Os agentes da polícia comportam-se como um exército ocupante num território ocupado. Segundo as melhores regras da guerra contra-subversiva, cercaram o bairro e impediram os moradores de entrar ou sair sem passar pelo ritual da identificação e revista.

Os noticiários voltam a abrir com títulos acerca de «desacatos» e «violência» em bairros problemáticos da periferia de Lisboa. Desta vez tudo aconteceu na Quinta da Princesa, bairro da Amora (Seixal).

A PSP, em comunicado, conta a história do costume. Um carro-patrulha da polícia dirigiu-se ao bairro pelas 02:30h de 25 de Agosto, porque recebeu uma chamada indicando que estavam a arder duas viaturas numa praceta do bairro. Segundo o comunicado, a PSP foi “recebida com pedras e um cocktail molotov. Perante o grau de violência, foram de imediato deslocados reforços da PSP para controlar a situação”.

quinta-1Segundo a tradição do jornalismo de inspiração policial, fortemente enraizada nas redacções portuguesas, esta será a versão a dar forma aos títulos e manchetes. Pelo meio, porém, alguém parece ter sentido a necessidade de explorar o espectáculo e, na encenação dos directos televisivos, uma outra versão começou a tomar forma. Felizmente os habitantes do bairro escolheram ser mais do que meros figurantes e resolveram contrapôr aos gabinetes de imprensa da PSP uma verdade inconveniente, mas necessária – os agentes da polícia comportam-se como um exército ocupante num território ocupado.

Luísa Semedo, de 26 anos e representante da associação juvenil “Esperança”, conta que a polícia apareceu na noite de sábado (22 de Agosto) à procura de uma mota roubada que nunca apareceu. “Tivemos um churrasco no domingo com gente de outros bairros, estávamos a confraternizar e estava tudo bem, mas ao início da noite a polícia chegou ao bairro para apreender uma moto que julgava ser roubada. O dono da mota mostrou os documentos e estava tudo certo. Houve um rapaz que cuspiu para o chão, eles acharam que era provocação, e chamaram-nos pretos e ratos de esgoto. Inadvertidamente, a polícia começou aos tiros, a mandar dispersar a multidão e eu fui agredida. Não tenho nada contra a polícia, mas acho que acções destas geram violência”. Luísa diz ter sido agredida pelas forças de intervenção com pontapés e cassetetes. Entretanto, alguns moradores apanharam do chão balas de 9 mm, que pertencerão às metralhadoras das autoridades. “Eles aparecem muitas vezes por aqui, e há um dia em que as coisas explodem”, comenta outro morador.

A história ganha, então, outra forma. Não apenas a PSP obteve uma resposta à sua «intervenção», ocorrida duas noites antes, como fez questão, por sua vez, de exibir o seu novo armamento, disparando balas de 9 mm que os moradores se encarregaram de mostrar perante as câmaras de televisão. A resposta não podia, obviamente, ficar por aqui e o comando distrital da PSP (Setúbal) fez questão de convencer os incrédulos relativamente à genuína natureza da sua actividade de «pacificação». Segundo as melhores regras da guerra contra-subversiva (estes generais de opereta não inventaram nada), cercaram literalmente o bairro e impediram os seus moradores de entrar ou sair sem passar pelo humilhante ritual da identificação e revista. Fizeram questão de ali concentrar vários meios, numa ostensiva exibição de forças, convencidos das virtudes dissuasórias do seu poder de fogo. Acreditam porventura que, dessa forma, transmitirão aos moradores do bairro o medo que sentiram quando se viram atacados e obrigados a retirar e aguardar por «reforços». Tudo isto permitiu-lhes «identificar» 12 pessoas e deter uma, que segundo algumas testemunhas se preparava para ir trabalhar.

Fotografia de Francisco Santos
Grafitti na Quinta da Princesa (fotografia de Francisco Santos)

O que disto se retira é, fundamentalmente, a surpresa amedrontada com que a PSP reage a qualquer gesto de resistência à sua autoridade. Os seus abusos parecem ser tão frequentes que os agentes em patrulha os consideravam já aceites, instituídos, tradicionais. No seu imaginário militarizado, uma rusga feita de agressões e insultos é já uma parte integrante da paisagem. Parecem não acreditar quando um grupo de «desordeiros» responde. A «violência» que os surpreende do lado dos pobres parece-lhes intolerável e, como disse o Primeiro-Ministro a propósito de um episódio semelhante ocorrido no Bairro da Bela Vista (Setúbal), «inaceitável em democracia».

A PSP foi rechaçada de um bairro durante uma noite e obrigada a conquistá-lo e ocupá-lo permanentemente. Fazendo-o, surgiu aos olhos dos moradores como aquilo que verdadeiramente é, na proximidade como na distância: um exército, cujas funções se revelam cada vez mais abertamente, dirigido contra os pobres e os filhos dos imigrantes. Uma força militarizada encarregue de garantir, à lei da bala e do bastão, a «paz social», a «ordem pública» e a «tranquilidade», num tempo em que vários factores contribuem para uma revolta social generalizada. Um bando de mal-feitores armados e equipados à custa de quem trabalha, encarregue de defender um regime que desfalece e a clique mafiosa que o governa.

Disparam porque têm medo e têm boas razões para ter medo. Passa Palavra

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here