Por F. Palinorc
Anexo
Abaixo, uma carta de 1997 abordando uma grotesca pantomima. A CCI, uma gangue de ultraesquerda bem conhecida (aqui chamada de “aparato”), expulsou um de seus líderes e estava propondo um “processo” chamado “Júri de Honra” (!) para confirmar a expulsão. Todo o material usado aqui foi obtido da imprensa pública e o escritor ofereceu esses comentários a um amigo, que não é membro de nenhuma gangue. O caso mostra a plena patologia de uma gangue política. A carta foi levemente editada. O caso não foi o único. Todas as gangues de esquerda e ultraesquerda mostram paranoia e sadismo similares. Do ponto de vista da história, o caso é interessante também porque mostra as atividades de gangue de Rosa Luxemburg e Lenin, dois ícones reverenciados do esquerdismo e da ultraesquerda, e a completa integração do Partido Social Democrata Alemão, já antes de 1914.
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Caro amigo,
Sobre a questão de JJ e o “Júri de Honra” proposto pelo aparato. Tive que reler algumas vezes o artigo The Jury of Honour, a weapon for the defence of revolutionary organisations [O Júri de Honra, uma arma para a defesa das organizações revolucionárias] (“WR 201”, p. 4) para encontrar algum sentido no que eles estão dizendo. Alguns pensamentos sobre a questão.
A expulsão de JJ significa que um processo já tinha ocorrido dentro do aparato e que ele foi julgado “culpado”. Assim, por que o processo adicional? O aparato apresenta o “Júri de Honra” como sua resposta à rejeição de JJ às acusações do aparato. O aparato alega que o “Júri de Honra” é um procedimento tradicional do “movimento operário” (citando o caso de Azev e de Radek), e insiste que JJ deve recorrer e se submeter a esse novo tribunal.
O texto continua: “Quando um militante é o objeto de sérias acusações, ele tem o dever e a responsabilidade de mostrar a lealdade de seu engajamento recorrendo a um júri de camaradas encarregados de fazer uma profunda investigação de sua trajetória e ações. Qualquer membro de uma organização comunista [mas JJ não é mais um membro] que, confrontado com essas acusações, recusa defender sua honra militante comunista só pode dar crédito, pela sua atitude de capitulação, às suspeitas que pesam sobre ele…” (ibid).
Poderíamos pensar que toda questão do recurso é requisitar a uma corte superior que reveja uma decisão de uma corte inferior. O aparato se considera uma corte inferior de algum tipo? Dificilmente, assim ele NUNCA será limitado em qualquer decisão desfavorável desse “Júri de Honra”. Para evitar surpresas, ele vai investigar cuidadosamente, com direito de veto, a composição desse tribunal (porque simpatizantes e contatos dificilmente existem hoje em dia; se a maioria se converteu em “parasitas”, quem será o júri?). O CWO pode concordar em participar. Afinal, eles orgulhosamente afirmam: “No passado nós apoiamos o CCI contra divisionistas [splitters]…” (RP 5, p. 19). Mas eu duvido que o IBPR, seu patrono, aceitará esse papel, a menos que eles possam usá-lo como um fórum para queimar a CCI, acusando-a de “conselhismo”.
Um recurso é motivado pelo desejo de desfazer uma injustiça. Do que lemos, não parece que JJ quer retornar ao aparato. Ele sequer propôs esse “Júri de Honra” e parece ter se recusado a participar nele. Em todo caso, o aparato não disse que JJ poderia ser reabilitado se o “Júri de Honra” o absolvesse das “acusações”. O aparato está convencido da “culpa” de JJ, que é a razão de o terem expulso, assim, suas alegações de inocência não fariam sentido nem naquele tempo e nem agora. Eu noto que a ausência de cooperação de JJ não vai enfraquecer a persistência do aparato. Seja como for, é preciso dizer, essa proposta não é motivada pela preocupação pelo bom nome de um ex-membro (quão cavalheirescas e fora de questão são essas alusões à “honra” e à “lealdade”).
