Por Passa Palavra
No último dia 14 de novembro, após manifestações do futuro presidente brasileiro em sua conta no Twitter, o governo cubano realizou um chamado para que todas e todos os médicos cubanos atuantes no Brasil por meio do Programa Mais Médicos retornem à Ilha, retirando-se, após 05 anos, do convênio de cooperação internacional intermediado pela OPAS entre os dois países. A motivação alegada para o distrato seria as futuras exigências do Brasil à Cuba anunciadas por Jair Bolsonaro: revalidação dos diplomas de médicas e médicos cubanos para que possam atuar em solo brasileiro; contratação direta dos médicos pelo Brasil, com remuneração repassada na íntegra para esses trabalhadores; e garantia do direito de que as famílias desses médicos e médicas, hoje residentes em Cuba, possam reunir-se a eles no Brasil.
O Programa Mais Médicos, oficialmente criado pelo governo de Dilma Rousseff (PT) em 2013 para levar atendimento básico aos municípios brasileiros até então carentes desse tipo de serviço, foi apresentado ao mundo como parte da resposta do Palácio do Planalto às Jornadas de Junho de 2013. Desde o início, o Mais Médicos dividiu opiniões: ao mesmo tempo em que rapidamente conquistou legitimidade social e popularidade entre os trabalhadores mais pobres, a exemplo dos demais programas sociais dos governos petistas, aprofundou um cisma existente entre os trabalhadores da saúde e, também, no interior da própria categoria médica, tendo parte dessa categoria aderido ao Programa e outra parte, representada pelas tradicionais organizações corporativas (Conselho Federal de Medicina, Federação Nacional dos Médicos e Associação Médica Brasileira), se posicionado de forma radicalmente contrária ao Mais Médicos e, a partir de então, alinhando-se abertamente ao campo de oposição progressivamente situado à extrema-direita no espectro do antipetismo.
Atualmente, a força de trabalho médica oriunda de Cuba representa 51,6% do total dos médicos empregados pelo programa, 8.332 trabalhadores de um total de 16.150, distribuídos em 2.857 municípios – 35% desses trabalhadores se encontram em cidades onde 20% ou mais da população vive em extrema pobreza, 16,8% estão em capitais e regiões metropolitanas, 10% em regiões de vulnerabilidade (semiárido, cidades com IDHM muito baixo) e 3,5% se encontram-se atuando na saúde indígena, conforme matéria da Folha de São Paulo. Restam, ainda conforme essa reportagem, 2.090 vagas ociosas no Programa, não ocupadas durante a vigência da cooperação internacional.
Ao longo do último quinquênio e sobretudo agora, quando aparentemente a saída dos médicos cubanos do solo brasileiro ameaça pôr um fim, na prática, ao Programa Mais Médicos, deixando desassistidos 24 milhões de pessoas – muitas das quais, graças ao programa, usufruíram, pela primeira vez, de alguma assistência médica regular à saúde – temos visto, de forma sistemática, a veiculação dos dados que comprovam o sucesso da iniciativa governamental: melhoria de indicadores, impacto na saúde pública, satisfação dos usuários, etc. E, exatamente, por isso, não será este o foco deste artigo, por mais que muitos desses números estejam, sob tortura, gritando “verdades” ou sendo utilizados para criar uma narrativa moralista.
Voltemos, assim, às novas condicionalidades anunciadas por Jair Bolsonaro.
Tanto a alegada baixa remuneração dos médicos, frente ao montante repassado ao governo cubano, quanto as restrições de trazerem para seu convívio os familiares formam o cerne do argumento que tenta caracterizar a contratação dos médicos cubanos, via programa Mais Médicos, como uma forma de escravidão – especialmente a restrição da migração familiar, tendo em vista que o seu descumprimento pode acarretar, como sanção aos transgressores, o impedimento de retornarem ao seio familiar por longos oito anos. Trata-se, portanto, de uma garantia de retorno dos médicos cubanos à Ilha, e de manutenção dos mesmos sob controle do governo de Cuba, ainda que em terras estrangeiras.
