em comum minha tentativa de compreender a mim mesmo. E para tanto Heloisa precisarei de uma certa cumplicidade tua. Esse lirismo me incomoda.

O lirismo faz tempo que morreu. E estamos aqui para enterrá-lo.

Mas, não posso narrar tais aventuras com o disparatado linguajar de um jornal. Linguagem habitada por filisteus que abandonaram a literatura. Às vezes penso que se alguns grupelhos de esquerda fizessem a revolução a beleza desapareceria da terra.

Pensei alto e escrevi ― risos. (Já imaginou todos com o tenebroso uniforme Norte coreano? ― risos). Parei!

A paixão é algo que acontece. Um quê de abertura, cumplicidade, deixar rolar e, portanto, de escolha. Não somos cães, sabemos aquilo que se pode evitar, mas somos seduzidos. Portanto, escolhemos a sedução.

Cris me seduziu por completo. Talvez o que me seduzira fora também uma nova possibilidade. Você sabe como para chegar em casa sempre procuro o caminho mais longo e conversas com as pessoas mais estranhas.

Da beleza de nossa vida depende sempre um ato fora do comum, uma ação disparatada, e era exatamente isso o que me oferecia Cris. Da luz ocre de meu teto desaba sobre minha cabeça nesse instante a vontade pela vida.

Lá pelas tantas, quando os assuntos políticos se esvaem, quando a estética de Aleijadinho cansa de ser por nós reparada e quando nos agastamos de falar tanto de nós mesmos, Cris diz:

“Tem sempre algo bom na vida!”

“Há sim, algo que está para além desse real que nos persegue!”, disse Ronaldo.

“Você fala do real, mas que é esse real?”, disse Cris e continuou, “Eu desafio sempre esse real, talvez, eu tenha uma função nele que é justamente desafiá-lo e fabricar toda essa merda de segurança! Talvez eu o alimente, tanto faz! Mas, ainda assim eu zombo do real. O real nos impõe o medo da morte… esse medo eu não tenho!”

“Segundo Montaigne… ou Montesquieu: Filosofia é aprender a morrer!”, falei com tranquilidade.

“Então quando aprendemos… não precisamos mais da filosofia?” ― respondeu Cris ironicamente levantando seu copo de chope e me dando uma piscadela.

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“Talvez, esse tenha sido o segredo de Sócrates!”, redargui rindo e retribuindo o gesto, erguendo meu copo e bebendo em seguida.

“… Condenado aos 70 anos e pouco se importando com a morte. Sócrates era dos meus… e você tem medo de se arriscar?”, fez Cris fixando-me nos olhos.

“Mas eu ainda não tenho 70 anos…”, redargui prontamente.

“A ação de Sócrates não tem nada a ver com sua idade e sim com suas ideias e convicções… Um homem de espírito, talvez, só se equipare com Jesus ou…” encerrou rindo, “Marighella!”

“Poxa, assim você me fode… é, realmente sou, ou devo ser, um covarde!”

“Não fique triste, há sempre tempo para encarar a vida de frente e desprezar o que se foi … Eu não tive muitas escolhas e quer saber onde aprendi filosofia? Na cadeia! De fato uma das coisas que mais me estragaram!”, fez Cris com ironia bebericando a cerveja.

“Um brinde a filosofia!”, bradou Ronaldo com alegria ao que todos erguemos nossos copos e brindamos.

Um personagem que escapou das páginas de Daniel Defoe? Um bandoleiro nobre e que guarda profundo conhecimento da alma humana. Era Cris: “Sabemos quem somos quando aquele fio tênue entre morrer e viver se expressa em sua máxima intensidade”.

Ronaldo já estava cansado e propôs que fossemos. Eu me ergui prontamente e fomos fechar a conta. Ademais éramos os últimos fiéis do Porão que só concedeu aquela graça por sermos seus fiéis seguidores ― risos.

“Você podia dormir lá em casa e daí a gente continuava a beber, já está quase para amanhecer mesmo!”, disse Ronaldo.

“Certo!”. E assim fiz.

Em menos de dez minutos Ronaldo abria o portão, alisava seu cãozinho e nos convidava para entrar. A rua estava um breu. Sua casa era de todas a mais bela. Confortável. Na verdade, deslumbrante. Em frente à igreja da Nossa Senhora do Rosário.

Linda!