O aparato tem outra agenda: “… a necessidade de recorrer a um Júri de Honra (ou Tribunal Revolucionário) não é imposta apenas para salvaguardar militantes ou para a saúde moral da organização. Esse processo político constitui também uma arma para a defesa do meio político proletário confrontado com elementos perturbadores, seja agentes do Estado ou simples aventureiros agindo por sua própria conta” (ibid.). Assim, o aparato revela a motivação subjacente – o “Júri de Honra” é outra tática na campanha estratégica contra o “parasitismo”. De passagem, ele buscará caluniar ainda mais JJ, junto com aqueles que “não entendem os perigos do parasitismo”. Voltemos às acusações originais contra JJ. Em seus artigos sobre o “caso” de JJ, o aparato não cita qualquer documento maçônico escrito por JJ, nem cita testemunhos de ninguém. Porém, ele é acusado de constituir “… uma rede secreta de adeptos da ideologia maçônica” (ibid.). Há um dossiê interno sobre JJ – foi oferecido a um ex-membro, L, que o visse. A peça deve ser um tanto interessante, dado que o aparato não publicou nada dele. Além disso, não é mencionado se os “adeptos maçônicos” de JJ foram expulsos. Curiosamente, o recente RP 5 afirma que “… ao menos uma dezena de outros membros da organização saíram…” (p. 19). No último WR, é dito que “JJ rejeitou os argumentos dados para sua exclusão, especialmente o caráter consciente e deliberado de suas ações, ao atribuir aos julgamentos da CCI um ‘delírio coletivo’ e uma ‘paranoia interpretativa’ (sic)”. Isso sugere que JJ tentou se defender. Nunca é tarde, bravo, JJ!
O caso Chénier de 1981 estabeleceu importantes precedentes para a “defesa da organização” (embora eles remontem à Marx e Engels, e ao jacobinismo). Em 1981, o aparato também invocou um “Júri de Honra” para justificar seus ataques ganguistas, mas outros aparatos farejaram a sujeira e mantiveram distância. Quando a nova gangue de Chénier, L´Ouvrier Internationaliste, respondeu com uma convocação para formar um tribunal para limpar o nome de Chénier e julgar as ações do aparato, o aparato recusou participar incondicionalmente. Só o aparato tem direito histórico de organizar processos, ataques e expulsões.
Para o aparato, os processos não servem para estabelecer a verdade, mas para punir. O acusado é automaticamente culpado, porque na visão do aparato, “a verdade” invariavelmente pertence aos Torquemadas da direção do aparato. Um processo é para servir “penas”, como num auto-de-fé. Antes de comentar os exemplos dados pelo aparato, de Azev e Radek, não esqueçamos que esses dois não foram expulsos de sua organização antes dos vereditos. Portanto, não há analogia com o caso de JJ. Isso também vale para Malinovsky, que, ao contrário do que o aparato diz, enfrentou um processo do partido em junho de 1914. De fato, ele astuciosamente requisitou um “Júri de Honra” para limpar seu nome! Uma comissão foi formada, presidida por Hanecki, com Lenin e Zinoviev como membros. A comissão se reuniu por semanas e nada concluiu quando a primeira guerra mundial aconteceu. Mesmo em 1916, Lenin continuava a acreditar na inocência de Malinovsky e se correspondia com ele. Quanto valor tem um “Júri de Honra”…
Não comentarei muito sobre o caso de Azev, cujo partido, o SRs [socialistas revolucionários], nunca foi parte do “movimento operário” apesar da afirmação do aparato. Porém, é o único caso citado em que um “Júri de Honra” parece ter descoberto um agente provocador. No entanto, uma leitura cuidadosa da versão do aparato sugere um “Júri de Honra” mais interessado em proteger um de seus “próprios” – Azev – contra a evidência externa de Burtsev, o “simpatizante” (que logo foi considerado algo como um “parasita”). Azev foi finalmente exposto não por causa do “Júri de Honra”, mas mediante a perseverança de Burtsev e a denúncia de Azev por um ex-diretor geral da polícia czarista.
No caso de Malinovsky, agente da Okhrana, o aparato pontifica: “Essa atitude responsável dos SRs, consistindo de convocar um Júri de Honra diante das acusações contra Azev, infelizmente não foi compartilhada por Lenin em 1914 quando confrontado com o caso de Malinovsky. Quando se suspeitou que Malinovsky trabalhava para a Okhrana, os bolcheviques propuseram tratar seu caso ante um tribunal revolucionário. Lenin rejeitou isso com base numa crença totalmente subjetiva de que Malinovsky era um militante inteiramente devotado à causa do proletariado” (ibid.). Como escrevi antes, essa descrição dos eventos é falsa.
