A aliança entre bolchevismo e nacionalidades oprimidas não se deu sem contradições, como mostram a anatematização e a morte deste comunista tártaro. Por Manolo
A aliança entre o bolchevismo e as nacionalidades oprimidas não se deu sem disputas ou contradições. Como não se trata aqui de “analisar” os “textos” “canônicos”, “deuterocanônicos”, “apócrifos” ou “heréticos” de tal ou qual “profeta” do socialismo, o caso não é o da hoje “clássica” polêmica entre Rosa Luxemburg e Lênin em torno do direito das nações à autodeterminação[1], mas das contradições que envolveram a implementação prática pelos bolcheviques de uma política quanto às “nacionalidades oprimidas” na sequência da revolução de outubro.
A este respeito, veja-se, para ilustrar a questão, a composição étnico-nacional do movimento social-democrata sob o czarismo[2]:
Considerando que o pico de membresia se deu em 1905, o que de alguma forma nivela as estatísticas, note-se que a social-democracia finlandesa representava a maior parcela do movimento social-democrata sob os domínios do czar (27,38%), seguida de muito longe pelos bolcheviques (14,84%), pelos socialistas poloneses (14,07%), pela Bund (10,23%) e pela social-democracia polonesa (10,23%). Em termos estritamente numéricos, a social-democracia russa só ganhava destaque se unidas as frações bolchevique e menchevique (21,75%). É num tal contexto, expressivo da composição multiétnica do império dos Romanov, que se deve enquadrar as alternativas da já mencionada polêmica teórica e das iniciativas práticas de solução da questão nacional. É notável a fermentação no processo revolucionário russo de tendências que somente mais tarde seriam plenamente desenvolvidas – não em favor da revolução, mas da reação.
Exemplar neste sentido é o caso de Mirsaid Sultan-Galiev: ele fez parte da plêiade de bolcheviques que trabalharam em prol de movimentos nacionais e buscavam o caminho mais eficaz para combinar interesses nacionais e de classe na luta revolucionária, crentes na revolução no Oriente como fator poderoso na vitória revolucionária no mundo. A vasta maioria entre eles não teve tempo de testemunhar a conversão da almejada revolução socialista mundial num processo nacional de consolidação de novas classes sociais no poder; foram expurgados, politicamente anulados, presos, mortos. Derrotados, suas ideias, entretanto, vêm sendo retomadas, especialmente pela corrente “pós-colonial”, como um exemplo de “adaptação local” do marxismo, como “descolonização” do pensamento revolucionário etc.; trata-se, na verdade, de justificações ideológicas renovadas para o velho terceiro-mundismo por parte daqueles situados nos países de economia mais desenvolvida, e para o nacionalismo dito “de esquerda” por parte daqueles situados nos países de economia menos desenvolvida. Não por acaso os “pós-coloniais” compartilham este traço em comum com os “nacional-bolcheviques” ou “nacional-comunistas”, estes últimos aparentados do fascismo.
Discordo desta historiografia coitadista e rejeito por completo qualquer filiação “pós-colonial”, que dirá “nacional-bolchevique” ou “nacional-comunista”. Qualquer corrente política do presente, na tentativa de encontrar legitimação no passado, tende a encontrar “precursores” em figuras que guardam semelhança com suas próprias ideias, ainda que superficialmente, e a transformá-los em vítimas das mentalidades estreitas de seus contemporâneos nas narrativas trágicas com que alinhavam os fatos que lhes interessam – e apenas estes. Uma avaliação adequada do papel de Sultan-Galiev e do nacional-comunismo de que foi expoente durante a revolução russa só pode se dar inserida nos quadros de uma interpretação abrangente do processo revolucionário russo, sem destacar-lhe unilateralmente uma ou outra característica particular. Este artigo é uma tentativa, portanto, de ter em Sultan-Galiev a ilustração histórica das contradições do nacional-comunismo num contexto por si só explosivo – justamente porque nos processos revolucionários as contradições latentes na sociedade explodem em lutas abertas, expondo-as como veias pulsantes.
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Mirsaid Khaidargalievich Sultan-Galiev (em tártaro: Мирсәет Хәйдәргали улы Солтангалиев, Mirsäyet Xäydärğäli ulı Soltanğäliev) foi um bolchevique tártaro nascido em 13 de julho de 1892 numa família muçulmana tártara na vila basquíria de Elembet’evo, na guberniya (governadoria) de Ufa, então subjugada pelo império russo e hoje integrante do raiôn russo de Sterlibásh. Sua mãe, Ainil’khayat, descendia de uma família de nobres tártaros empobrecidos e seu pai, Khaidar-Galiya Sultan-Galiev, era um muderris (professor religioso) na maktab (escola primária) da vila e seguidor dos (então) novos métodos pedagógicos de Ismaíl Bey Gaspirali, ou Gasprínski, um jadidista defensor de uma pedagogia para os súditos muçulmanos do czar centrada no aprendizado simultâneo das culturas islâmica e russa.
Um parêntese necessário. O movimento muçulmano de reforma no império russo emergiu durante o século XIX como o usul-i jadid (“novo método”), um programa de reformas educacionais que gradualmente evoluiu para a forma de um movimento político. Gaspirali, seu líder mais conhecido, foi um tártaro da Crimeia educado à moda europeia que trabalhou como jornalista em Istambul e Paris, e em 1883 começou a publicar o jornal Tercüman, principal porta-voz da campanha jadidista em prol da modernização das práticas islâmicas, onde se tratava de uma série de temas que iam da economia às instituições religiosas. Depois da revolução de 1917 parte do movimento jadidista voltou-se para um tipo de “socialismo islâmico”, mas o próprio jadidismo não era um movimento unificado: os jadidistas da Ásia Central, conquanto empregassem os mesmo símbolos, tropos e metáforas de seus camaradas da Rússia europeia em seus discursos, certamente não queriam dizer a mesma coisa que eles, pois os significados estão enraizados nas realidades locais. O jadidismo é mais bem compreendido como uma série de esforços multiformes de reforma do islamismo, com objetivos variados e resultados dependentes de sua localização no império russo. Entre os tártaros de Cazã, por exemplo, o movimento de reforma radicalizou-se, adotando posições nacionalistas, socialistas e anti-russas que formaram a sementeira do comunismo tártaro – de que Sultan-Galiev e Mullanur Vakhitov são bons exemplos. No Daguestão, ao contrário, os reformistas islâmicos eram muito mais moderados; sua principal preocupação era defenderem-se das acusações de que suas propostas de reforma agrária não contrariavam a xaria (lei islâmica) – quando, na verdade, seguiam-na à risca. No Turquestão, os jadidistas que ergueram o Estado autônomo de Kokand em dezembro de 1917 usaram uma retórica fundamentalista ao exigir um “retorno à xaria”. Em Bucara, os Jovens Bucaranos de início não conseguiram derrubar o domínio teocrático do emir, dado ser apoiado pela maioria da população; suas políticas, quando finalmente alcançaram o poder em 1920, mostraram-se particularmente moderadas – o artigo 26 da constituição da República Popular da Bucara dizia que “nenhuma lei pode contradizer os princípios fundamentais do Islã”. Apesar das disparidades evidentes, o termo jadid ainda permite agrupá-los numa só categoria, pois todos compartilhavam traços fundamentais, nomeadamente a rejeição do que entendiam como acréscimos supersticiosos ao Islã sem justificação no Alcorão ou em hádices válidos; um desejo comum de modernizar a educação islâmica; e uma rejeição da dominação ocidental. No contexto russo, esta rejeição traduzia-se como a derrubada do absolutismo czarista; na medida em que compartilhavam-no com os revolucionários não-muçulmanos, estava aberta a porta para a cooperação com socialistas e comunistas.
Mirsaid Sultan-Galiev, educado em meio ao jadidismo, aprendeu o idioma russo (além do árabe e do persa) e tornou-se um leitor ávido e admirador da cultura russa: traduziu obras de Tolstói, Turguênev e Púshkin para os idiomas tártaro e basquir, e em 1905 optou por entrar na Escola Tártara de Formação de Professores (Тáтарская Учитéлская Школа / Tátarskaya Uchitélskaya Shkola), um polo do fervor nacionalista tártaro, ao invés de seguir carreira numa madrassa como era desejo de seu pai.