A noite enluarada servia para preparação de tantas alegrias secretas, naquele lugar digno, que se tornara, assim sem mais nem menos, a condição da minha felicidade. Das paredes, eram os quadros que diziam às legiões invisíveis o meu triunfo.

Estava inexplicavelmente feliz. E não sabia qual motivo. A cerveja, o chope, e agora a maconha, tudo parecia combinar naquela noite. As paredes caiadas, a cal, a cor verde que circundava as janelas e nós três sentados bolando um fino.

Um para cada da melhor maconha de todos os tempos!

Todos os móveis pareciam ganhar sentido. Minhas roupas puídas, a verdade nos olhos de Cris e a alegria de Ronaldo em nos servir um pedaço de pizza amanhecido que foi devorado como se fosse o mais requintado prato das Minas Gerais.

Fumamos…

Ronaldo se despediu e foi se deitar e aí a coisa se complicou:

“O que sabe sobre o amor…! Quem sabe…? A monogamia é uma violência!”, bradei olhando-o. Na verdade, eu já nem sabia ou não me lembro como chegamos nesse assunto.

“Não tenho dúvidas disso!”, disse-me rindo com os olhos ardendo.

“Já ouviu Carmen? Já leu Prosper Mérimée? O fogo da Espanha representado por um francês de imaginação forte… e depois musicada por um outro francês liberto! Uma das maiores óperas de todos os tempos, uma das maiores heroínas do mundo ocidental, que influenciou inclusive Machado de Assis. Os olhos de Carmen também eram oblíquos e dissimulados! Vamos ouvir agora, porque não?!

“Claro, vamos sim!”, respondeu Cris em êxtase, “Na verdade um ex-detento ouvindo ópera, por essa minha mãe não esperava!”. Espera ai!”, fez pegando seu celular, colocando no youtube e dividindo o fone comigo.

Foi a chave perfeita para fechar mais uma noite amalucada.

Descrevendo-a, recrio aquele pequeno momento, mas eis que intervém minha dúvida: sob luzes naturais. A lua e as estrelas como testemunhas. Uma obra de arte morta como a ópera, um fone dividido e, de repente, sinto a barba de Cris em meus lábios.

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Sua boca, seu cheiro. Tudo me envolve. Ele me envolve em seus braços. Seu corpo cheio de marcas das aventuras. De uma vida desregrada. O fone resolve escapulir de meus ouvidos, mas Cris com um sorriso amavelmente os coloca de volta.

Fogo e paixão se sucediam. Eu me entregava de verdade. Mas, de repente, e infelizmente, Ronaldo acende a luz de sua ampla sala e um sonoro pedido de desculpas interrompe tudo.

Não voltei ao clima. Não pude. Condenava-me e resolvi ir embora. E como me arrependo. Agora estou numa triste lembrança dos olhos outrora confiantes de Cris desfeitos pela minha recusa pudica.

Tudo é tão novo que me pego cheio de surpresa esguelhando pelas esquinas de Ouro Preto. Todo gingado malandro faz meu coração disparar. Heloisa, eu confesso, estou simplesmente apaixonado. Talvez, pela liberdade que me deu o Cris.

Talvez, por ter abortado o que podia ter sido e que não foi. Não sei, mas quero ir até o fim nisso.


Ronaldo mandou lembranças.

Tia Lazinha mandou lembranças e falou que vai preparar aquele Tutu venenoso que só ela sabe fazer, com aquela cachacinha para a gente comer e, depois, foder escondidos (risos).

O pessoal do teatro está te esquecendo, se eu fosse você viria pra cá com urgência.

Ainda não perdoei o fato de não ter vindo nos ver nesse feriado. Estava tudo pronto para te receber; a rede, a poltrona, os baseados, o doce, a bala, a cachaça (para o inferno!).

Faça com urgência o teste de gravidez…

Se precisar de dinheiro, me peça por favor!

Saudades da porra!
De quem te ama
Arthur.

*PS – não tenho cabeças para escrever sobre Vera Pavlovna, quem sabe na próxima!

Nota
[1] Trata-se de uma cervejaria de Ouro Preto

As imagens que ilustram esta carta são de Steve Walker.

Leia aqui o Conto de Tereza.

2 COMENTÁRIOS

  1. Se são os párias épicos não há neles nenhuma contradição entre a alma e o mundo… logo são os super homens de um mundo sem Deus

  2. EPISTOLÁRIO SEXUAL APELATÓRIO:
    Párias épicos ou parasitários patéticos?

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