O “caso Radek” é particularmente importante para o caso do aparato. Infelizmente para o aparato, sua versão do que ocorreu é atulhada de meias verdades e calúnias contra Radek. Mais uma vez, o aviltamento intelectual e moral é confirmado: “Esse júri [no caso Radek] não tinha a missão de absolver um militante suspeito de ser um agente do Estado, mas de penalizar [!] o comportamento político de Radek dentro do partido” (ibid.). Na realidade, Radek tinha passado por QUATRO “júris de honra” – dois organizados pelo aparato SDKPiL de Luxemburg-Jogiches, e o outro pelo aparato do SPD. O quarto, mantido em Paris, o absolveu de todas as acusações.
De acordo com o aparato, a comissão de 1911 sobre o “caso Radek” nomeada pelo SDKPiL “não levou a nada”. Com isso eles querem dizer que o “Júri de Honra”, considerando a evidência inconclusiva, não declarou Radek culpado. Ele fora acusado, o aparato diz, de roubar “… as roupas de um camarada, … livros…. e…. dinheiro”. O aparato afirma que Radek “acabou por admitir ter roubado os livros e roupas…” Não foi apresentada nenhuma evidência que Radek admitiu isso. Quando o aparato de Luxemburg-Jogiches viu que a comissão que eles tinham organizado não entregou o serviço, eles a dissolveram e organizaram um “Tribunal Revolucionário” que previsivelmente declarou Radek culpado em menos de duas semanas.
Para lançar alguma luz nesse assunto, tive que voltar alguns anos na vida de Radek. De acordo com a Autobiografia (1925?) de Radek, ele se mudou da Cracóvia para a Suíça no outono de 1903, “deixando dívidas não pagas” (Georges Haupt & Jean-Jacques Marie, Makers of the Russian Revolution, London 1974, p. 363). Nenhuma outra admissão de possíveis delitos aparece nessa autobiografia, escrita quando Radek tinha sido afastado do poder na Rússia bolchevique. Em 1903 ele tinha 18 anos e ainda não era membro do SDKPiL polaco, ao qual ele entrou em Zurique em 1904 como membro emigrado.
Antigo mentor de Radek, o social-nacionalista Emil Häcker, do PPSD, tinha publicamente acusado Radek de roubo em setembro de 1910. Parece que ele estava ecoando afirmações desse tipo feitas em Varsóvia em 1908 contra Radek. Não é claro a quem ou do que foi o roubo. O que é interessante é que Rosa Luxemburg, Jogiches e Marchlewski, o diretor de facto do SPKPiL de Berlim, defendeu com indignação Radek contra as acusações (Peter Nettl, Rosa Luxemburg, abridged edition, London 1969, p. 354). Os ataques de Häcker foram ecoados pelo notório antissemita polaco Niemojewski, um feroz amante de confusões do SDKPiL. Em 1910, era honroso defender Radek contra as acusações de roubo.
Porém, um ano depois, a sorte de Radek mudou radicalmente quando ele se alinhou com a organização de Varsóvia dissidente do SDKPiL – Hanecki, Malecki, Leder, Unszlicht et al. Unszlicht foi caluniado com insinuações de ser um agente provocador por Luxemburg-Jogiches, mostrando que a calúnia é outra “arma de defesa das organizações revolucionárias”. De fato, a CCI contra Chénier testou essa arma em 1981 (afinal, em 1917, quando presidiu a Tcheka, Unszlicht usou sua reviravolta para aterrorizar pessoas e, progresso na história, fuzilá-las). Mas voltemos a Radek. Nesse tempo, em 1912-13, ele escreveu Meine Abrechnung (“Minha Conta”) refutando as acusações, mas não vi e ignoro se uma tradução em inglês existe.
Em maio de 1912, enquanto o “Júri de Honra” se ocupava da questão Radek, Jogiches formalmente declarou dissolvida (!) a organização de Varsóvia, Malecki e Unszlicht foram entregues a outra “corte do partido” (quem sabe sob que acusações, provavelmente como “confucionistas” ou “provocadores” – não é o mesmo?). Ignoro o que esse eminente tribunal decidiu. Fartos com a agenda cheia de “Júris de Honra”, os dissidentes de Varsóvia formaram um partido de oposição do SDKPiL (as duas facções se reuniram em 1916).
