A corrupção é o próprio modus operandi dos que hegemonizam a atual fase do capitalismo, e como tal só interessa aos revolucionários enquanto exposição pública das lutas intracapitalistas. Por Manolo
O signo encobre e comanda a realidade; ele é essa realidade. Émile Benveniste
Os clássicos estão aí para que os submetamos à prova do tempo. E o debate na esquerda sobre a natureza, resultados e perspectivas da atual crise política brasileira é campo fértil para pô-los a prova mais uma vez.
Partamos portanto de um clássico:
Na apreciação de acontecimentos e de séries de acontecimentos da história do dia-a-dia nunca estaremos em condições de recuar até as últimas causas econômicas. […] A clara visão de conjunto sobre a história econômica de um dado período nunca lhe é simultânea, só posteriormente se conquista, após realizados a recolha e o exame do material. A estatística é aqui um meio auxiliar necessário, e segue sempre atrás coxeando. No que diz respeito à história contemporânea corrente, seremos por isso demasiadas vezes obrigados a tratar esse fator, o mais decisivo de todos, como constante, a situação econômica encontrada no começo do período em causa como dada e imutável para todo o período, ou apenas a tomar em consideração aquelas transformações dessa situação que derivam dos próprios acontecimentos manifestadamente patentes e que, por conseguinte, igualmente se manifestam com clareza à luz do dia. Por tal motivo, o método materialista terá demasiadas vezes de se limitar a reduzir os conflitos políticos a lutas de interesses das classes sociais e frações de classes presentes, dadas pelo desenvolvimento econômico, e a demonstrar que cada um dos partidos políticos é a expressão política mais ou menos adequada dessas mesmas classes ou frações de classe. É evidente que esse inevitável descurar das transformações simultâneas da situação econômica, a verdadeira base de todos os processos a examinar, tem de ser uma fonte de erros. Mas todas as condições de uma exposição de conjunto da história do dia-a-dia contêm em si inevitavelmente fontes de erros; o que, porém, não impede ninguém de escrever a história do dia-a-dia[1].
Será possível que, em meio ao turbilhão dos fatos políticos correntes, não seja recomendável qualquer análise orientadora da ação política, dada sua inevitável imprecisão? Estaríamos irrecorrivelmente condenados a agir às cegas na luta política cotidiana, tateando com informações incompletas enquanto nos esbarramos nos obstáculos do caminho? Ou, ao contrário, conseguiríamos, de tanto tatear, chegar a um panorama de conjunto capaz de nos orientar numa ação política consequente com um programa de luta autônoma dos trabalhadores?
Resgato a crítica de Engels aos limites do método materialista na análise dos fatos políticos do presente para, por meio dela, dar início à crítica de duas tendências no debate sobre a crise brasileira atual: uma, a de querer explicá-la por meio do puro encadeamento das intrigas palacianas sem lastro em qualquer contexto social, econômico ou político mais amplo, como se esta disputa pelo poder não se visse condicionada por um lastro socioeconômico e um quadro intelectual bastante precisos; outra, a de desenhar este lastro e este quadro apenas e tão somente por meio de uma elaborada coreografia de conceitos abstratos que, conquanto importantes, não são capazes de delimitar quaisquer tendências ou cenários de curto prazo, justamente aqueles onde se dá a ação política que se pretende orientar com a análise. Considero que nenhuma das duas tendências capta o fundamental.
Meu objetivo ao destacar estas duas posições extremas é evidenciar os limites do debate através de uma crítica pluralista. Longe de mim querer ter a certeza absoluta de um caminho político a seguir em meio ao turbilhão; quero apenas contribuir com a elucidação dos limites em que o debate sobre a crise atual tem sido feito, para que possamos — quem sabe! — alargar nossas perspectivas.
Em primeiro lugar, cabe identificar se a pauta da corrupção interessa a um programa de luta autônoma dos trabalhadores, e em que medida.
Para começo de conversa, é preciso identificar as ambiguidades da corrupção.
Comecemos pela mais óbvia, que é a ambiguidade semântica.
Corrupção é dicionarizada em português como (a) decomposição, putrefação, devassidão, depravação, perversão, suborno, peita (Aurélio); ou (b) adulteração das características originais de algo, decomposição orgânica, degeneração moral, ato ou efeito de subornar, vender e comprar vantagens, desviar recursos, fraudar, furtar em benefício próprio e em prejuízo do Estado ou do bem público (Aulete). Dois sentidos, portanto: um simultaneamente jurídico, político e sociológico, relativos ao suborno, à fraude, ao furto etc.; outro filosófico, ou mais propriamente ontológico, relativo à degeneração, decomposição, putrefação, adulteração etc. A duplicidade de sentido não é inocente. Tudo indica que os usos jurídico, sociológico e político da palavra derivam de seu uso filosófico. Uma pequena digressão filosófica e filológica é necessária, portanto, antes de prosseguirmos.
