Uma coisa é que os marxistas não renunciem aos benefícios da legalidade burguesa, e outra muito distinta é que se coloquem como defensores da ordem burguesa. Por Rolando Astarita
N.T.: Julio De Vido foi ministro de Planificação Federal, Investimento Público e Serviços durante os governos de Nestor e Cristina Kirchner, entre 2003-2015. Atualmente é deputado nacional pela província de Buenos Aires. Está envolvido diretamente com a Tragédia de Once, desastre que vitimou 52 pessoas e feriu centenas [1], responsável maior pelo estado sucateado do sistema ferroviário. Ademais, está imputado pela compra de material em más condições para a linha Belgrano Cargas, além de estar envolvido no principal escândalo de corrupção dissecado e espetacularizado pelos meios de comunicação corporativos alinhados com o macrismo: os negócios dos kirchners com o empresário Lárazo Báez – um dos maiores ganhadores de licitações em obras públicas nos governos kirchneristas, especialmente na provincia de Santa Cruz, onde Nestor e Cristina iniciaram sua vida política.
Nos últimos dias, e à raiz do debate sobre a perda do foro parlamentar de De Vido, os deputados da Frente de Izquierda (FIT [2]) disseram que votavam contra a sua expulsão porque a mesma era contrária à ordem constitucional, e porque criava um precedente para que no futuro se expulsasse representante da esquerda na Câmara. Sustentaram também que ao não mediar uma condenação na Justiça, a retirada do foro especial era uma espécie de “golpe parlamentar”, anticonstitucional; que a esquerda estava defendendo os direitos políticos de De Vido; e que essa defesa formava parte da luta contra os golpes parlamentares ao estilo de Temer-Brasil. Também se disse que a discussão sobre corrupção e o caso De Vido eram uma manobra de distração do Cambiemos (coligação eleitoral de Macri), para não debater as políticas de ajuste em curso. Todos argumentos que encaixaram muito bem no discurso feito pelo kirchnerismo em defesa do ex-ministro corrupto.
Indubitavelmente, esta posição da esquerda deve ser entendida na ideia de que, de alguma maneira, o kirchnerismo (ou o PT e Lula) seria progressivo em relação ao Cambiemos (ou Temer e o PMDB). A lógica é que todos são “inimigos dos trabalhadores”, mas uns são piores que outros. Para trazê-lo à terra, algo assim como que o que fez o kirchnerismo em Santa Cruz é melhor do que fez o macrismo na cidade de Buenos Aires (ou que o ajuste de Dilma era mais progressivo que o ajuste de Temer). Em qualquer caso, este enfoque explica o temor de boa parte da esquerda de ser acusada pela militância kirchnerista de “servir à direita”.
Em outras notas deste blog expliquei porque considero que essa análise é equivocada, e não vou repetir aqui meus argumentos. No entanto, a essa diferença de análise se soma agora uma mais fundamental, referida à atitude frente a ordem constitucional burguesa. Em outras notas já falei sobre o cretinismo parlamentar, criticando a crença de que votando uma lei se possa combater o desemprego no capitalismo. Mas esse cretinismo se potencializa quando se mistifica a Justiça burguesa e a ordem constitucional burguesa. Sobre isso, uma coisa é que os marxistas não renunciem aos benefícios da legalidade burguesa, e outra muito distinta é que se coloquem como defensores da ordem burguesa. Ou que coroem a Justiça como a única fonte de “legitimidade” para expulsar um corrupto da Câmara de deputados (e se amanhã a Justiça condena os deputados de esquerda?); ou que convertam em um fetiche “os precedentes jurídicos ou constitucionais” de uma votação parlamentar (não se dão conta de que esses “precedentes” são folhas ao vento na realidade da luta de classes?). Somando que é absurdo (na realidade, uma mentira para enganar e confundir) aduzir que hoje está em jogo uma defesa das liberdades democráticas contra um suposto “golpe de Estado”. Trata-se de uma velha e repetida retórica dos que se prostram, “pela esquerda”, frente ao legalismo burguês.
