O idealismo cultural parte do equívoco de que os produtos da consciência são os primeiros e verdadeiros grilhões. Por Lindberg Souza Campos Filho

Não é de hoje que temos visto com cada vez mais frequência a esquerda se afastar das questões que unificam e que dão resposta para os perversos dramas que tomam conta da maioria da população brasileira e deixar esse espaço ser ocupado por discursos populistas e reacionários. Em parte isso se deve à fragmentação e terceirização do programa político, que poderia estabelecer e divulgar tais questões que tocam diretamente grandes maiorias, a grupos de intelectuais e ativistas que têm pouco ou nenhum referencial teórico e político nas tradições de esquerda. São, antes de tudo, indivíduos monotemáticos, culturalistas e que, com certa razão, são frutos de uma crítica feroz ao economicismo que tomou conta da esquerda durante algumas décadas. Porém, o que de fato os une é a hipervalorização da esfera do simbólico, das representações e da cultura aliada a certa ignorância em relação às condições materiais dos fenômenos culturais que criticam. Dito de outra maneira, parte dessas novas vozes políticas operam uma crítica social baseada em um idealismo cultural, já que acreditam verdadeiramente que a modificação de costumes e das objetivações da consciência na forma de imagens e atitudes preconceituosas vai produzir uma mudança da vida concreta das pessoas. Não parece ocorrer a essas pessoas que a marginalização simbólica tem como raiz uma dominação material brutal que nem permite a grande maioria do povo ter energia subjetiva e tempo empírico para desenvolver a identidade imaginada por esse campo que estamos chamando de idealismo cultural. Desse modo, não pode ser visto de forma alguma como secundário perceber e enfrentar o elefante que está urrando na sala porque esta é uma das condições de possibilidade para que um programa político de esquerda emerja, rompendo com a marginalidade atual.

A premissa de todos é simplesmente ignorar ou destruir a noção de realidade sócio-histórica através do trato do capitalismo como um cenário para o que de fato importa: as relações interpessoais. O regime de acumulação capitalista moderno – concentrador, fragmentador e violento – é enxergado como uma fatalidade irreversível e todas as atuais relações desumanizantes de intercâmbio material entre os seres humanos correspondentes são desconsideradas ou pressupostas como um mundo distante das dinâmicas da consciência identitária. As relações econômicas que jogam pessoas na miséria é tida como uma contingência histórica que pouco ou nada tem a ver com as configurações específicas das opressões cotidianas. O que temos testemunhado e que nos tem paralisado é uma agenda moral e ressentida cujo fundamento é remover a especificidade material de certos fenômenos culturais como é o caso do racismo, da homofobia e do machismo. Alguns intelectuais e ativistas negros e gays têm usado uma expressividade subjetiva para forjar uma falsa representatividade objetiva e, assim, conquistar oportunidades individuais através da inegável complexificação das formas de opressão no capitalismo do século XXI. Tal política normalmente segue a mesma linha de raciocínio: concentram-se todos os esforços para a construção de uma imagem positiva do negro ou do gay, vendendo a falsa promessa que isso ataca o racismo ou a homofobia. Mas, no mundo real as coisas são bem diferentes, já que como nos lembra Marx, na sua crítica ao idealismo alemão, ao se atacar representações e fraseologias não está se atacando nada além dessas representações e fraseologias; a vida real passa ao largo dessas formulações culturalistas, pois elas evitam algo que é indissociável da cultura: a vida material das pessoas.

Isso nos leva a algumas indagações partindo dos próprios pressupostos de quem questiona a representatividade na esquerda. Será mesmo que uma pessoa negra cuja vida é claramente de classe média universitária representa as angústias e as necessidades da população negra das periferias desse país? Posso estar equivocado mas é no mínimo absurdo pensar que uma pessoa trans da universidade ou integrada ao serviço público seja vista como uma espécie de porta-voz das milhares de trans que praticamente só conhecem a escuridão das noites e o frio das esquinas. Será que esse novo segmento de ativismo que problematiza tanto a representatividade não se esqueceu de se incluir? Pode ser que essas pessoas evitem tanto a antiga categoria de classe social justamente porque a determinação socioeconômica mostraria que elas representam nada a mais do que as suas próprias condições objetivas. Quem pode afirmar categoricamente que a discussão sobre o uso de turbantes por quem quer que seja responde às necessidades imediatas da população negra desse país? Novamente, estamos no meio de uma confusão entre expressividade subjetiva e representatividade objetiva.