Levando em conta que, infelizmente, só temos condições no momento de examinar exemplos escritos do uso das palavras, o mais antigo exemplo do uso filosófico da palavra corrupção — talvez esteja na obra de Aristóteles chamada Περὶ γενέσεως καὶ φθορᾶς (Perí genéseos kaí fthorás), que nos chegou por meio de sua tradução latina De Generatione et Corruptione (“Sobre a geração e a corrupção”). Se é certo que Anaximandro falou em termos muito semelhantes e usou inclusive a mesma palavra, a versão de Aristóteles é a mais conhecida e traduzida. Trata-se de um estudo — de certa forma complementar às Φυσικὴ ἀκρόασις (Fysikí akróasis, “Auscultações da Natureza”, mais comumente traduzidas como a Física) e a Περὶ οὐρανοῦ (Perí ouranoú, “Acerca do Céu”) — das causas do movimento e da mudança do ser e da matéria no mundo sublunar[2], em especial dos processos pelos quais algo surge, vem-a-ser (γενέσεως também pode ser livremente traduzido como surgimento, vir-a-ser) e desvanece, decai, esvai-se (φθορᾶς também pode ser traduzido livremente como desvanecimento, decaimento ou esvanecimento). Indo ao conteúdo da obra, nela Aristóteles conclui, seguindo a teoria dos quatro elementos constitutivos do ser (terra, água, fogo, ar) por ele aperfeiçoada a partir da herança conceitual de Empédocles, que o movimento entre a geração e a corrupção no nível mais essencial das coisas do mundo sublunar é cíclico, sem fim. Uma tal argumentação se fazia necessária, no corpus aristotelicum, por vários motivos: sustentar a argumentação de que os céus e os astros se movem de forma infinita num movimento circular perfeito e eterno em meio ao éter em contraposição aos quatro elementos do mundo sublunar (Acerca do Céu, I.2-4, 269b17-271a35); indicar a alma (ψυχή / psykhe) como causa da geração, corrupção, locomoção e alteração dos seres vivos (Acerca da Alma, II.4, 415b21-8); entre outros usos na filosofia natural aristotélica. Guarde-se: na filosofia natural. Esta definição será importante mais à frente.
Mas como se deu a transformação de um conceito naturalístico, pretensamente empírico, sem qualquer juízo positivo ou negativo de valor a ele associado, naquele que hoje temos não apenas dicionarizado como frequente no uso comum? Adianto uma hipótese de trabalho: se a palavra latina corruptio chegou até nós como “corrupção” em seu duplo sentido, é porque àquele sentido ontológico, naturalístico do original grego φθορᾶς (fthorás) foram somados outros em seu longo processo de tradução; primeiro, um de natureza moral, pelos romanos (especialmente os moralistas) que transpuseram o desvanecimento físico e biológico para o campo do comportamento e dos valores sociais[3]; segundo, um de natureza teológica, entre os séculos XII e XV da era cristã pelos escolásticos católicos da Idade Média europeia, que opuseram a corrupção e a imperfeição humanas à perfeição divina[4]; terceiro, entre os séculos XV e XVIII, um de natureza política, por força tanto das teorias contratualistas do Estado[5] como também pela recuperação, ainda que desvirtuada, da teoria grega da anaciclose política[6], ambas preocupadas com o combate a tudo quanto pudesse romper a comunidade política. Para não estender demais o corpo do texto com detalhes, remeti as explicações de cada novo significado às respectivas notas de rodapé.
A ambiguidade semântica da corrupção resulta de uma ambiguidade prática, simultaneamente sociológica e filosófica.