São especialmente essas duas últimas restrições existentes que as novas condicionalidades objetivavam quebrar, já que a primeira (revalidação do diploma) é uma demanda do corporativismo dos profissionais da medicina e o governo anterior em nada se curvou a ela. O aparente antagonismo entre o corporativismo médico e a inevitável proletarização da categoria, cujos integrantes não se enxergam e nem são vistos como trabalhadores pelo conjunto dos trabalhadores brasileiros, será problematizado em um próximo artigo.
De qualquer forma, a acusação de que o trabalho dos médicos cubanos, com as restrições impostas pelo programa, se caracterizaria enquanto uma forma de escravidão foi tratada como absurda pela maior parte da esquerda brasileira, pois a contratação em questão não difere das outras muitas que acontecem cotidianamente no país e no mundo. O caso do Mais Médicos não se configuraria uma aberração e o seu fim, ou pelo menos a retirada da metade dos médicos vinculados ao programa, aí sim configuraria uma perda significativa, mais do que qualquer outra crítica que se pudesse fazer à política pública em questão.
Ora, a demagogia da extrema-direita brasileira, agora representada pelo novo presidente, é evidente. Enquanto promete flexibilizar ainda mais as relações de trabalho através da carteira de trabalho verde e amarela, demonstra indignação com o que se passa com os médicos cubanos. Por outro lado, o pouco caso que a esquerda brasileira faz das críticas ao programa não deixa de expressar o total afastamento da mesma em relação ao mundo do trabalho: a falta de indignação diante da intensificação da exploração e da imposição de restrições à mobilidade dos trabalhadores cubanos demonstra o caráter gestorial de uma esquerda que abandonou a solidariedade de classe, pois os fins justificam os meios.
Na matéria supracitada da Folha de São Paulo e em outras que a seguiram, foram evidenciadas, com detalhes, informações importantes da negociação entre o governo brasileiro e o governo cubano que antecedeu a criação do Mais Médicos, trazendo à público a correspondência diplomática entre os dois países. Os telegramas trocados demonstram o receio de Cuba de uma possível “fuga” dos médicos cubanos, sendo imprescindível para a realização do negócio a criação de algumas condicionalidades, em especial a de restrição da mobilidade dos médicos. Em 2012, por exemplo, a vice-ministra de saúde de Cuba, Marcia Cobas, disse que “só faria nova parceria se o Brasil impedisse os médicos de ficarem ao final”. É daí que surge a condicionalidade de coibir os familiares de migrarem juntos aos médicos.
Quanto ao valor a ser repassado aos médicos cubanos, e a forma de contratação dos mesmos, gestores do Brasil e de Cuba travaram negociações até chegarem a um valor bem abaixo do que o país autodeclarado socialista almejava, porém o mesmo obteve sucesso ao garantir todas as restrições. Além disso, Cuba chegou a criar sociedades anônimas para intermediar a negociação, que acabou sendo feita através de uma triangulação: o Brasil contratava a Organização Pan-Americana de Saúde, que contratava Cuba, que contratava os médicos da sua ilha. A negociação se passou como se passa entre quaisquer empresas, tendo sido considerada a mão de obra parte passiva do negócio, pois a sua remuneração já estava estipulada em mil dólares independentemente de quanto seria pago ao governo cubano. O governo cubano chegou a almejar 8 mil dólares por médico repassado ao Brasil, mas o contrato “morreu” na metade desse valor: 4 mil dólares no total, com 3 mil dólares sendo repassados à contratada, no caso, o governo de Cuba e mil dólares destinados à remuneração da força de trabalho.
Reparem que aqui não faz sentido falar que o médico cubano fica com apenas 25% do que é desembolsado pela contratante (como acabou sendo firmado) ou com uma proporção bem menor, como pretendia o governo cubano. A mão de obra neste caso é alheia à negociação, pois o governo cubano exerce o monopólio sobre ela – na verdade é um monopsônio, pois dentro dos seus limites territoriais o governo de Cuba é o único comprador possível da mercadoria “médico cubano” (inclusive, a revalidação dos diplomas no Brasil quebraria esse monopsônio). Soma-se a isso a impossibilidade de organização dos trabalhadores cubanos, só resta-lhes aceitar o que é oferecido. Os termos corretos da situação seriam: Cuba tem um produto que tem custo fixo de mil dólares (mais os custos variáveis) e ele repassará a um terceiro a depender das condições acordadas. Essa situação, na prática, converte a passividade dos trabalhadores cubanos em ativos do governo cubano.