O tom moralista e criticamente pífio se revela no fato de amplos setores da indústria cultural e do oligopólio de comunicação, como a Rede Globo e a Folha de São Paulo, terem por diversas vezes encampado a questão da representatividade em si e para si. Debater a questão racial, sexual ou de gênero em marcos de responsabilização moral individual, excluindo os conflitos distributivos e o quadro de não efetivação de direitos fundamentais esteriliza e suaviza a discussão de tal forma que contraditoriamente deixa de ser incompatível com a política de organizações e setores que estão na raiz dessas opressões. Aliás, é precisamente esta despolitização que está no seio da radicalidade perdida desses movimentos identitários desde as suas respectivas configurações nos anos 1960. Algo que permite com que empresas como Google, o Goldman Sachs e o governo sionista de Israel posem de defensores da liberdade e da justiça, financiando ONGs afrocentradas, LGBT e de ‘empoderamento feminino’ em todo mundo, ao passo que são em grande medida diretamente responsáveis pela depredação de economias nacionais inteiras e, portanto, da degradação da vida efetiva de várias populações negras, brancas, indígenas etc. A máxima que diz que quem não conhece os interesses que regem a sociedade à serviço do mercado acaba sendo funcional a eles é facilmente aplicável aqui.

Pensar a população negra brasileira dentro de um quadro apenas da representação cultural é produzir uma simplificação atroz da realidade, basicamente porque se estabelece um sujeito negro sem nenhuma outra determinação concreta a não ser seu fenótipo. Do mesmo modo, insistir em uma mistificação de uma ancestralidade tradicional é fechar os olhos para os desafios do presente – que não são poucos – e fugir para um passado idealizado. Ver a questão das pessoas negras no Brasil, por exemplo, como um problema identitário ou puramente cultural é ignorar o fato objetivo que estamos diante, na verdade, de uma população excedente que o grande capital não tem interesse sequer em explorar ou manter como exército de reserva; são, em outras palavras, pessoas jogadas fora e que são obrigadas a viver na mais brutal marginalidade, a serem encarceradas ou simplesmente exterminadas e sua depreciação cultural é a superfície ou a aparência de um processo de exclusão muito mais amplo. O que faz com que cada vez menos pessoas para além de certos nichos urbanos se interessem por esses debates é que a única transcendência ou resultado oferecidos se dá no campo da compensação simbólica. Isto é, uma integração imaginária na sociedade de consumo é prometida a partir da construção de uma imagem positiva do negro, das LGBT ou das mulheres, normalmente se valendo dos valores, métodos e utopias do mercado como o empreendedorismo negro, feminista e LGBT. A ideologia desse identitarismo faz parecer que a compensação simbólica é em si um ganho além do que ela realmente é: uma compensação simbólica para a péssima condição de vida que segue praticamente inalterada. Daí, a quase totalidade das pessoas simplesmente ignorarem os debates que giram ao redor de compensações simbólicas e de abstrações do tipo.

Isso nos leva, finalmente, ao nosso título. Incontáveis análises e críticas se amontoaram nas redes sobre um padrão de turbante que se notabilizou em algumas partes do continente africano. O que interessa aqui são os termos da polêmica eles mesmos. Como pode que entre todas as mazelas das pessoas negras no Brasil volta e meia o debate – sempre oriundo ou alimentado pela esquerda diga-se de passagem – se concentrar meramente na análise de artefatos culturais em si. Pior ainda: no fato de um artefato supostamente estar na moda. O contrassenso e o desperdício de energia se localiza em duas questões: primeiro, a própria ideia de moda por si só já pressupõe que é algo passageiro, ou seja, da mesma maneira que uma hora a cintura da calça sobe e na outra ela desce ou que é legal ter ou não barba, os turbantes com certeza absoluta sairão de moda mais cedo ou mais tarde. Essa é a lógica da indústria cultural. Segundo, dar tanto valor subjetivo a uma coisa é uma forma básica de fetiche: atribuir características e relações humanas a objetos é uma maneira clássica de desumanização e de empobrecimento subjetivo porque a coisa, no caso o bendito turbante, fala no seu lugar. Você esquece que quem é de fato maravilhoso é você e atribui ao carro novo, à casa na praia ou às roupas essa propriedade e corre o sério risco de cair na ilusão – caso não fique sempre atento – de deixar que as coisas sempre façam seu trabalho subjetivo de socialização com o mundo e com as outras pessoas. Afinal, o apreço exagerado a esses simbolismos tem levado muitos de nós a realmente crer que são eles mesmos quem representam as situações das pessoas negras no Brasil e não as situações reais das pessoas negras no Brasil elas mesmas. As quais, suspeito, seguem se deteriorando gravemente com ou sem turbante. Esse idealismo cultural parte do equívoco inicial de acreditar que os produtos da consciência são os primeiros e verdadeiros grilhões das pessoas; o que no mundo real não parece se confirmar.