A diferença de status e a situação econômica de sua família mais próxima faziam com que sua família estendida materna desprezasse seu pai e ele próprio, chamando-os, jocosa e maliciosamente, de mishar (um subgrupo camponês tártaro – o que, dada a estratificação social do regime czarista, equivalia a chamá-los de ralé, arraia-miúda, gentalha). Do contraste entre a situação de sua família mais próxima e a de seus primos e parentes mais abastados – constantemente usada por estes últimos como fonte de pilhérias, abuso, humilhação e assédio – formou-se-lhe desde cedo um “ódio de classe”, em suas próprias palavras. Tais traços de origem – camponês, pobre, tártaro, muçulmano, pouco versado nos temas e debates do movimento socialista seu contemporâneo, sem grande formação teórica – diferenciavam-no de quadros bolcheviques destacados como Lênin, Trótski, Plekhânov, Bogdânov e outros, pois havia tornado-se comunista pela experiência prática vivida, não pela leitura, teorização ou simpatia com as classes exploradas e oprimidas. Mais distintivo ainda era o fato de estar pouco familiarizado com a literatura socialista ou marxista, e ainda menos informado sobre os debates candentes travados no movimento socialista russo entre as últimas décadas do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX.
Formado professor, casou-se em 1913 com Rauza Chan’sheva, sobrinha de Yakup Chan’shev, futuro general tártaro no Exército Vermelho; os recém-casados mudaram-se para Bacu, no Azerbaidjão, onde Sultan-Galiev trabalhou por salários de fome, rompeu com o jadidismo de sua juventude por volta de 1916 e começou a publicar seus primeiros artigos em revistas e jornais. É importante destacar, dado o contexto da sociedade czarista, que Rauza Chan’sheva não era apenas a esposa de uma figura histórica, mas uma militante pelos direitos das mulheres, uma raridade na Rússia dos Romanov; figura extremamente independente, tinha vários amantes, um dos quais foi baleado e morto por Sultan-Galiev, o que resultou em sua primeira prisão depois da revolução de outubro, relaxada por intervenção de Stálin. Sultan-Galiev e Chan’sheva divorciaram-se em 1918; Rauza morreu de tifo entre 1920 e 1921, tendo o casal deixado sua filha Rashida, que viveu como bibliotecária em Saratov até morrer em Moscou nos anos 1950. Sultan-Galiev casou-se pouco tempo depois com Fatima Erzina, filha de um comerciante tártaro; uniu-os um amor em comum pela arte. Ela, sua filha Gulnar e seu filho Murat sofreram, anos depois, o amargo destino da parentela de um “inimigo do povo”.
Antes de prosseguir, é necessário retornar ao contexto da época. O êxito da revolução de outubro de 1917 significou para os jadidistas um momento divisório. Os bolcheviques, ao menos em teoria, não haviam chegado ao poder como defensores da dominação russa sobre a Ásia Central, mas sim o contrário; havia, então, bases para que os jadidistas os favorecessem. A escolha não se deu de imediato, todavia. A derrubada do governo provisório não foi saudada com entusiasmo entre os jadidistas, pelo que se pode julgar a partir das evidências. O clima prevalecente foi de neutralidade, ao menos enquanto os direitos dos muçulmanos não fossem feridos. Ainda em 1917 foram feitas tentativas de assegurar uma abordagem unificada, que não deram em nada, e cada região seguiu seu próprio caminho; a reunificação só se deu sob a égide do Estado soviético, depois de encerrada a guerra civil. É impossível estimar quantos jadidistas decidiram apoiar o governo bolchevique depois de outubro de 1917. Em junho de 1918 foi criado o Partido Comunista do Turquestão, e um grande número de jadidistas filiou-se a ele assim que possível. O jornal jadidista Liberdade (Hurriyet) tornou-se o órgão do soviete de Samarcanda. No verão de 1918 o soviete de Tasquente foi dominado pelos jadidistas, que expediu ordens de prisão contra ulama contrarrevolucionários – mostrando, assim, que a sociedade islâmica estava rasgada ao meio nos primeiros anos da revolução russa.
Sultan-Galiev e Chan’sheva voltaram a Cazã em fevereiro de 1917 a convite de Ahmed Tembulatovich Calikov [pronuncia-se “tsálikov”], um dos líderes da bancada muçulmana na Duma, para ajudar a organizar o primeiro e o segundo Congresso Pan-Islâmico Russo, realizados em Moscou em maio e julho de 1917 respectivamente. Tais congressos pretendiam reunir todos os povos islâmicos do império russo como sinal de unidade; seu resultado, todavia, foi a revelação das fissuras econômicas, religiosas e políticas que Sultan-Galiev posteriormente tentou superar ao clamar por apoio ao socialismo. Enquanto esteve em Cazã, Sultan-Galiev aproximou-se de Mullanur Mullazjanovich Vahitov, um revolucionário bolchevique, e com ele formou o Comitê Socialista Muçulmano. A organização apoiou um amplo leque de pontos de vista, mas manteve o apoio aos bolcheviques, fortalecido pela filiação de Sultan-Galiev ao partido em 15 de julho de 1917, onde mostrou-se desde logo um militante entusiástico e enérgico em suas convicções.
Sultan-Galiev e seus camaradas egressos do jadidismo formavam dentro do bolchevismo uma ala defensora de teses como as seguintes (nas palavras do próprio Sultan-Galiev em alguns de seus discursos e artigos):
a) “Os povos muçulmanos são povos proletários… Os movimentos nacionais nos países muçulmanos têm as características de uma revolução socialista.”
b) “As premissas materiais para a transformação social da humanidade podem ser criadas apenas por meio do estabelecimento da ditadura das colônias e semicolônias sobre as metrópoles.”
c) Nas áreas habitadas por muçulmanos, o partido comunista deveria “integrar seus ensinamentos [ou seja, o marxismo] com o Islã” e aceitar “a necessidade de políticas conciliatórias face às tradições e religião muçulmanas”, pois, embora o Islã estivesse “condenado a desaparecer […] como todas as outras religiões do mundo”, ele, “entre todas as ‘grandes religiões’ […] é a mais nova, e portanto a mais forte e resistente no que diz respeito à influência que exerce”; a lei islâmica conteria prescrições “positivas”, como a “natureza obrigatória da educação… e a obrigação de trabalhar e comerciar”, ou a “ausência de direitos privados de propriedade sobre as terras, águas e florestas”. Adicionalmente, a singularidade do Islã residiria no fato de que “durante o último século, todo o mundo islâmico foi explorado pelo imperialismo europeu ocidental”; o islã foi e continuava sendo “uma religião oprimia forçada a estar na defensiva”, e uma tal opressão permanente seria a fonte de um profundo “sentimento de solidariedade” entre muçulmanos, e também de um desejo de emancipação. Os comunistas, portanto, não deveriam esforçar-se pela eliminação do Islã, mas sim trabalhar pela sua secularização, sua “marxização”.
d) A integração entre o marxismo e o Islã deveria ser feita por um partido especial, não pelo partido comunista, dada a longa tradição do chauvinismo grão-russo herdada do czarismo apresentar-se como obstáculo à integração das diferentes nacionalidades como iguais sob a égide do Partido Comunista Russo. Da mesma forma, o Exército Vermelho – ou melhor, o Exército Vermelho Proletário Oriental concebido por esta ala – serviria como uma “classe social” substituta do proletariado urbano autóctone, inexistente como força social e política dado o baixíssimo grau de industrialização.
e) Grandes áreas territoriais deveriam ser formadas no processo pós-revolucionário para abarcar quantos muçulmanos fosse possível.