Já não nos resta dúvida que o governo cubano atua conforme uma empresa que vende serviços especializados, e isso só espanta aqueles poucos que ainda acreditam que se constituiu ali um comunismo. Da mesma forma que empresas de tecnologia e consultorias têm a propriedade exclusiva sobre determinados ativos, Cuba a tem sobre os médicos da sua ilha. E da mesma forma que as leis de propriedade intelectual existem, existem as regras que coíbem que os médicos cubanos “fujam” para onde bem quiserem. Cuba, portanto, deu um jeito de participar do mercado global, e assim trazer dinheiro para o país em condições muito difíceis, utilizando-se dos mecanismos mais modernos do capitalismo global. Mas Cuba consegue aderir o serviço prestado à mão de obra, formando tudo uma coisa só, de uma forma invejável às demais empresas que atuam segundo a mesma lógica.
Muitos outros iniciaram a crítica ao que Cuba faz com os seus médicos comparando a contratação em curso com as terceirizações. Sim, sabemos que as terceirizações são uma derrota dos trabalhadores, pois impõem condições de trabalho mais precárias do que a média, o que seria perfeitamente possível de acontecer na ilha caribenha. As terceirizações surgem no contexto no qual, para certas categorias profissionais, o poder dos gestores é tão grande, ou a impossibilidade de assimilar as exigências dos trabalhadores se tornou tão supérflua, que o caminho escolhido, ao invés do aumento da produtividade, é o da repressão aberta ou da retirada de direitos, diminuindo os ganhos dos trabalhadores e piorando as condições de trabalho.
Mas estas formas de contratação costumam acorrer no mercado de mão de obra com pouca qualificação, sendo exceções as terceirizações stricto sensu. Além do mais, as empresas terceirizadoras não têm nenhum tipo de propriedade sobre os seus trabalhadores, e nem precisam: eles são facilmente encontrados em qualquer lugar, podendo ser substituídos sem perdas maiores para a empresa intermediadora da mão de obra. Pelo menos no Brasil, a regra jurídica de precarização dos trabalhadores qualificados costuma ser a pejotização, o que demonstra que mesmo sob a generalização da precarização das relações trabalhistas, diferentes tipos de trabalhadores se submetem a diferentes normas de regulação e diferentes tecnologias de exploração.
Contudo, no âmbito do SUS e especialmente no que diz respeito à Atenção Primária à Saúde, alguns estudiosos do mundo do trabalho têm demonstrado, a exemplo de Graça Druck, que a ampliação do número de serviços de saúde e consequentemente de postos de trabalho iniciada na década de 1990 e exponencialmente incrementada durante os governos Lula e Dilma é diretamente proporcional ao crescimento da precarização do trabalho no setor, destacando-se, como modalidades contratuais mais frequentes, terceirizações e pejotizações. À época, paralelamente a um ensaio de bem-estar social apontado pela constituição de 1988, teve início no Brasil, de forma simultânea, a implantação de uma agenda neoliberal ampla, que englobou tanto a privatização de empresas e serviços públicos como o processo de Reforma do Estado numa empresa gerenciável de modo mais flexível, mais “toyotizado”.
Ainda que os dados a respeito da precarização das relações de trabalho no serviço público se encontrem dispersos, a terceirização é utilizada como principal forma de flexibilização contratual em municípios com mais de 500 mil habitantes, enquanto a pejotização, mesmo também sendo praticada em cidades de grande porte, parece ser mais generalizada nos municípios menores e mais afastados dos grandes centros urbanos. No que diz respeito às terceirizações, temos que em 2007 – dez anos após a instituição da lei nº 9.637/1998, marco regulatório das Organizações Sociais (OS) – das 70 Organizações Sociais criadas no país, 25 (36%) atuavam na saúde pública, sendo que 16 (64%) tinham sede em São Paulo. No Rio de Janeiro (2011), de 37 OSs, 21 (57%) estavam na área da saúde, ainda segundo Graça Druck. Atualmente, a cidade do Rio de Janeiro vivencia uma crise brutal que tem como um dos reflexos o desmonte dos serviços públicos de saúde que, em sua maioria, se encontram sob gestão (instituição e força de trabalho) de OSs: em 2015 somavam 21 hospitais, 59 Unidades de Pronto Atendimento, 05 Coordenações de Emergência Regional, 26 Centros de Atenção Psicossocial, O Instituto Estadual do Cérebro e 61 unidades de saúde da família (Clínicas da Família).