É óbvio que Radek foi feito de bode expiatório pelo SDKPiL de Berlim, e suas supostas irregularidades foram usadas para minar sua facção em Varsóvia. A verdade ou falsidade das acusações não eram a questão (os acusadores a tomavam como verdades quando era conveniente). O que tomou precedência sobre questões de verdade foram as necessidades do aparato do SDKPiL de Berlim.
O veneno é mais importante, Luxemburg-Jogiches não podiam perdoar Radek por tê-los “traído”. Radek tinha sido protegé deles, mas teve a temeridade de criticar publicamente Marchlewski, um dos egocratas do SDKPiL. Após isso, a animosidade paranoica e vingativa mostrada a Radek por Luxemburg provavelmente levou Radek a romper com o SDKPiL de Berlim. Agindo como “la grande dame” da esquerda, ela não podia se sentar na mesma mesa de um restaurante com outros se Radek estivesse presente, e o chamou de “prostituta política” numa carta privada aos Zetkins. Em 1918, ela teve de ser persuadida a apertar a mão de Radek quando ele reapareceu na Alemanha como enviado dos bolcheviques. “Luxemburg era considerada por seus aliados como tendo às vezes uma irresponsabilidade, até mesmo “patológica”, comenta Stanley Pierson (Marxist Intellectuals and the Working-Class mentality in Germany 1887-1912, Cambridge, 1993, p. 254). Seu ódio por Radek certamente se relaciona a isso. Nettl, o hábil biógrafo de Luxemburg, opina polidamente que “ela foi claramente injusta com Radek” (obra citada, p. 317).
A cisão no SDKPiL se desenvolveu quando os dissidentes se cansaram do comportamento despótico de Jogiches. Ele era rude e tratava seus companheiros com desdém aberto (já mencionamos sua mania de “Júris de Honra”). Em certo momento, ele até ameaçou Luxemburg, sua antiga amante, com uma arma (Robert Service, Lenin, A Political Life 2, London 1995, p. 27). Esses “pequenos incidentes pessoais” nos fazem pensar que o stalinismo teve uma robusta gestação na Segunda Internacional, inclusive na esquerda, e muitos “revolucionários resolutos” mais tarde se tornariam – sem conflito interior aparente – devotados torturadores e genocidas. Pelas evidências, Jogiches era um candidato ideal para esse papel. Que essa possível evolução tenha sido interrompida pelo SPD num banho de sangue em que Jogiches tragicamente alcançou o martírio, não deve nos cegar para seu comportamento de antes da guerra.
Lenin também foi instrumental na cisão das facções do SDKPiL, já que apoiou os dissidentes contra Berlim e defendeu Radek. Ele viu desde o início que eles eram potenciais aliados contra os mencheviques no RSDLP. Similarmente, Pannekoek, Knief, Thalheimer etc. defenderam Radek incondicionalmente contra as acusações de 1911-12. É claríssimo – como já era então – que apenas quando Radek mudava de facção as velhas acusações eram ressuscitadas e jogadas contra ele.
Radek foi acusado de: roubar um casaco (ou “roupas”) em Cracóvia (1902?), livros (quantos?) de companheiros ou da livraria de um jornal do partido (não é claro se de um ou ambos), um relógio, 300 rublos pertencentes aos sindicatos de Varsóvia (em uma fonte isso se torna “várias centenas”), de não pagar as dívidas ao partido e de desvio dos fundos do partido. De acordo com Nettl, ele admitiu o roubo dos livros e das roupas (ou foi “o casaco”?). Mas Nettl não mostra evidências disso (obra citada, p. 355).
Radek negou insistentemente ter roubado dinheiro, embora a admissão sobre suas dívidas não pagas ao deixar Cracóvia sugere que havia algo ali. Mas talvez ele tenha pago seu(s) débito(s) mais tarde, já que isso não foi levantado por ninguém (a menos que dívidas não pagas signifiquem um casaco?). Em vistas de toda essa confusão, Nettl corretamente observa que “O caso merece mais estudo, especialmente considerando a última posição emitente de Radek no partido russo e sua influência nas questões da esquerda na Alemanha” (obra citada, p. 355). Mas para o aparato da CCI, a “lição” do “caso Radek” é sobre “Júris de Honra como armas para a defesa das organizações revolucionárias”. O uso de “Juris de Honra” no “caso Radek” não mostra nada disso. Possivelmente o único tribunal que foi justo foi o quarto, mantido em Paris. Mas como Lenin parece ter sido muito influente nele, não se pode ignorar a dimensão faccional.