Conquanto a vasta maioria dos historiadores afirme que Sultan-Galiev era um pan-turaniano que ambicionava a criação de um grande Estado tártaro-turco que se estenderia do Volga até a Ásia Central, pesquisadores que tiveram acesso à totalidade dos escritos de Sultan-Galiev, como Martin Baker, afirmam que sua posição mais consistente não foi a de um nacional-comunista, ou pan-turco ou pan-islamista, mas a de um defensor da revolução mundial que destacava a necessidade de os bolcheviques focarem-se na libertação dos povos colonizados do mundo, e do papel essencial destes últimos no sucesso da revolução. No rascunho de sua autobiografia, escrita na prisão ao modo de confissão, Sultan-Galiev assevera: “não falarei de mim mesmo, pois nunca fui um nacionalista e nunca o serei”. Voltemos, então, às palavras escritas pelo próprio em 1917, quando de sua adesão aos bolcheviques:
Trato agora da minha cooperação com os bolcheviques. Direi o seguinte: associo-me a eles não por sicofantismo. O amor por meu povo, que repousa inerentemente dentro de mim, leva-me a eles. Vou até eles não com o objetivo de trair nossa nação, não para beber seu sangue. Não, não! Vou até eles porque acredito de todo meu espírito na justeza da causa bolchevique. Sei disto; é minha convicção. Deste modo, nada poderá removê-la da minha alma. Percebo agora que apenas alguns entre os bolcheviques conseguiram implementar o que foi prometido no começo da revolução Mas foram eles que pararam a guerra. São eles que lutam para dar às nacionalidades a condução de seus próprios destinos. Somente eles revelaram quem começou a guera mundial. Por que não acorreria a eles? Eles também declararam guerra ao imperialismo inglês, que oprime a Índia, o Egito, o Afeganistão, a Pérsia e a Arábia. Eles são igualmente aqueles que levantaram as armas contra o imperialismo francês, que escraviza o Marrocos, a Argélia e outros Estados árabes na África. Como poderia não acorrer a eles? Vejam, eles proclamaram as palavras, que nunca haviam sido ditas desde a criação do mundo na história do Estado russo. Apelando a todos os muçulmanos na Rússia e no Oriente, eles anunciaram que Istambul deve estar em mãos muçulmanas. Fizeram-no enquanto as tropas inglesas, tomando Jerusalém, apelavam aos judeus com as palavras: “reúnam-se rapidamente na Palestina, vamos criar um Estado europeu para vocês”.
Nacionalismo tártaro? Pan-turquismo? Pan-turanismo? Pan-islamismo? “Marxismo com sabor local”, como quer hoje a corrente pós-colonialista? Sua posição parece flutuar ao sabor das circunstâncias, e historiadores poderão encontrar citações às fartas para justificar qualquer dos epítetos. Melhor talvez seja entendê-los como um todo contraditório. Melhor, enquanto hipótese, talvez seja entender, a partir de seus escritos, que Sultan-Galiev tinha clareza, desde o início de sua carreira política, que o tipo de modernização a que almejava implicava necessariamente na superação do localismo tártaro; por outro lado, as duas alternativas historicamente postas para uma tal superação, o islamismo jadidista e o bolchevismo, entrechocavam-se ideológica e praticamente, e a sorte de Sultan-Galiev resultou exatamente de suas reiteradas tentativas de colocar-se a meio de caminho entre elas.
Não é na obra escrita de Sultan-Galiev, entretanto, que respostas podem ser encontradas, mas sim sua na prática política e na daqueles que lhe foram próximos. É dela que resulta a obra escrita, e as contradições encontradas nesta última são as contradições de práticas em conflito.
Vimos anteriormente que Sultan-Galiev, Rauza Chan’sheva e sua filha Rashida retornaram a Cazã em 1917. Em seguida à revolução de outubro, ele desempenhou papel crucial na defesa da cidade durante a guerra civil, e sua proeminência aumentou após a morte de Vakhitov. Em março de 1918, Sultan-Galiev participou da 1ª Conferência dos Explorados Muçulmanos da Rússia, que adotou moção pela criação de um Partido de Socialistas e Comunistas Muçulmanos, independente do Partido Comunista Russo. Três meses depois, na 1ª Conferência dos Comunistas Muçulmanos, realizada em Cazã, o partido passou a chamar-se Partido Russo dos Comunistas Islâmicos (bolcheviques), e embora se afirmasse bolchevique manteve sua independência organizativa e tinha comitê central próprio, do qual Sultan-Galiev, ainda filiado ao Partido Comunista Russo (bolcheviques), era parte.
Os bolcheviques, embora não concordassem com a ideia de um partido comunista muçulmano independente, toleravam-no pela necessidade de concentrar esforços em vencer a guerra civil; à medida em que a guerra civil se desenvolvia no plano militar, entretanto, lutas intestinas selavam o destino das organizações políticas islâmicas em território grão-russo. No 1º Congresso dos Comunistas Muçulmanos, realizado em novembro de 1918 em Moscou, Sultan-Galiev buscou o reconhecimento formal dos bolcheviques ao partido muçulmano, rejeitado em nome “do centralismo e da eficiência administrativa”. O partido muçulmano foi então incorporado ao partido bolchevique, emergindo do processo como o Comitê Central das Organizações Muçulmanas do Partido Comunista Russo (bolchevique) e tendo Sultan-Galiev como comissário. No 8º Congresso do partido bolchevique, em março de 1919, este comitê foi substituído pelo Escritório Central de Organizações Comunistas dos Povos do Oriente, e no 2º Congresso das Organizações Comunistas dos Povos do Oriente, realizado em Moscou em novembro/dezembro de 1919, a autonomia das organizações comunistas muçulmanas foi explicitamente exterminada, tendo como precedente a questão do Bund judaico. 80 delegados representaram organizações do Partido Comunista provenientes do Turquestão, de Khiva e Bucara (no atual Uzbequistão), do Quirguistão, do Cáucaso e da região do Volga. Na sessão de abertura, Lênin adotou um tom otimista sobre a revolução no Oriente, mas não forneceu nenhum detalhe sobre como alcançá-la. Ao tempo em que afirmou que as nações oprimidas do Oriente contribuiriam para uma vitória socialista, insistiu em que o proletariado europeu ocidental formava a vanguarda socialista do movimento revolucionário. O Oriente poderia apenas seguir seus passos.
Apesar de tudo, Sultan-Galiev foi cooptado para o Comissariado das Nacionalidades (Narkomnats), sob comando direto de Stálin, e tornado coeditor da Vida das Nacionalidades (Жизнь Национальностей / Zhizn’ Nacional’nostej), periódico deste órgão, onde encontrou espaço para ajustar detalhes de suas ideias sobre a revolução socialista e suas ramificações de longo prazo para as diversas nacionalidades que agora se encontravam sob a influência soviética. Já em 1921, no ocaso da guerra civil, Sultan-Galiev era o mais importante muçulmano em toda a hierarquia soviética, e havia alcançado uma posição única de onde podia influenciar as políticas do regime soviético para o Oriente. Durante seu mandato à frente do Narkomnats entre 1918 e 1923, Sultan-Galiev demonstrou um conhecimento íntimo das diversas histórias, culturas e idiomas das nacionalidades sob sua supervisão, conhecimento de que poucos entre os burocratas de Moscou poderiam se orgulhar. Passou a maior parte de seu tempo viajando: a observação das condições econômicas e políticas em primeira mão permitiu-lhe construir uma visão para a revolução e o desenvolvimento no Oriente que mantinha-se sensível à grande diversidade interna à nascente União Soviética. Por exemplo, num artigo na Vida das Nacionalidades de abril de 1920, Sultan-Galiev notou como a recente fundação da República Soviética do Azerbaidjão, a seu ver, trazia em si uma vitória decisiva para a revolução socialista mundial:
Se o Turquestão Vermelho tem até agora desempenhado o papel de um farol revolucionário para o Turquestão chinês, Tibete, Afeganistão, Índia, Bucara e Khiva, então o Azerbaidjão Soviético, com seu proletariado revolucionário antigo e experiente e um partido comunista fortalecido, servirá como um Farol Vermelho para a Pérsia, Arábia e Turquia.
Ironicamente, os contatos que Sultan-Galiev consolidou durante suas viagens a estas áreas serviram posteriormente de munição para seus acusadores como “evidências” de suas tentativas de criar uma rede conspiratória clandestina entre os muçulmanos da Eurásia.