Embora seja inegável que o atual abismo entre o discurso de esquerda e as prioridades atuais da sociedade brasileira esteja em parte considerável ligada a essa dominação de certo idealismo cultural, a sua superação pela inteligência e organizações de esquerda não significa jogar na lata do lixo todos os aprendizados obtidos durante todo esse tempo tampouco de silenciar seus entusiastas. O que pode auxiliar uma repactuação entre esquerda e sociedade é retomar um materialismo cultural como pensado pelo crítico cultural britânico Raymond Williams, mas à brasileira, para pensar esses fenômenos. Um materialismo que não rejeite a centralidade da linguagem e da cultura no mundo contemporâneo, mas que, ao mesmo tempo, não negue as determinações econômicas fundamentais e as situações materiais nas quais tanto objetivações culturais quanto pessoas concretas estão inseridas. Em vez de embarcarmos em polêmicas intermináveis sobre significações de imagens, textos, manifestações pessoais e instaurar um policiamento moral de esquerda, podemos começar a nos perguntar mais o que na efetividade brasileira – seja no seu passado ou presente – cria o clima dos mais variados tipos de violência sexual e racial. Quais são os pontos de contato entre o desemprego, o trabalho precário, o desmonte da tímida seguridade social, o monopólio dos meios de produção cultural, a privatização do acesso a esportes, educação e lazer e a financeirização da economia e as situações e representações dos negros, das mulheres e LGBT na sociedade? Evidentemente que esse modo de pensar e de lutar se traduz em uma formação de atores sociais menos especializada e menos autocentrada em suas respectivas demandas específicas. Afinal, esse é um projeto para formar uma consciência e uma prática coletivas capazes de fazer frente ao poder avassalador de atomização, fragmentação e especialização do mundo em que é o capital quem manda.

Lindberg Souza é militante negro e LGBT.

As imagens que ilustram o artigo foram selecionadas pelo Passa Palavra. Devido a problemas técnicos, o artigo teve que ser ilustrado pela segunda vez em Julho de 2017. A imagem de capa e repetida ao final é o famoso quadro “Moça com o Brinco de Pérola” de Johannes Vermeer. A primeira fotografia é de Pierre Verger e o quadro seguinte é de  Adam Styka.

2 COMENTÁRIOS

  1. Cada um no seu quadrado X Semana de Arte moderna de 22

    Saudações camarada Lindberg,
    A preocupação dos artistas de um evento quase centenário com a formação de uma cultural nacional, formação do povo, é uma árvore que ainda pode dar frutos para o “materialismo cultural”. Tal é a força deste evento que num livro publicado recentemente, o porta-voz da Direito (ultraneliberal) Lobão no livro Manifesto do nada na Terra do Nunca, dedica-se a lançar as bases de uma estética da direita e o grande inimigo que ele vislumbra a ser destruído é o projeto nacional que ainda vive na agenda cultural, o demônio que ganhou asas na Semana de XX. É uma coisa que eu sempre penso, se a direita está atacando é que tem muita coisa boa.
    Mas, interessante usar a chave analítica do idealismoXmaterialismo para colocar os pingos nos “Is” aqui neste debate.

    Abraços.

  2. Vale pensar nos aspectos onde a penetração em espaços e o resgate subjetivo de populações marginalizadas, empregam bases matérias efetivas, a partir das quais processos críticos combativos podem ser erigidos.
    O problema dessas lutas monotemáticas ou “idealistas culturais”, é justamente a auxenia de negação frente a sociedade presente, resultado do fatalismo irreversível do capitalismo. Agora, da mesma forma que a crítica não surge sem as dadas condições materiais, a teoria não pode desenvolver-se sem “veículos” revolucionários que a vinculem, de modo que, sem uma teoria pós-capitalista poderosa, dificilmente uma crítica anticapitalista pode difundir-se na sociedade. Restam as atuais falsificações. Enquanto que as críticas contundentes, por voltarem-se também contra os pretensos veículos revolucionários, que sustentam as castas dirigentes, assumem um caráter desarticulador.
    Nisso, em troca de certos avanços, que só ganham significado subversivo se articulados a uma crítica e práxis feroz, movimentos passam a ser fins em si mesmos. Assim, tendo por resultados o moralismo cultural individualista e a legitimação do empreendedorismo empoderado, de modo que, o pouco avanço, em geral, perde-se nos projetos pessoais de ascensão pequeno burguesa.

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