Mas retornemos a 1911-12. Como se revelou, o aparato do SDKPiL, principalmente Jogiches, queria a expulsão de Radek também do SPD alemão. Devido à sua deslealdade pessoal, Radek tinha que se tornar um pária por toda parte. Especialmente na Alemanha, onde Radek era então ativo. Ele tinha sido infiel, e isso demandava uma expiação sangrenta, ao menos simbolicamente. Se a cirurgia azteca de peito ou uma pistola Mauser não estavam em mãos, então a expulsão era o que restou de melhor. Luxemburg estava preparada para apoiar o executivo do SPD (Ebert & Co) para punir Radek. Ao fazer isso, ela cegamente minou a posição de seus aliados – a esquerda em Bremen e muitos outros esquerdistas alemães que a apoiavam. Mas a ira contra Radek também tinha uma dimensão de facção. Foi ela quem propôs a Jogiches que o comitê dissidente de Varsóvia fosse difamado como estando “… nas mãos de agentes provocadores; esses nomes não podem ser ainda nomeados [um antigo truque da CCI!] mas o CC [o executivo de Berlim] está em seu rastro;…” (Elzbieta Ettinger, Rosa Luxemburg, A Life, London 1978, p. 177).
Chocante comportamento por parte de Luxemburg! Há de fato uma “lenda de Rosa Luxemburg”, de que ela estava acima dessas imundícies, que ela tinha escrúpulos e integridade pessoal. A realidade é mais complexa. Obviamente, ela nada aprendeu das calúnias vomitadas contra seus companheiros Kasprzak e Warszawski (Warski) em 1896 pelos social patriotas do PPS. Ambos foram acusados de ser agentes da Okhrana (Nettl, obra citada, p. 60). Um “Júri de Honra” absolveu Warski e uma comissão do SPD absolveu Kasprzak em 1901. Não há dúvida de que essas calúnias eram um hábito comum dos aparatos revolucionários no pré-guerra. Isso talvez explique por que os verdadeiros espiões conseguiam fazer seu serviço tão bem – os revolucionários tinham se tornado impérvios a acusações repetitivas e sem sentido. O “Júri de Honra”, tão enaltecido pelo aparato da CCI, raramente foi uma arma efetiva. Os verdadeiros espiões dificilmente eram descobertos por essas pantomimas. Mas eles serviram como úteis exercícios de propaganda para as facções envolvidas.
Em 1912, o aparato do SDKPiL de Berlim, possuído pelo ´espírito de partido´, se aproximou do executivo do SPD de Ebert (a mesma gente que votaria por créditos de guerra em 1914 e assassinaria Luxemburg e 30.000 trabalhadores alemães em 1919), informando-o que Radek tinha sido expulso de seu partido. O SDKPiL não hesitou em divulgar o nome verdadeiro de Radek (Sobelsohn): “O executivo alemão foi oficialmente informado da decisão [da expulsão de Radek do SDKPiL] em 24 de agosto [1912]… ao fazer isso, o comitê central polaco usou o nome verdadeiro de Radek e assim quebrou seu pseudônimo; segundo ele, sua partida de Bremen… deveu-se ao perigo da polícia na capital” (Nettl, obra citada, p. 355). O executivo do SPD não parece ter se preocupado com esse “lapso” provocativo e não repreendeu o SDKPiL por potencialmente entregar um militante estrangeiro sincero à polícia prussiana.
No congresso anual do SPD em Chemnitz (setembro de 1912), o caso Radek recebeu uma enorme quantidade de atenção. Como costuma ocorrer quando a sede tribal de sangue de bodes expiatórios é despertada, Radek foi importunado e ridicularizado. Em sua “Autobiografia” Radek assinala, sagazmente apontando o regime de Stalin: “Ao citar minha expulsão da social-democracia polaca, a liderança alemã anunciou que não mais me considerava um membro de seu partido. Na conferência de Chemnitz, ela jogou uma excelente cartada: ridicularizou este obscuro personagem de extração estrangeira [um completo judeu!] que ousou acusar o CC alemão de corrupção” (Haupt & Marie, obra citada, p. 368).