A ambiguidade semântica da corrupção, construída através dos séculos, contribui para esconder o fato de que, na contemporaneidade, seu combate por meios políticos e jurídicos tem como pressuposto uma pauta oculta: o combate a um desvanecimento, a uma decadência, a um esvanecimento da própria sociedade, entendida enquanto comunidade moral mais que comunidade política. Combater a corrupção significa, nesta pauta oculta, combater tudo quanto coloque em xeque, simultaneamente, o aperfeiçoamento moral dos cidadãos (observe-se a recorrência das acusações de “falta de caráter” dirigida contra corruptos e corruptores) e o aperfeiçoamento cívico das instituições contra as instabilidades políticas (observe-se a recorrência das afirmações de que “as instituições continuam funcionando”). Uma tal busca pela perfectibilidade individual e institucional implica dizer que nem a sociedade nem o Estado, tal como são, funcionam adequadamente; que deveriam funcionar de outra forma; e que esta forma é dada por um modelo pré-fixado: as normas morais, religiosas, sociais ou jurídicas. Filosoficamente falando, temos a substituição de uma ontologia da sociedade e do Estado, ou seja, uma compreensão de seu funcionamento tal como é, por uma sua deontologia, ou seja, um julgamento de seu funcionamento com base em regras.
Quais as consequências práticas desta substituição? Diante de um cenário de crise institucional como este em que participamos, o questionamento crítico é substituído pela imprecação moralista. Ao invés de os processos e prisões cotidianamente veiculados pela mídia suscitarem questões, tais como: por que determinado político está sendo processado e/ou preso?, ou ainda quais as consequências sociais, políticas e econômicas deste processo e/ou prisão?, ou quem sabe a quem interessa este processo e/ou prisão?, tornou-se lugar-comum que a veiculação midiática destes processos e prisões suscite, isto sim, a ânsia pela prisão de todos os políticos, porque todos seriam corruptos ou corruptores.
Se a luta pela perfectibilidade individual e institucional é meta oculta do combate à corrupção, que indivíduos e que instituições se tem como modelo para uma tal perfeição a alcançar? Aqui entra uma distinção entre os “antigos” e os “modernos”: enquanto filósofos como Platão, Aristóteles e Cícero, ou historiadores como Políbio e Tito Lívio perceberam muito bem a divisão da sociedade em classes e o quanto a luta entre classes diferentes resulta em mudanças sociais, políticas e econômicas, a maioria dos teóricos “modernos” do Estado e da sociedade mais conhecidos (exs.: Hobbes, Locke, Montesquieu[7]) não apenas ignora as clivagens de classe dentro de uma comunidade política como, por razões políticas[8], reconhecem nesta comunidade apenas a separação entre sociedade e Estado, igualando entre si todos os cidadãos que compõem a sociedade. É este o modelo político que herdamos: uma sociedade composta por indivíduos em tudo homogêneos contraposta a um Estado que pretende dominá-la. Ocultadas as clivagens de classe, neste modelo teórico todos os cidadãos, pulverizados enquanto indivíduos homogêneos, teriam como “adversário” o Estado, e objetivam estabelecer seu funcionamento de forma a garantir que este último não interfira em suas “liberdades”.
E aqui entra em cena, a partir da ambiguidade prática, uma ambiguidade política.
Se insisto em falar destas teorias e de um modelo político que herdamos, é porque a prevalência histórica de ambos frente a outros seus concorrentes expressa a vitória política das classes a quem tais teorias e modelos interessavam como justificativas para a exploração econômica e a opressão política das classes subjugadas. Os critérios estabelecidos pelas normas morais, éticas, religiosas, jurídicas etc. para definir o que é certo ou errado, o que é virtuoso ou vicioso, o que é permitido ou proibido, o que é santificado ou é pecado, estes critérios remetem sempre aos interesses das classes politicamente vitoriosas. É, por exemplo, o que torna escandaloso o fato de a Odebrecht ter estabelecido um setor especializado em propinas, não o fato de a mesma empresa empregar todos os seus demais setores, por sinal de forma totalmente lícita, na exploração diária da força de trabalho de centenas de milhares de trabalhadores; é o que torna indecentes as visitas noturnas e não-agendadas de Joesley Batista a Michel Temer, mas nunca as “visitas noturnas e não-agendadas” da polícia aos bairros proletários; e por aí vai. Os exemplos são intermináveis, todos eles revelando a mesma ambivalência dos críticos. A ambiguidade política permite que os fatos mais fulcrais da política — ou seja, a exploração econômica e a opressão política de classes sociais inteiras — sejam postos em segundo plano, quando não naturalizados, ou seja, transformados em situações imutáveis e eternas. É o que permite que tudo mude para ficar tudo como está.