No que diz respeito à sua lealdade partidária, a resposta de Sultan-Galiev a uma crise política entre os tártaros da Crimeia merece consideração. Sultan-Galiev passou a maior parte de fevereiro e março de 1921 na Crimeia em missão do Narkomnats. Num relatório endereçado a seu chefe, Stálin, ele descreveu o “caráter amador” do trabalho partidário no local, alertando que se Moscou não direcionasse mais de sua atenção à periferia, atitudes antissoviéticas poderiam ser traduzidas em revolta. Sultan-Galiev sugeriu que o problema estava na falta de bolcheviques nativos, com apenas trinta deles na capital de Simferopol e menos ainda nas áreas provinciais. Referiu-se duramente ao uso exorbitante do terror na Crimeia, estimando que as forças soviéticas haviam executado entre 20 mil a 25 mil oficiais e simpatizantes do exército branco, 12 mil deles em Simferopol apenas. Uma tal política deixara a todos apavorados com o regime soviético. Sultan-Galiev voltou suas baterias também contra os chamados “resorts vermelhos” (zdravnitsy): a disparidade entre os burocratas relaxando nos spas durante suas férias e os tártaros da Crimeia morrendo de fome e doença nas ruas haviam voltado a população local contra o poder soviético. Os chefes partidários também ignoravam questões importantes como a reforma agrária, a educação e a saúde pública. As palavras finais de Sultan-Galiev em seu relatório revelam a seriedade da situação:
A população tártara [da Crimeia] interpreta tudo isto [a desigualdade] como manifestação de uma política organizada, mas latente, de colonização por parte do poder soviético, desconfiado do Oriente como se se tratasse de uma terra de elementos pequeno-burgueses. [Os tártaros da Crimeia acreditam que] O poder soviético busca a completa desmoralização econômica e política dos turco-tártaros, vistos como a vanguarda da inevitável próxima onda de agitadores em prol da libertação das colônias. Fundado na eliminação dos direitos à propriedade privada, o poder soviético e o comunismo aparentam ser as novas formas do imperialismo europeu, e portanto mais poderosas e ameaçadoras que antes. Estas são as ideias venenosas que infestam a consciência dos tártaros da Crimeia.
O relato franco de Sultan-Galiev acerca da situação degenerescente na Crimeia afirma não apenas sua lealdade à autoridade soviética, mas também sua boa vontade ao criticar a política do partido. Ao falar a verdade ao poder, todavia, Sultan-Galiev cedo se encontraria fora do domínio das práticas aceitáveis.
Voltemos ainda uma vez a 1919, pois há mais a ver. Em março foi estabelecida a República Socialista Soviética Autônoma Basquir; em novembro, durante a preparação do 2º Congresso das Organizações Comunistas dos Povos do Oriente, Sultan-Galiev exigiu a criação do Estado tártaro-basquir, que uniria a recém-criada república a um Estado tártaro para formar uma só grande república túrquica no Volga. A questão foi recusada por Lênin e remetida ao Comitê Central do Partido Comunista Russo (bolcheviques). Sultan-Galiev repetiu a proposta poucos dias depois durante o Congresso e encontrou apoio entre os delegados ali presentes, mas o Comitê Central do PCR(b) colocou um fim a todos os debates neste sentido. Sultan-Galiev recorreu novamente a Lênin em março de 1920 na tentativa de convencê-lo da necessidade de alargar as fronteiras da futura república tártara para incluir os basquírios e outros muçulmanos; Lênin, mais uma vez, recusou esta proposta e acusou os tártaros de demonstrar “chauvinismo imperialista”, de buscar impor seu domínio sobre os basquírios, “mais atrasados”. Com o decreto de criação da República Socialista Soviética Autônoma (RSSA) Tártara em 27 de maio de 1920 a situação pareceu encerrada, e a política bolchevique para o Oriente explicitou-se: ao invés de grandes Estados independentes, fragmentação em diversas pequenas repúblicas autônomas submetidas à soberania russa. O “grupo dos 39” – a ala direita dos comunistas tártaros (a maior parte líderes partidários, mas aparentemente alguns trabalhadores de base também faziam parte do grupo) – chegou a enviar um abaixo-assinado ao Comitê Central do Partido Comunista expressando sua insatisfação com o modo pelo qual o Comitê Regional do partido na RSSA Tártara conduzia a questão nacional e acusando-o de “chauvinismo grão-russo”, sem efeito.
O que aconteceu com Sultan-Galiev depois disto? Por aquela altura, uma luta seriíssima estava sendo travada em torno dos diversos aspectos da consolidação da nação e do Estado na Rússia pós-revolucionária. A guerra civil russa (1918-1922) pode ser entendida de vários modos, mas o fato inconteste é que neste período as comunicações internas, os meios de transporte, as estruturas burocráticas, as instituições econômicas, tudo, enfim, estava em ruínas. O proletariado que havia sido o esteio revolucionário do período aberto em fevereiro de 1917 ou havia perecido nas frentes de batalha, ou havia morrido de fome nas cidades, ou havia retornado à condição camponesa para sobreviver; substituíra-o um novo proletariado composto por migrantes recém-chegados dos campos, desgarrados de suas tradições sociais, culturais e organizativas, sem experiência prática de trabalho e sem quaisquer vínculos sociais ou redes de solidariedade nas cidades – prontos, portanto, para um nível intenso de exploração a que seus finados antecessores citadinos certamente não se sujeitariam. O próprio campesinato vivia a dupla exploração pelos kulaks e pelos agentes do Estado soviético, e não era incomum recusar-se a plantar novas safras. Não havia um só ramo da economia em que a produção se encontrasse a mais que a metade do que havia sido antes de 1917. A fome atravessava toda a Rússia, vitimando entre dois a cinco milhões de pessoas entre 1920 e 1921; especialmente nos territórios tártaros do Volga – o que certamente interessava de perto a Sultan-Galiev – a fome era mais aguda, havendo registros de vilas que perderam metade ou mais de sua população. Encerrada a guerra civil, a Nova Política Econômica (новая экономическая политика / novaja jekonomicheskaja politika, НЭП / NEP) estava em processo de implementação; tratava-se de um conjunto de medidas levadas a cabo pelos bolcheviques, vitoriosos, destinado a permitir a acumulação capitalista privada em paralelo à acumulação capitalista estatal, em ambos os casos na tentativa de colocar a economia russa de volta ao funcionamento – não em moldes socialistas, como se queria no início do processo revolucionário, mas sob a forma de um capitalismo de Estado, de um capitalismo dirigido. Para tanto, uma vasta reestruturação dos aparatos políticos e econômicos se fazia necessária, e a solução da “questão das nacionalidades” entre 1921 e 1923 esteve em estreita dependência desta reestruturação.
Depois de junho de 1923, cessou todo debate público acerca da questão das nacionalidades. Stálin rejeitou a devolução de poderes federativos às repúblicas nacionais, para que o poder permanecesse em Moscou. No curso do mesmo ano, Stálin declarou ainda que o Estado soviético desenvolveria aquelas “formas” de nacionalidade que não desafiassem os interesses de uma política soviética centralizada. Este apoio aos territórios, linguagens, elites e culturas nacionais marcou o início das políticas conhecidas como korenizatsiia (“nativização”), que por volta do final dos anos 1920 produziu mudanças notáveis no número de não-russos nas estruturas partidárias e estatais locais, além de certa autonomia cultural para tais grupos. Lênin e Stálin pretendiam com esta agenda – descrita como a fundação do “império soviético da ação afirmativa” – dar ao poder soviético um tom local enquanto a autoridade permanecia na metrópole.
Mesmo assim, se 1923 representa o mais claro reconhecimento por parte dos bolcheviques do direito às nacionalidades de buscar alguma autonomia na administração de assuntos locais, por que Sultan-Galiev caiu em desgraça no exato instante em que tinha início a korenizatsiia?
Desafortunadamente, a posição de Sultan-Galiev diferia da de Stálin, seu chefe imediato no Narkomnats, em muitos pontos importantes. Suas afirmações para um grupo faccional no 10º Congresso dos Sovietes da Rússia foram consideradas equivocadas; exigiu um aumento dos direitos das repúblicas autônomas da Rússia para tornar seu status mais próximo daquele das repúblicas que constituíam a União Soviética, e repetiu-as em reuniões do Narkomnats. Como delegado ao 12º Congresso do Partido, Sultan-Galiev participou no trabalho de sua seção nacional e suscitou novamente a questão do aumento dos direitos das repúblicas autônomas. Não parece ter havido registros estenográficos desta sessão do congresso, mas fontes arquivísticas recentemente abertas ao público sugerem uma supervisão de Stálin ao ataque a Sultan-Galiev, aparentemente como resultado de um incidente no 12º Congresso do partido. Sultan-Galiev, então, rejeitou enfaticamente a abordagem de Stálin à questão das nacionalidades, declarando que “em minha opinião, os decretos promulgados por Stálin não resolvem a questão, e a menos que queiramos lidar decisivamente com a questão agora, seremos forçados a voltar a ela no futuro”. Sultan-Galiev objetou-se à estrutura da nova União Soviética e à relegação das repúblicas como a RSSA Tártara a uma posição hierárquica inferior. Propôs, alternativamente, que entrassem diretamente na União Soviética. Num discurso de dezembro de 1922, Sultan-Galiev alegou que qualquer outra abordagem criaria um sistema desigual de “filhos bastardos e filhos legítimos” entre as repúblicas. Como antes, Sultan-Galiev não teve escrúpulos em criticar as políticas com as quais discordava, e o 12º Congresso do partido não se provou exceção à regra – apesar do fato de que Stálin, cada vez mais poderoso e desdenhoso dos divergentes, não respondeu favoravelmente à reprimenda pública de Sultan-Galiev. Para piorar sua situação, no ápice do “conflito georgiano”, ao não encontrar apoio para suas propostas em Stálin, seu superior imediato no Narkomnats, Sultan-Galiev voltou-se para Trótski, e em uma de suas cartas da época citou uma opinião de Lênin que contradizia as ações de Stálin. Trótski rejeitou a aproximação com Sultan-Galiev; Trótski, assim como a maior parte da esquerda bolchevique que lhe era então próxima ou circunvizinha, não tinha qualquer política definida acerca da questão das nacionalidades, e evitou qualquer contato. Stálin acreditava ser um grande especialista na questão das nacionalidades – e os resultados da reprimenda não demoraram a aparecer.