Como Radek lembra, os apparatchiks do SPD tinham forte razão para buscar seu sangue. Eles queriam esmagar a esquerda (“lancetá-la”, como Ebert tinha dito em Göppingen) e essa foi a oportunidade ideal. Radek foi um crítico vocal e implacável de seu revisionismo, e ele tinha embaraçado Ebert pessoalmente no recente “incidente Göppingen”. Mas muitos membros decentes do SPD, de esquerda ou direita, criticaram o tratamento de Radek pelo executivo na conferência, e um segundo “Júri de Honra” foi nomeado para investigá-lo. Esse “tribunal revolucionário” alemão reportou ao congresso de Jena de 1913 do SPD. Não é claro se Radek estava presente em Chemnitz, ou se “ajudou o Júri de Honra do SPD com as investigações” ou se atendeu o congresso de Jena, assim como não está claro se ele atendeu às prévias “investigações” do SDKPiL. Como não tenho acesso às atas da conferência ou registros do “Júri de Honra”, sua presença não pôde ser confirmada. Tentei supor o que Radek disse nesses processos em sua defesa (tendo estudado direito, ele provavelmente se defendeu bem). Mas isso não é possível no presente momento.
O bibliotecário especialista H. Schurer comenta sobre o que aconteceu em Jena: “Uma decisão foi aprovada, segundo a qual qualquer membro de um partido fraterno expulso por conduta desonrosa deve ser inelegível como membro do partido alemão. A regra era para ser aplicada retroativamente à Radek e, com base nessa especialmente criada lex Radek, o culpado foi solenemente expulso do SPD, apesar dos protestos de seu amigo Pannekoek” (H. Schurer, Radek and the German Revolution I, Survey, London 1965, p. 62).
Em Jena, Luxemburg votou contra a medida de expulsão automática porque ao menos viu que isso estabelecia um perigoso precedente para todos os críticos do executivo alemão. Ela pensou que Ebert & Co tinham manobrado o SDKPiL jogando a expulsão de Radek nas costas de seu tribunal. Como o biógrafo de Radek, Warren Lerner, observa: “Com essa resolução, o comitê executivo declarou, de fato, que Radek nunca tinha sido membro do partido social-democrata alemão, e assim poupou o congresso da necessidade de votar para expulsá-lo. A resolução embaraçou o SDKPiL, uma vez que pôs o ônus da expulsão nele e claramente implicou que, mediante uma petição sua, poderia garantir a permanência Radek como membro do SPD. Visto que Rosa Luxemburg não tinha nesse tempo (ou nunca) o desejo de ajudar Radek, ela não fez nada e o estatuto ex-post-facto automaticamente causou a sua expulsão do SPD” (Karl Radek, The Last Internationalist, Stanford 1970, p. 30).
Mas algo de maior alcance do que o “caso Radek” tinha se desdobrado em Chemnitz em 1912. Pierson escreve que “… os marxistas radicais, encabeçados por Pannekoek e Lensch, sofreram derrotas esmagadoras em seus desafios às políticas do partido sobre o imperialismo e o acordo eleitoral com os progressistas. Daí em diante, Pannekoek reconheceu que o ponto de vista revisionista, agora apoiado pelos marxistas ortodoxos [como Kautsky], tinha triunfado em todas as questões críticas” (obra citada, p. 253). Para a CCI – essa derrota não é mencionada – a “lição” é a admirável perseguição a Radek pelos magistrados do “espírito de partido”. Imperceptivelmente, o aparato se alinha com os Ebert, os Müllers e outros serviçais do SPD, precisamente os funcionários estatais que iriam esmagar todas as oposições de 1914 até 1919.
Assim, a “derrota esmagadora” da esquerda, supostamente uma avó do aparato da CCI, é ignorada na sua consideração do “caso Radek”. De modo ainda mais grotesco, a CCI justifica a expulsão de Radek com duas acusações falsas nunca levantadas em 1911-1913: que Radek foi expulso “… sobretudo devido a causar desordem, em particular explorando em favor de seus interesses as dissensões dentro da social-democracia” (ibid.). O aparato não se preocupa em explicar de que modo Radek foi “causador de desordem” [afinal, ele se considerava um revolucionário, e isso não deveria surpreender]. Nem explicam como Radek “explorava” as “dissensões dentro da social-democracia”. Ele desviou os fundos do partido? Ou, para seguir uma pista das recentes incursões do aparato em psicologia pop, ele estava bajulando seu id? Ou seu Ego? Essas idiotices alimentam as suas fobias “antiparasita” atuais, projetando-as na história. Como está fazendo com a “luta contra Bakunin”. Assim os críticos são: 1)”causadores de desordem” e 2)”parasitas”, porque eles agem “por seu próprio interesse”.