Como vimos, de conceito pretensamente empírico a corrupção imiscuiu-se, por meio da filosofia, na ética, na moral e na política — o que considero um erro grave. Trata-se, como quem tem acompanhado os debates sobre a crise brasileira tem visto, do fundamento da posição assumida pelos conservadores e reacionários, qualquer que seja a cor da camisa que vistam. Adianto, então, minha posição sobre o assunto, antes de seguir com a argumentação: a corrupção, em ambos os sentidos da palavra, é o próprio modus operandi de todos quantos queiram sobreviver enquanto capitalistas hegemônicos na atual fase do capitalismo, e como tal só interessa aos revolucionários enquanto exposição pública das lutas intracapitalistas. Falarei disto em outro momento.
Notas
[1] ENGELS, Friedrich. Introdução à edição de 1895 de “As lutas de classes na França de 1848 a 1850”. Em: MARX, Karl. A revolução antes da revolução II. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 38.
[2] Na astronomia aristotélica há um mundo supralunar e perfeito, onde os astros orbitam em movimento circular em torno da Terra, centro do universo, e um mundo sublunar (exclusive a Lua) imperfeito, onde as contradições e entrechoques entre os quatro elementos (terra, água, fogo e ar) movimentam o ser. Como se sabe, o advento da teoria heliocêntrica copernicana pôs em xeque tal astronomia, e a posterior observação e experimentação derrubaram-na por completo.
[3] O Latin Dictionary de Charlton T. Lewis e Charles Short dá dois sentidos ao verbo corrumpo: deixar em pedaços, arruinar, destruir; e, no que diz respeito à qualidade física e moral de um objeto, corromper, injuriar, estragar, adulterar, piorar. Estes dicionaristas ressaltam ser o segundo sentido o mais frequente na poesia e na prosa latinas clássicas, e dão, entre outros, os seguintes exemplos (usando a formas clássica de citação para não avolumar ainda mais o texto): Júlio César, A Guerra Civil, 2.10; Marco Túlio Cícero, Das Leis, 3.14; Suetônio, Vida de Júlio César, 50; Tácito, Germânia, 23; Virgílio, Geórgicas, 3.481. O Dictionnaire Illustré Latin-Français de Félix Gaffiot dá, igualmente, estes dois sentidos nas várias definições que apresenta e destaca também ele o segundo sentido em todas as variações da palavra (corrupte, corruptela, corruptibilis, corruptibilitas, corruptibiliter, corruptio, corruptive, corruptivus, corruptor, corruptorius, corruptrix, corruptus), sendo de destacar sua etimologia da palavra (Cum, “com” + rumpere, “romper”, “quebrar”), em contraposição a certa etimologia muito difundida, ao que tudo indica apócrifa, atribuída a Agostinho de Hipona (Cor, “coração” + ruptus, “quebrado”, “partido”).
[4] Conquanto as doutrinas aristotélicas tenham sido parcialmente proibidas pelas altas autoridades católicas em 1210, 1270 e 1277, o sistema aristotélico já era conhecido e comentado livremente e às fartas entre a intelectualidade islâmica desde pelo menos quatro séculos antes e entre a intelectualidade bizantina desde sempre, pois lá haviam sido preservados muitos dos originais gregos. Naquilo que a igreja católica considerou como não-contraditório com sua doutrina, escolásticos como Tomás de Aquino encalacraram não apenas a ontologia, mas igualmente a cosmologia e a biologia de Aristóteles numa rígida hierarquia com o deus cristão a encavalá-las. Dois problemas surgiram desse intrometimento. Primeiro, a substituição de uma ética mundana baseada na virtude (ἀρετή, areté) e na sabedoria prática (φρόνησις, phronēsis) voltadas para a combinação das boas qualidades físicas, morais e espirituais (καλοκαγαθία, kalokagathia) por outra baseada na progressiva aproximação do ser humano à perfeição divina por meio do esforço e da graça. Segundo, a diminuição da capacidade de julgar o mundo tal qual ele é em função de sua subsunção àquilo que deveria ser (voltaremos ao assunto adiante).