Em 4 de maio de 1923, a OGPU, a polícia secreta soviética, prendeu Sultan-Galiev por haver supostamente escrito várias cartas em que mencionava esforços em curso para organizar uma revolução no Ocidente por meio de um trabalho clandestino em Moscou, na Turquia, no Irã, na Índia, no Afeganistão e na Ásia Central. Numa das ditas cartas, Sultan-Galiev aparentemente pediu a seu amigo Abdulla Adigamov, um comissário na RSSA Basquir, que conseguisse uma reunião com Zeki Velidi Togan, conhecido na Rússia como Ahmet-Zaki Ahmetshahovich Validov. Nacionalista basquir ferrenho, Validov tinha um histórico tumultuoso com os bolcheviques. Durante a guerra civil, Validov perfilou-se inicialmente junto ao exército imperial branco até que Sultan-Galiev convenceu-o a apoiar os bolcheviques em troca da autonomia basquir. A lealdade de Validov provou-se curta; ele fugiu para a Ásia Central, onde serviu como comandante aos rebeldes basmaquis em luta contra o poder soviético. Autoridades partidárias interpretaram o interesse de Sultan-Galiev de comunicar-se com Validov em 1923 como evidência de seus supostos objetivos políticos comuns de solapar o poder soviético. Notavelmente, no final de 1922, Validov havia aparentemente indicado ao escritório dos bolcheviques para a Ásia Central seu interesse em retornar ao partido. Sultan-Galiev replicou posteriormente dizendo que pretendia apoiar esta reconciliação e buscou Validov. Alegou também que seus inimigos haviam fabricado toda a linguagem conspiratória em sua correspondência. Não obstante, a Comissão Central de Controle, que cuidava das atividades dos membros do partido, expulsou Sultan-Galiev do partido após sua prisão. O chefe da Divisão Oriental do OGPU, Iakov Peters, junto a seu investigador substituto Iakov Arganov, começou a interrogar Sultan-Galiev em 7 de maio, chegando a extrair dele duas confissões no curso de várias semanas. Puseram muita pressão psicológica sobre Sultan-Galiev, mas não recorreram a qualquer tortura física – bem diferente do que se deu em prisões subsequentes, para azar de Sultan-Galiev.
Reportando sobre a investigação à Comissão Central de Controle em 6 de junho, Viacheslav Menshinskii, vice-presidente do OGPU, recomendou a libertação de Sultan-Galiev, dado ser “politicamente indesejável levar o caso aos tribunais” na medida em que “suas próprias confissões deixá-lo-iam politicamente neutralizado”. Como proposto, Sultan-Galiev foi libertado da prisão 45 dias depois, mas apesar de sua sobrevivência física a prisão e encarceramento simbolizaram sua morte política: depois de 1923 Sultan-Galiev tornou-se sinônimo de desvio nacionalista e antissoviético, permanecendo assim um “inimigo do Estado”.
A 4ª Conferência do Comitê Central do Partido Comunista Russo (bolcheviques) com os Militantes das Repúblicas Nacionais e Regiões serviu como uma prévia das farsas judiciais movidas posteriormente contra Sultan-Galiev. Numa reunião do Politburo em 19 de maio de 1923, Stálin instruiu Valerián Vladímirovich Kújbyshev a agrupar os líderes dos territórios nacionais e a “apresentar-lhes o caso de Sultan-Galiev e mostrar-lhes aonde o secretismo e as atividades antipartidárias levam inevitavelmente”. Na conferência, líderes partidários esfolaram Sultan-Galiev. Como escreveu Stálin a Zinóviev numa sessão, “devemos sempre esmagar os contrarrevolucionários!” Cinquenta e oito representantes de todas as vinte repúblicas e oblasts nacionais, em adição a nove entre onze membros do Politburo, fizeram-se presentes à conferência, que se deu entre 9 e 12 de junho de 1923 em Moscou. Os delegados passaram todo o primeiro dia e parte do segundo dia discutindo o “caso Sultan-Galiev”. Liderando o assalto, Kújbyshev relatou novamente a investigação acerca da traição de Sultan-Galiev, focando em suas supostas interações com Zaki Validov, o rebelde basmaqui. Kújbyshev deu testemunho de que Sultan-Galiev pretendia unificar vários elementos antipartidários numa oposição unificada. Ele concluiu o relato com uma proposta de resolução condenatória de Sultan-Galiev que clamava por vigilância redobrada contra o “desvio nacionalista”. Os discursos que se seguiram abordaram a natureza do desvio nacionalista, com uma luta entre a “esquerda” e a “direita” ocupando o proscênio. Neste contexto, tais correntes guardavam pouca relação com os movimentos hoje conhecidos como Oposição de Esquerda e Oposição de Direita, que nunca desenvolveram uma abordagem consistente acerca da questão das nacionalidades; a “esquerda” e a “direita” eram, na verdade, agrupamentos oriundos das várias repúblicas autônomas, especialmente da RSSA Tártara e da RSSA Basquir, que divergiam quanto à korenizatsiia e à autonomia. A “esquerda” agitava em prol do internacionalismo e da centralização, e interpretava os “crimes” de Sultan-Galiev como sintomáticos de uma doença difusa que deveria ser extirpada por meio de expurgos partidários; a “direita”, que favorecia a autonomia nacional, retratava os “crimes” de Sultan-Galiev como exemplo isolado de um nacionalismo que deu errado. Muitos entre os “direitistas” eram próximos de Sultan-Galiev e temiam que a associação com ele ameaçasse suas próprias posições. Sakhibgarei Said-Galiev, velho adversário de Sultan-Galiev e líder da “esquerda”, foi o primeiro a sugerir que não se fizesse referência a Sultan-Galiev, mas à sultangalievschina (“sultangalievismo”); outros adotaram rapidamente o termo, e no segundo dia era o sultangalievismo, e não mais a pessoa de Sultan-Galiev ou qualquer discussão sobre sua inocência ou culpa, quem estava em debate na conferência. Ao final dos debates, surgiu a seguinte resolução:
1. Sultan-Galiev, indicado pelo Partido para um cargo de confiança no Colegiado do Comissariado do Povo para as Nacionalidades, beneficiou-se de sua situação e das relações que dela advinham… para estruturar… uma organização ilegal para opor-se a medidas tomadas pelos órgãos centrais do Partido. Ele recorreu a métodos conspiratórios e usou informação secreta para falsificar deliberadamente as decisões do Partido acerca da política das nacionalidades.
2. Sultan-Galiev tentou utilizar esta organização antipartidária para minar a confiança das nacionalidades anteriormente oprimidas no proletariado revolucionário, e buscou prejudicar a união destas duas forças, que é um dos elementos essenciais para a existência do poder soviético e para a libertação dos povos do Oriente do imperialismo.
3. Sultan-Galiev lutou para estender sua organização além da União das Repúblicas Soviéticas, tentando entrar em relação com seus apoiadores em certos países orientais (Pérsia, Turquia) para reuni-los em torno de uma plataforma oposta à política do poder soviético.
4. Os fins antipartidários e objetivamente contrarrevolucionários de Sultan-Galiev e a própria lógica de sua atividade antipartidária levam-no à traição, à aliança com as forças contrarrevolucionárias em luta aberta pela derrubada do regime soviético. Daí que tenha buscado ligar-se, por meio de seu chefe, Zeki Validov, com os basmaquis do Turquestão e Bucara, apoiados pelo imperialismo internacional.