A fim de aportar elementos para a análise, na sequência compartilho com os leitores do blog esta passagem de Victor Serge, tomado de “O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão” (México, Era, 1972; as ênfases são agregados meus)[3]. É parte do esforço por resgatar as melhores tradições do socialismo revolucionário. Escrevia Serge:
O fetichismo da legalidade foi e continua a ser um dos aspectos mais marcantes do socialismo, conquistado pela colaboração de classes. Implica a crença na possibilidade de transformar a ordem capitalista sem entrar em conflito com os seus privilegiados. Mas, mais do que o indicativo de uma candura pouco compatível com a mentalidade dos políticos, é a corrupção dos líderes. Instalados numa sociedade, a qual fingem combater, recomendam o respeito pelas regras do jogo. A classe operária não pode respeitar a legalidade burguesa a não ser sob a condição de ignorar o verdadeiro papel do Estado, o caráter enganador da democracia, enfim, os princípios primordiais da luta de classes.
Se ele sabe que o Estado é o corpo das instituições destinadas a defender os interesses dos ricos contra os interesses dos pobres, ou seja, para manter a exploração do trabalho; que a lei, sempre imposta pelos ricos contra os pobres, é aplicada por magistrados invariavelmente saídos da classe dirigente; que a lei é invariavelmente aplicada com um espírito rigoroso de classe; que a coerção – que começa na pacífica participação do agente de polícia e acaba por cair na guilhotina, passando pelos campos de trabalho e pelas prisões centrais – é o exercício sistemático da violência legal contra os explorados, o trabalhador pode considerar a legalidade como um fato, do qual é preciso conhecer os aspectos, as aplicações, as armadilhas, as consequências – e também as suas vantagens. Portanto, é necessário às vezes, saber tirar proveito dela, mas não se deve nunca fazê-lo em relação à sua classe, a qual deve ser apenas um obstáculo puramente material.(…)
Em todos os países o movimento operário pôde conquistar, à custa de grandes lutas ao longo de mais de meio século, o direito de associação e de greve (…) Nos conflitos entre o capital e o trabalho, o exército intervém muitas vezes contra o trabalho mas nunca contra o capital. Perante os tribunais, a defesa dos pobres é quase sempre impossível em virtude das despesas judiciais; o operário não pode, na verdade, intentar nem suportar as despesas de um processo. A imensa maioria dos crimes e dos delitos tem como causa direta a miséria e figuram na categoria dos atentados à propriedade e a imensa maioria das pessoas que estão nas cadeias, pertencem às camadas mais pobres.
(…) Respeitar esta legalidade é ser enganado. Mas desdenhá-la não seria também menos funesto. As suas vantagens para o movimento operário são tanto mais reais quanto se é menos enganado. O direito à existência e à ação legal é, para as organizações dos proletariados, saber reconquistá-la e aumentá-la sem cessar. Sublinhamos esse aspecto porque contrariar o fetichismo da legalidade é um ato que se manifesta às vezes, mesmo entre os bons revolucionários, inclinados por uma espécie de tendência para o menor esforço em política – é mais fácil conspirar do que dirigir uma ação de massas –, para um certo desdém pela ação legal. Parece-nos que nos países em que a reação não triunfou ainda e não desmantelou as constituições democráticas ainda recentes, os trabalhadores deverão defender a todo custo o seu estatuto legal e, nos outros países, lutar para reconquistá-los.
Traduzido por Primo Jonas para o Passa Palavra a partir do original disponível aqui.
Notas
[1]: N.T.: Ver http://passapalavra.info/2015/08/105911
[2] N.T.: Frente eleitoral dos principais partidos trotskistas e agregados da esquerda marxista (PCR, guevaristas etc). Dizemos frente eleitoral pois, fora das instâncias eleitorais burguesas, o mais comum é que os partidos que compõe o FIT se enfrentem muitas vezes como inimigos e é comum ver militantes de seus diferentes partidos atacando-se com uma sanha impressionante.
[3] N.E.: O tradutor optou pelo texto em galego encontrado no MIA, mas o Passa Palavra preferiu apresentar uma tradução direta ao português publicada no Brasil pela editora Quilombo sem indicação de data de publicação, mas que situamos no começo dos anos 1980.