Incidentalmente, as “dissensões” podem ser subsumidas em UMA, a saber, o conflito entre revisionismo-social patriotismo e “marxismo revolucionário”. Como resultado dos “Júris de Honra” nos anos cruciais de 1912-13, Radek, um dos mais vigorosos publicistas da esquerda alemã de antes da guerra, foi efetivamente enfraquecido, ou mesmo silenciado. Pequenos detalhes, sem dúvida, que empalidecem em insignificância diante dos “Júris de Honra” às vésperas da Primeira Guerra imperialista. Considerando as obsessões do aparato por “lições” e “tradições”, essa cegueira é notória.
Também não é mencionado que Radek refutou as acusações após sua expulsão no livro “Minha Conta”. Como foi dito, depois de Jena, Radek reuniu outro “Júri de Honra” em Paris, chamado “Comissão de Paris” “… que o absolveu de todas as acusações, e ele ganhou também o apoio de Lenin, Trotsky e Karl Liebknecht.” (Haupt & Marie, obra citada, p. 380). Parece que esse processo foi ativamente apoiado e organizado pelos bolcheviques.
Mehring, protestando sobre como Radek foi tratado, afirmou que a social-democracia deve ao menos “… resguardar a existência moral de seus membros… com as mesmas garantias legais que a sociedade burguesa tem até aqui mantido para todos os seus membros, inclusive a classe trabalhadora”. (citado em Carl Schorske, German Social Democracy 1905-1917, Harvard 1955, p. 256).
Felizmente para Radek, os esquerdistas de Bremen protestaram contra a decisão do executivo do SPD e continuaram a dar a Radek uma porta de saída para seus escritos em seu jornal. Se eles não tivessem feito isso, a situação financeira dele teria sido pior. Esses esquerdistas não eram adoradores dos “Júris de Honra” estabelecidos por razões repressivas.
Shurer confirma que “No início de 1914, a tradicional corte de honra nomeada em tais casos pelas várias alas dos movimentos marxistas russo e polaco se reuniu em Paris e decidiu unanimemente em favor de Radek. Entre os juízes estava Lunacharsky. Lenin e Trotsky fizeram declarações adicionais em seu favor. Normalmente todo caso teria voltado para o partido alemão para reconsideração de sua decisão anterior, mas o início da guerra impediu isso. Para a grande maioria dos socialistas alemães, Radek permaneceu um homem marcado” (obra citada, p. 62).
Em 1912, Lenin refutou o relato de Luxemburg sobre o grupo “divisionista” em Varsóvia [que Radek apoiou]. Segundo ela, os dissidentes tinham quebrado a disciplina e toda coisa foi trabalho de “agents provocateurs”. Isso não tinha fundamento, mas como a calúnia da CCI contra Chénier em 1981, a objetivo era obscurecer qualquer clarificação política e teórica em andamento. Lenin sabia disso e assim ignorou o “Júri de Honra” do SDKPiL contra Radek. Evidentemente, o aparato não menciona a atitude de Lenin no “caso Radek”. Ou eles ignoram totalmente essa posição ou a escondem. Talvez o último, já que criticam Lenin por sua laxidão com relação à Malinovsky, preparando o terreno para dizer que essa era a fraqueza de Lenin, sua inconsistência para com o “Júri de Honra”. Mas Lenin não era inconsistente. Quando o processaram, ele jogou a carta “Júri de Honra” bem, e conhecia os seus fatos, o que não se pode dizer da CCI.
É válido de nota que o mencionado artigo de WR não é assinado, mas porta o imprimátur da CCI. É oriundo de suas mais altas intrigas, expressando sua visão e moral. Bem, a falta de precisão histórica é abismal. Mas apenas acadêmicos parasitas ousariam apontar tais coisas.