5. Esta Conferência considera, em consequência, que os atos criminosos contra a unidade partidária e a república soviética, atos inteiramente admitidos por ele em suas confissões, colocam-no fora do Partido Comunista.
Logo o sultangalievismo tornou-se arma no combate entre a “esquerda” e a “direita” em nível local – o que demonstra não serem unívocas as organizações comunistas locais; veja-se, a este respeito, o exemplo de Salah Atnagulov: comunista tártaro de esquerda, divergia frontalmente de Sultan-Galiev e da “direita” no que diz respeito à consciência de classe do proletariado tártaro; duramente criticado pela “direita”, já em 1922 Atnagulov escrevera um ensaio intitulado Soltangaliefcelknen tarixi tamrlary (“As raízes históricas do sultangalievismo”). Numa conferência do Partido Comunista Tártaro ocorrida em Cazã entre 19 e 21 de julho, os delegados rejeitaram a sultangalievschina como uma ameaça à estabilidade da RSSA Tártara e como inconsistente com a política do partido para a questão das nacionalidades.
Voltemos uma última vez ao contexto, pois o terror dos anos 1930, epitomado pelos processos de Moscou, não se explica sem conhecê-lo. Dirigido contra “nacionalistas burgueses” como Sultan-Galiev e outros “elementos” igualmente “perigosos”, o terror marcou a guinada do partido bolchevique rumo às políticas de coletivização e centralização mais “linha dura”; seu aparente foco na “eliminação do dissenso”, verdadeiro cavalo-de-batalha das narrativas mais superficiais do período, oculta o fato de que se tratava de um segundo passo na aceleração da acumulação capitalista em curso desde a NEP. Se a NEP representou a coexistência entre a acumulação capitalista privada e a acumulação capitalista de Estado para recolocar a economia soviética de volta ao funcionamento (capitalista, não socialista) após o estado de ruína ao final da guerra civil, os planos quinquenais foram a solução prática, conquanto drástica, encontrada para aumentar o ritmo desta aceleração, dado que o volume de capital acumulado pelos burgueses mostrava-se insuficiente para alavancar a economia. A coletivização agrária foi sua contraparte nos campos. Tanto uns quanto a outra só foram possíveis porque, além da obliteração da classe trabalhadora revolucionária durante a guerra civil e sua substituição por novos trabalhadores oriundos dos campos e sem qualquer enraizamento ou tradições de organização e solidariedade nas cidades, muitos entre os mais capazes – ou mais oportunistas – entre esta nova classe trabalhadora eram cedo cooptados para a burocracia soviética. Na falta de quadros experientes para renovar a burocracia, além do expediente aos técnicos da era pré-revolucionária já empregues em larga escala ainda durante a guerra civil, os bolcheviques soltaram muitos dos oposicionistas (bolcheviques ou não) e dissidentes que haviam prendido e incorporaram-nos à burocracia em cargos de médio e alto escalão. Na medida em que os novos quadros recém-formados ascendiam, estes velhos militantes oposicionistas e dissidentes eram perseguidos, presos e mortos por qualquer razão, abrindo então espaço para os novos quadros. Estes últimos, na medida em que não tinham um passado condenável ao qual recorrer como fonte de ameaças, eram constantemente assediados com o fantasma da “sabotagem”, ou seja, da pena de morte quase certa se não cumprissem as metas que lhes haviam sido impostas. E assim formou-se um sistema mediante o qual não apenas uma nova classe trabalhadora arrastada dos campos para as cidades pelas coletivizações forçadas era enquadrada e disciplinada, mas igualmente uma nova classe de gestores e burocratas era formada a partir dela, em ambos os casos posta a trabalhar não por meio de quaisquer incentivos econômicos, mas sim pelo medo da morte.
Sultan-Galiev viveu outros dezessete anos depois de 1923, mas foi a vida de um pária social, constante e maliciosamente vigiado pelos órgão de segurança. Até 1928, ele passou seu tempo viajando em nome do sindicato dos caçadores (Okhot Soiuz) e complementando sua renda com eventuais resenhas e traduções. Ainda em 1928 teve início o trabalho de fabricação de um caso contra o “sultangalievismo” – este agente do capitalismo internacional e dos exércitos estrangeiros. Em contraste ao que aconteceu em 1923, não houve qualquer restrição, e agora havia experiência suficiente em falsificação de casos. Para que tudo fosse mais convincente, uma ligação com a organização nacionalista crimeia Milli-Firka foi arranjada porque um dos camaradas de Sultan-Galiev durante a guerra civil, Ismail K. Firdevs, estava envolvido em atividades revolucionárias na Crimeia, embora Sultan-Galiev se opusesse a toda forma de nacionalismo. A esta altura o processo contra Kámenev e Zinóviev estava sendo preparado, e houve inclusive uma tentativa de atribuir a criação de uma seção nacional do programa trotskista-zinovievista aos sultangalievistas. Todavia, Zinóviev e Safarov negaram a armação. De qualquer forma, havia acusações suficientes mesmo sem esta: tentativa de destruição da coletivização agrária, preparação para a rebelião armada, colaboração com serviços secretos estrangeiros e muito mais do arsenal dos anos 1930. No outono de 1928 o OGPU prendeu 77 membros do partido, economistas, cientistas, camponeses, artesãos e estudantes por tentativa de insurreição armada sob o comando de Sultan-Galiev; tratava-se, na verdade, de figuras da “direita” bolchevique tártara como Kashaf Mukhtarov, Gasym Mansurov, Arif Enbaev, Raul Sabirov, Ismail K. Firdevs, Midgat Brundukov, Makhmud Budaili e outros que haviam apoiado Sultan-Galiev na conferência especial do Comitê Central em julho de 1923. Todos foram incriminados e expulsos do partido. No final de 1929, muitas figuras conhecidas do esforço de consolidação nacional tártara foram excluídas do partido e subsequentemente presas. A maior parte foi sentenciada às punições mais severas pela OGPU entre 1930 e 1931.
Sultan-Galiev, preso também em 1928 e encarcerado no campo de trabalhos forçados de Solovki, foi sentenciado ao fuzilamento em 28 de julho de 1930. Não obstante, em 13 de janeiro de 1931, tendo estado no corredor da morte por seis meses aguardando o cumprimento da sentença, ela foi comutada pela de prisão por dez anos. Em 1934 Sultan-Galiev foi libertado e obteve permissão para viver no oblast de Saratov. No começo de 1937 Sultan-Galiev foi novamente preso, submetido a interrogatório, torturas e a todos os tipos de “persuasão”, mediante as quais as “confissões” necessárias foram extraídas. Em dezembro de 1939 ele foi novamente sentenciado à morte, e fuzilado em 28 de janeiro de 1940.
Às vésperas da queda do regime soviético já se estudava a reabilitação de Sultan-Galiev. Havia precedentes: no verão de 1989 M. Budaili e M. Brundukov, acusados em 1929 de serem líderes do “grupo centrista sultangalievista”, foram reincorporados ao partido; os julgamentos contra Rauf Sabirov, antigo presidente do Tattsik, contra Osman Deren-Airli, antigo presidente do SNK da Crimeia, e contra várias outras figuras acusadas junto com Sultan-Galiev nos anos 1930 e novamente em 1937, todos estes julgamentos foram reformados nos anos 1950 e 1960 por falta de evidências de crime. A reabilitação de Sultan-Galiev e dos outros 76 camaradas seus presos em 1928 foi concluída em 1º de junho de 1990.
***
Sultan-Galiev não é propriamente uma figura marginal. O alcance de suas propostas ultrapassa o contexto da revolução russa. Ahmed Ben Bella, primeiro presidente da Argélia, afirmou categoricamente ter sido influenciado pelo pensamento de Sultan-Galiev, em particular por sua ideia de uma “Internacional colonial”. Noutro registro, Sultan-Galiev tornou-se objeto de uma obra de ficção do escritor argelino Habib Tengour chamada Sultan Galiev ou la rupture des stocks, onde aparece como amigo próximo de Serguêi Alexândrovich Essênin.