[5] Todas as teorias contratualistas do Estado, de Glauco a Epicuro no mundo helênico, do Mahāvastu aos Éditos de Ashoka no mundo indiano, de Hugo Grócio a Jean-Jacques Rousseau na Europa moderna e a John Rawls na contemporaneidade, todas elas se fundam sobre uma só e unica ideia fundamental: a de um abstrato pacto de não-agressão generalizado estabelecido entre seres humanos racionais e abstratos como instrumento para a superação ou controle de problemas muito mundanos, pacto este construído estritamente num plano lógico e abstrato como teoria legitimadora de determinado soberano, regime político, forma de governo ou modo de vida muito concretos. Uma tal teoria não faz senão forçar a barra de um Estado imaginário que se pretende perfeitamente constituído, virtuoso e por isso mesmo legítimo, e ainda que se possa estabelecer vários paralelos entre seus termos lógicos com certos fatos históricos dos quais se pretende extrair sua legitimidade — p. ex., a semelhança entre a guerra de todos contra todos de Thomas Hobbes e a guerra civil inglesa (1642-1651), apontada pelo próprio Hobbes; ou ainda, o paralelismo entre o próprio contrato social que lhes dá nome com as cartas régias, cartas-patentes, Deutsches Städtewesen, haandfæstninger e outras cartas de privilégios instituintes das liberdades urbanas e políticas das Freie Reichsstadt do Sacro Império Romano-Germânico, das das Szabad királyi város do reino da Hungria, das comunas medievais italianas e de tantas outras cidades livres no medievo europeu — o caráter marcadamente artificial, ideal, modelar, perfeito, abstrato e inatingível de um tal Estado é evidente a quem busque conhecer tais teorias.
[6] A anaciclose (ἀνακύκλωσις / anakýklosis, traduzida em grego moderno como “reciclagem”) é uma teoria dos ciclos (κύκλος / kýklos) das formas de governo, que embora possa ser encontrada já em Platão (República, VIII e X) e Aristóteles (Política, III, IV e V) foi definida mais precisa e conhecidamente por Políbio (Histórias, VI.3-9). Nesta última versão, é o ciclo pelo qual o povo, na sequência de qualquer crise (inicialmente natural, mas, como se verá, também social) que ponha em xeque as instituições e as artes, submete-se a um monarca; ao ver seus descendentes pretenderem impor-se como superiores a si próprios e se transformarem por esta razão em tiranos, acorre o povo aos mais corajosos e magnânimos para depor o tirano e, como consequência, funda a aristocracia; o desvirtuamento dos herdeiros destes aristocratas originais pelas benesses do poder transforma-os em oligarcas, e o povo mais uma vez conspira para derrubá-los; não confiando mais no governo de um só (monarquia e tirania), nem no governo de uns poucos (aristocracia e oligarquia), o povo assume para si a responsabilidade de conduzir os negócios públicos e funda uma democracia; os filhos e netos destes fundadores das democracias, entretanto, abusam da igualdade e da liberdade de palavra, e, querendo os mais abastados entre eles ser superiores aos demais, dilapidam suas fortunas para arregimentar para si partidários contra outros igualmente abastados, acostumando o povo a viver ás suas custas, desviando-o do caminho da virtude; uma tal situação leva à violência generalizada e à oclocracia, ou seja, ao governo das turbas revoltadas, que por tal condição recaem numa tal condição de animalidade que, nalgum momento, as levará a escolher novamente um monarca. Trata-se de uma transformação natural das comunidades políticas (φύσιν μεταβολη̂ς τω̂ν πολιτειω̂ν, fýsin metavolís tón politeión; Políbio, Histórias, VI.5.1), de um ciclo político (πολιτειω̂ν ἀνακύκλωσις, politeión anakýklosis), de uma organização natural(φύσεως οἰκονομία, fýseos oikonomía; Políbio, Histórias, VI.9.10). Não se deve confundir, no pensamento político grego, a anaciclose com a revolução/insurreição(επανάσταση, epanástasi), nem tampouco com o que Aristóteles, ao expor sua teoria das formas de governo, chama de παρεκβάσεις (parekváseis; Política, 1307a7), ou seja, digressões, desvios, fomas desviadas de governo que opõe aos governos justos. Conquanto o próprio Políbio descreva exceções à sua própria regra (Histórias, VI.43-44) e a natureza cíclica deste processo evite pensá-lo em termos de geração e corrupção, a própria descrição da progressiva desvirtuação dos governantes levou não poucos pensadores e políticos influenciados por Políbio (como Tito Lívio, Cícero, Maquiavel, Hobbes, Harrington, Montesquieu, Hamilton, Madison e Jay) a pensar a anaciclose em tais termos.
[7] São exceções dignas de nota: Maquiavel, Tocqueville, Vico.
[8] Qual seja, a oposição entre uma sociedade oprimida e um Estado opressor, num momento histórico em que o Estado era composto pelo rei, sua corte e burocracia, e a “sociedade” tinha sua heterogeneidade subsumida por tais teóricos aos interesses políticos da burguesia politicamente ascendente.
Belo resgate, companheiro! Sob o capitalismo, a corrupção pode mudar de cor e forma, mas enquanto não houver uma revolução, seguirá existindo como mais uma forma de domínio da classe dominante sobre o Estado e contra os trabalhadores.