Em 1919, Rosa Leviné-Meyer teve uma conversa com Radek na qual explicou o que aconteceu em 1911-12: “Um sujo incidente quase arruinou a sua vida política. Ele foi acusado de usurpar 300 marcos [veja como os rublos transmigram]… dos fundos do partido. O demandante chefe foi Leo Jogiches. Radek me disse sem qualquer amargura que Jogiches pode ter sido despertado pelo desejo de se livrar, ou o partido, de um oponente difícil. Talvez tenha sido algo entre as duas afirmações. Um erro miserável, muito provável em um movimento subterrâneo que faz quase impossível manter documentos e recibos, lançou suspeitas no desafortunado Radek. A questão foi resolvida no fim, mas Radek passou por um terrível suplício…” (Inside German Communism, London 1977, p. 201).
Parece que Radek era indiferente ao dinheiro e negligente em questões financeiras. No nível pessoal, ele era considerado um boêmio e, por alguns, um cínico provocador. Essas percepções foram usadas pelos apparatchiks que queriam derrotá-lo politicamente. Mas eles eram demasiado preguiçosos e malevolentes para fazer debates políticos honestos. Optaram pela via fácil das calúnias e ataques ad hominem. Como hoje, eles esconderam suas manobras por trás da “defesa da organização”. Em seu livreto O que os revolucionários devem saber sobre repressão Serge observa que são geralmente os oportunistas, os covardes, os burocratas cansados e egocêntricos que vão por esse esgoto. É preciso dizer que o livreto de Serge também é defensor dos aparatos – quando eles se engajam na repressão e terror tchekista, é para o benefício da humanidade. (Victor Serge, Ce que tout révolutionnaire doit savoir de la repression, Maspéro, Paris 1970, p. 52).
Sob o regime bolchevique, Radek se tornou um apoiador fanático e apologeta do terror estatal, servindo Stalin logo depois que Trotsky foi derrotado. O pobre Radek foi tanto vítima como vitimador em toda sua vida política. A roleta terminou tragicamente quando ele pereceu no gulag:
“A história diz que em algum momento de 1939, um desses bandos de monstros da revolução [as milhares de crianças órfãs chamadas bezprizornii] cruzou com Radek no pátio da prisão. Ele estava longe da história então. O inverno assassino o rondava e ele estava sozinho com os desgraçados da revolução, sem nome. Alguém o arremessou no chão [Radek tinha então 54 anos]. Depois, seguindo os impulsos pelos quais viviam, os bezprizornii estavam todos juntos chutando-o, esmagando os miolos desse homem orgulhoso de seu cérebro contra a tundra. Nemesis, a deusa, é feroz. Feroz – e engenhosa.”
Assim escreve Stephen Koch em Stalin, Willi Münzenberg and the Seduction of the Intellectuals, London 1995, p. 145.
Porém, prefiro outros deuses à Nemesis de Koch. O deus hebraico, se estou correto – e quando ele está com humor alegre – protege todos os perseguidos, não importa se maus ou injustos, mesmo contra os homens justos e bons, se estes forem perseguidores. Inspirado por este deus, a memória de Karl Radek merece ser protegida quando ele estava sendo perseguido, e isso aconteceu em 1911-13.
Paranoia e sadismo similares:
https://pt.internationalism.org/content/394/gaizka-cala-se-um-silencio-ensurdecedor
Os tribunais de honra e lealdades das milícias nazistas funcionavam dessa forma. E eram por esses tribunais secretos e ilegais que as milícias perseguiam e aniquilavam os seus inimigos. Não se baseava em leis como o ordenamento jurídico romano e moderno, que para eles eram despossuídos de honra, mas que “o justo é o que os homens arianos consideram justo”, dando um sentido volativo e decisionista para esse novo direito. A manutenção de um estado de pureza motiva a proteção da honra, e seus objetivos eram limpar a nação dos parasitas para manter a linhagem. Eram declaradamente tribunais de expurgos. Para Rosemberg caberia aos esquadrões de assalto, as SAs, segundo ele, os mais capazes, a responsabilidade para a criação desse novo direito, nomeado pelo mesmo de direito alemão, onde o conceito de honra figuraria como fundamento para as “linhagens de ação” poderem descarregar as suas punições. A diferença era que os nazistas não escondiam o caráter punitivista dos seus tribunais de honra, eram única e exclusivamente para isso que serviam, empoderar os novos senhores.