Não se pode esquecer a influência exercida por Sultan-Galiev e outros que pensavam também em termos nacional-comunistas – como os turquestanos Allayar Korazovich Dosnazarov e Turar Ryskulov; o mongol Jelbék-Dorzhí Rinchínovich Rinchinó; o azerbaidjano Nariman Karbalayi Najaf oglu Narimanov e o cazaque Akhmet Baitursynov – como professores da Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente, onde estudaram figuras como Tan Malaka, das Índias Orientais/Indonésia; Manabendra Nath Roy, da Índia; Liu Shaoqi, Jiang Jingguo, Wang Fangxi e Deng Xiaoping, da China; Ziong Bat Mai e Ho Chi Minh, do Vietnã; Fayzulla Khodzhayev e Akmal Ikramov, do Uzbequistão; Nikos Zachariadis, da Grécia; Sen Katayama, do Japão; Nazim Hikmet, da Turquia; Najati Sidqi, da Palestina; Yusuf Suleiman Yusuf, do Iraque; Khaled Bagdash, da Síria; Shirinsho Shotemur e Meretdin Taj Amdinov, do Tadjiquistão; Utebai Turmanzhanovich Turmanzhanov e Akay Nusupbekovich Nusupbekov, do Cazaquistão; Vladimir Mikhailovich Khetagurov, da Ossétia; Hassan Israilov, da Chechênia; Urzinguin Yadamsuren, da Mongólia; entre outros.
Se diante das circunstâncias Sultan-Galiev parece uma escolha óbvia para ilustrar as contradições do nacional-comunismo na revolução russa, fica a questão: o “correto” naquela época seria, então, o quê? O oposto da prática de Sultan-Galiev? Voltemos ao caso de Salah Atnagulov: além de estar “à esquerda” de Sultan-Galiev, defendia que todos os esforços dos povos anteriormente explorados pelo regime czarista para desenvolverem sua cultura nacional não se justificavam. Seria este o caso? Parece-me que Atnagulov jogou fora o bebê junto com a água do banho.
Veja-se, então, saindo do contexto russo, o caso do comunista holandês Hendricus Josephus Franciscus Marie “Henk” Sneevliet. Ferroviário, filho de um charuteiro e de uma dona de casa, cedo tornou-se sindicalista e ingressou nas fileiras do Partido Social-Democrata Operário holandês em 1902; quando em 1911 o partido falhou em apoiar uma greve internacional de estivadores e portuários a que Sneevliet dera apoio, desfiliou-se (não custa lembrar que fora eleito em 1907 o primeiro vereador socialista da Holanda), demitiu-se de todos os cargos sindicais que ocupava e filiou-se ao Partido Social Democrata da Holanda, mais radical. O desgosto com o movimento socialista na Holanda, entretanto, fortalecera em si a decisão de migrar para as Índias Orientais Holandesas (atual Indonésia), onde viveu entre 1913 e 1918; lá, tornou-se membro ativo da luta contra o domínio colonial holandês, e foi co-fundador da Associação Social-Democrata das Índias, onde – raridade em tempos de cisão radical entre militantes das colônias e das metrópoles – atuavam conjuntamente indonésios e holandeses que defendiam uma estrita política de classe, o que, no movimento anticolonial, significava que lutavam ao mesmo tempo contra o colonialismo e contra os capitalistas autóctones. Tal orientação radical fez da Associação o embrião do movimento comunista naquela colônia. Sneevliet voltou na mesma época à atuação em sindicatos, e o sindicato dos ferroviários onde atuava era único – mais uma vez – pelo fato de congregar indonésios e holandeses sem discriminações. Com o advento da revolução russa e o apoio dado à Associação tanto por indonésios quanto por soldados holandeses, Sneevliet teve de fugir; ao retornar à Holanda, envolveu-se numa greve no setor de transportes em 1920, e mesmo à distância foi delegado pelo Partido Comunista da Indonésia (a antiga Associação Social-Democrata) ao 2º Congresso da Internacional Comunista, para cujo Comitê Executivo foi eleito. Impressionou tanto que foi enviado à China como representante da Internacional Comunista, onde viveu entre 1921 e 1923, fez-se presente no congresso de fundação do Partido Comunista Chinês e defendeu uma aliança com o Kuomintang de Sun Yat-sen. Retornando a Moscou em 1924, e depois à Holanda, foi cooptado para o comitê central do Partido Comunista Holandês, mas sucessivas divergências entre o grosso do CC, Sneevliet e seus correligionários levaram-no a sair do partido em 1927 e a romper igualmente as relações com a Internacional Comunista. Fundou o Partido Socialista Revolucionário em 1929 e foi preso em 1933 por apoiar o motim dos marinheiros do navio De Zeven Provinciën, que Sneevliet entendia ser parte do processo de libertação das Índias Orientais; somente sua eleição para deputado no mesmo ano, com slogans como “da cela para o parlamento”, livrou-o da prisão. O partido fundiu-se em 1935 ao Partido Socialista Independente para formar o Partido Revolucionário Socialista Operário, perseguido pelo governo holandês ao ponto de proibir qualquer funcionário público de filiar-se a ele. Um dia antes da capitulação holandesa o partido dissolveu-se para dar lugar, poucos meses depois, à Frente Marx-Lenin-Luxemburg (FMLL), organização clandestina da resistência holandesa voltada para a publicação do quinzenário Spartacus, cuja circulação chegou a 55 mil exemplares. A FMLL não escolhia ideologia, e dentro dela militaram leninistas, marxistas ortodoxos, comunistas de conselhos e anarquistas. Mesmo sob a ocupação alemã, a FMLL recusou-se a fazer agitação puramente antifascista, combatendo simultaneamente a ocupação e a burguesia local; chegaram a fazer propaganda entre soldados alemães, inclusive distribuindo secretamente panfletos nos quarteis com dizeres como estes:
“As massas populares não têm interesse numa vitória britânica.
Também não se interessam numa vitória alemã.
Elas devem tomar seu destino em suas próprias mãos.
Elas são a Terceira Frente, que pode e deve conquistar!
Abaixo a guerra, e abaixo também a paz capitalista!
A paz mundial só pode ser obtida pela vitória do socialismo internacional!”
Nas difíceis condições da clandestinidade, numa Holanda ocupada pelas tropas nazis, Sneevliet orientou o seu partido para a rejeição de todas as burguesias e burocracias, qualquer fosse o lado em que se encontrassem no conflito, e opôs-lhes uma “terceira frente”, a da classe trabalhadora internacional. A FMLL apoiou ativamente a greve holandesa de fevereiro de 1941, e a repressão nazi subsequente terminou com a prisão e execução de todo o seu corpo dirigente no início de 1942 – incluindo Sneevliet, fuzilado sem venda enquanto cantava a Internacional.
O importante é que para Sneevliet e os demais comunistas que defendiam a mesma orientação, a luta contra o colonialismo era inseparável da luta contra as classes dominantes autóctones, a emancipação dos povos não era considerada como objetivo específico nem como fase prévia de um processo, e a luta de classes dos explorados não era desviada para a construção de Estados nacionais. Isto, talvez, seja o correto – não para Sultan-Galiev e seus partidários, sobre cujos cadáveres temos a vantagem da posteridade, mas para nós, que certamente temos algo a aprender com as contradições do nacional-comunismo.
Notas
[1] No debate sobre a política a adotar quanto à questão nacional, a posição de Lênin pode ser vista em suas linhas gerais aqui e aqui; a de Rosa Luxemburg, menos conhecida, pode ser vista de forma muito sintética aqui ou, de forma mais extensa (em inglês), aqui, aqui, aqui, aqui, aqui (os artigos deste último link tem tradução para o português publicada como A questão nacional e a autonomia, Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1988) e aqui.
[2] Esta tabela, de autoria de Eric Blanc, foi preparada com base em diversas fontes, que podem ser checadas na nota 6 do artigo original.
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SCHAFER, D. E. The Politics of National Equality under Early NEP: factions in the Tatar Republic, 1920–1924. Central Asian Survey, vol. 9, nº 2, 1990.
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SMITH, J.. The bolsheviks and the national question, 1917–23. Londres: MacMillan, 1999.
SULTANBEKOV, B. F.; SHARAFUTDINOV, D. R. (orgs.) Neizvestnyi Sultan-Galiev: Rassekrechennye dokumenty i materialy. Cazã: Tatar. Kn. Izd.-vo, 2002.
SULTANBEKOV, B. F. Pervaya zhertva Genseka: Mirsaid Sultan-Galiev – sud’ba, lyadi, vremia. Cazã: Tatarskoe kn. Izd-vo, 1991.
SULTAN-GALIEV, Mirsaid Khaidargalievich. Izbrannye Trudy [Obras escolhidas] Organização e seleção por I. G. Gizzatullin e D. R. Sharafutdinov. Cazã: Izd-vo Gasyr, 1998.
TAGIROV, I. R. Istoriya natsional’noi gosudarstvennosti Tatarskogo naroda i Tatarstana. Cazã: Tatarskoe knizhnoe izdatel’stvo, 2008.
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YAMAUCHI, M.. Shingun ryokugun sekigun: Soren shakai shugi to Isuramu. Tóquio: The University of Tokyo Press, 1988.
YAMAUCHI, M., Surutan Gariefu no yume: Isuramu sekai to Roshia Kakumei. Tóquio: The University of Tokyo Press, 1986.
Este artigo foi escrito especialmente para integrar o esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação.
Para muito além dos resplandecentes méritos historiográficos, bibliográficos e analíticos deste texto, ele nos remete para uma questão de palpitante atualidade: como que o campo dito “autonomista” se organiza nas lutas sociais de hoje, sem ficar refém das organizações bolcheviques e bakuninistas no momento em que a direita tradicional vem para a ofensiva no “nosso” terreno (ruas, praças e espaços públicos em geral). Esse gelatinoso campo – o mal chamado autonomismo – no qual me incluo, tem demonstrado uma impotência organizativa que contrasta radicalmente com a precisão de suas críticas. Ou seja, pela negativa estamos bem, sabemos o que não queremos. Mas pela positiva… que fiasco!
Cito dois exemplos recentes. A) Durante o junho de 2013 depois que os coxinhas recuperaram a luta e partiram para a agressão física, presenciei e li relatos por todo o Brasil de autonomistas que se viram no condição de pedir “arrego” para o PSTU e ingressar na coluna morenista para salvara a própria pele. Nem que fosse para apanhar junto. B) Durante o impedimento de Dilma, fomos incapazes de abrir um terceiro campo público que apontasse concretamente para a oposição aos dois campos capitalistas e sequer conseguimos ser uma espécie de “consciência crítica” pela esquerda à CONLUTAS/PSTU que ensaiaram abrir o tal “terceiro campo” chamando pela Greve Geral (antes do racha que os fez recuar para o “Fora Temer”).
Nessa conjutura de “Bolsonaro X Lula” esse parece ser o desafio principal para quem, sendo do campo “autonomista”, não integra nem a ala dos antiorganizacionais nem a dos politicistas.
estimado Zé,
eu também me encontro com certo desgosto no chamado “campo autonomista” — creio preferir comunismo libertário ou até anarco-comunismo, ainda não tenho clareza do quanto importa isso em realidade. Mas tuas questões me parecem apontar a uma ansiedade capaz de desviar os focos do momento. Oras, o “campo autônomo/autonomista/etc” é tão pequeno, como TANTAS outras vertentes da extrema esquerda na atualidade, que preocupar-se com formular uma direção política para a situação brasileira está a milhas de distância de nossas tarefas concretas e tangíveis (no máximo, quiçá, apoiar taticamente uma ou outra tímida direção de esquerda). O mesmo poderia dizer-se em termos de colunas: me parece óbvio que no contexto das ruas de 2013 se os autonomistas saíam para marchar em colunas políticas que tivessem os trotskistas como aliados para qualquer tipo de combate físico contra o fascismo. De fato, as colunas “autonomistas”, assim convocadas para mobilizações grandes, me parece que apenas adicionam mais gatos na bolsa — ao menos os partidos tem um critério prévio de integrar a organização; na coluna autonomista entra quem quer sem nenhuma organização prévia ou que esteja conduzindo minimamente: que tipo de prática de segurança é essa? Se é apenas para dar a aparência de um campo político “autonomista”, é uma mistura de tiro no pé e sectarismo, talvez respondendo a esse tipo de ansiedade de querer ser uma expressão política apenas por juntar 50 pessoas em um lugar e hora marcados.
Para voltar um pouco à questão do texto, creio que o debate a respeito da organização territorial é extremamente interessante pois é justamente uma questão de autonomia o que está em jogo. Mas são duas autonomias, não uma. Primeiro está a questão da autonomia de governo, a forma de coordenação e centralização social e política dos territórios vizinhos ao centro político da ditadura bolchevique. Em segundo lugar está a autonomia dos militantes bolcheviques em relação ao partido — aqui parece que Sultan-Galiev, junto a Miasnikov, são exemplos para nós, “autonomistas”, ainda que fossem bolcheviques. Mostram que não existe uma fórmula de militância correta, existem inúmeras opções, mas dentro destas opções sempre estarão as formas mais coerentes e corajosas de atuar em uma perspectiva libertária, não é o simples pertencer a um partido que automaticamente transforma o sujeito em um quadrado — assim como o não pertencer não faz ninguém melhor ou mais sábio.
[OFF]
Olá, caros!
Tenho enviado e-mails ao coletivo,
com sugestões de revisão ao texto,
porém os e-mails têm retornado.
Abraços!
Olá Lucas,
Sua mensagem ajuda a lançar mais luzes sobre o problema. Mas o que eu tentei expressar foi um pouco mais modesto: começar a romper essa fragmentação do nosso campo ANTES do momento do enfrentamento (percebo que vc e eu sabemos da fragilidade de se travar uma luta que é coletiva em todos os níveis sem estar organizado coletivamente). Começar um processo de discussões nacionais que possa culminar em uma plataforma mínima de lutas e, assim, começarmos a aferir o nosso tamanho real em termos de país. Aí então será possível traçar ações e políticas compatíveis com a força concreta que se conseguiu organizar. Já seria um salto imenso de qualidade em relação ao que temos hoje no Brasil. A FMLL da Holanda de Sneevliet nos dá um ensinamento nesse sentido.
Sinta-se abraçado.
Caros Neto, você está correto: não recebemos nenhuma das suas mensagens. Entretanto, acabamos de lhe enviar um email. Por favor, confira em sua caixa de entrada e, caso não tenha recebido, nos notifique mais uma vez. Nos desculpamos desde já pelo inconveniente.
Cordialmente,
Coletivo Passa Palavra
Da seção comentários do PP ainda vai nascer uma organização autonomista. =P
PERGUNTA -QUE NÃO QUER CALAR- A BRENO:
É promessa ou ameaça?
Ótimo texto. Parabéns ao PP por apresentar mais um personagem que ficou oculto na versão oficiosa da Revolução Russa. Assim como o debate que Mirsaid Khaidargalievich Sultan-Galiev traz.
Concordo com os comentários do Zé e Lucas. O “campo autônomo “ deve tentar reunir forças para não passar em branco. Ultrapassar apenas a crítica. Pois, sempre vai estar a reboque da social democracia ou da direita conservadora.
Geral viajou. Sultan-Galiev não tinha nada de “autonomista”, nem tampouco Miasnikóv. Nem isso de “autonomismo” existia na época; é coisa dos anos 1960. Para se ter uma ideia, Miasnikóv não se adaptou nem sequer como “conselhista” quando foi “adotado” pela esquerda conselhista da Europa Ocidental depois de sua fuga da URSS; permaneceu até o fim da vida como um “bolchevique proletário”, um “comunista operário”. Precisamos ter muito cuidado para não projetarmos ao passado coisas que lá não existiam, e saber entender a História nos termos em que o fizeram aqueles que a construíram; do contrário, não há mudança, transformação, contextos, épocas, contradições, mas sim eterna repetição — o que tranquiliza o pensamento, mas não resolve nada prático.
O que ressaltei neste artigo foi o elemento central da ação política de Sultan-Galiev: as contradições entre a “modernização”, que no contexto da revolução russa era necessariamente internacionalista, e as preocupações étnico-nacionais. Poderia fazer o mesmo tendo Rinchinó como exemplo, ou Narimanov, ou ainda Vahitov, e as questões seriam as mesmas, os problemas enfrentados por eles seriam os mesmos, e as contradições seriam as mesmas. Da nossa parte, quais as contradições centrais para nossa ação política? Quais as propostas construídas no meio político para solucioná-las? Quais seus resultados? Quais seus problemas? Como se entrechocam? O que resulta destes entrechoques?
De outro lado, a comparação entre Sultan-Galiev e Sneevliet serviu para mostrar que nenhum contexto político comporta soluções unívocas, inescapáveis e inevitáveis para os mesmos problemas. A questão, e é isto o determinante da História, é a capacidade de mobilização de forças para que um determinado projeto político se sobreponha a outros. Ou esta questão é enfrentada, ou há que se contentar com o cassandrismo.
a conferir
https://hacialavida.noblogs.org/folleto-contra-la-posicion-leninista-sobre-el-imperialismo/