As terceirizações, apesar de consistirem em prática comum no âmbito da regulação do trabalho em saúde no Sistema Único de Saúde, não nos parecem ser a situação predominante nas empresas de tecnologia e das consultorias e também não parecem ser a melhor analogia para a situação dos médicos cubanos contratados indiretamente pelo governo brasileiro. Nesse último caso os trabalhadores são em si os ativos, junto com o serviço prestado, daí as empresas imporem medidas protetivas para garantirem a recuperação dos ativos ao final do contrato e exigirem que a propriedade intelectual, ou algo equivalente, sobre o serviço prestado seja respeitada. A terceirização pode até acontecer formalmente, mas é pouco provável que outra empresa consiga gerenciar essa força de trabalho devido a sua elevada sofisticação. Além do mais, a gestão em si – da mão de obra e do serviço – faz parte da tecnologia vendida.
Portanto, os trabalhadores cubanos, assim como os dessas consultorias, podem ser considerados, na prática, ativos (bens) por estarem fortemente subjugados. A “empresa” Cuba não vende os seus “ativos” trabalhadores, pois sem eles iria à falência: ela vende o serviço “medicina cubana”. Porém, mesmo num mercado caracterizado como um monopsônio de mão de obra, há limites para a exploração.
Os trabalhadores cubanos e das empresas de tecnologias e consultorias, por mais que sofram restrições, mesmo à mobilidade, ela é temporária e, após o término do contrato, eles estão livres para negociarem a própria força de trabalho com outras empresas. Essa temporalidade determinada do contrato de trabalho invalida qualquer comparação com a de trabalhadores escravizados. Além do mais, há um nível de consentimento muitíssimo mais elevado do que é permitido aos trabalhadores escravizados. Por último, o caráter sofisticado dessa mão de obra a deixa também um tanto quanto afastada de uma comparação com a imensa maioria dos escravizados de outrora ou até mesmo daqueles existentes nos dias de hoje.
Entretanto, nem todas as questões estão respondidas: as medidas protetivas do governo cubano e das consultorias e empresas de tecnologia, em especial às que na prática impedem a circulação da mão de obra, têm quais implicações no caráter desses trabalhadores? Estamos diante de uma regressão, pois sendo ativos e com circulação restrita, seria ainda assim um novo tipo de escravidão? Ou esses trabalhadores resguardam autonomia suficiente para não serem caracterizados enquanto tal? E, caso não, caso de fato as restrições sejam significativas, ainda que não seja o caso de trabalho escravizado, estaríamos diante de uma nova modalidade de exploração, tanto praticada pelo governo cubano quanto pelas empresas de tecnologia e consultorias, vinculada fortemente aos mecanismos mais sofisticados de exploração, mas lançando mão de formas de controle arcaicas? Ou, na linguagem que utilizamos: seria uma forma de articulação entre a mais-valia relativa e a mais-valia absoluta no mesmo contrato de trabalho? Ainda em outros termos: a intensificação da exploração dos trabalhadores mais qualificados se dará de agora para frente pelas mesmas formas que observamos entre os trabalhadores menos qualificados?
Infelizmente, as respostas a essas questões jamais poderão ser dadas enquanto o debate continuar inviabilizado pelas disputas eleitorais e pelo caráter gestorial da esquerda brasileira.
excelente contribuição! Só achei que ficou um pouco genérico isso de “trabalhadores das empresas de tecnologias e consultorias”, poderiam dar algum tipo de exemplo para que se entenda melhor que tipo de empresas e que tipo de trabalho se está referindo.
Por outro lado, eu já provoquei em outro post a respeito da “batalha cultural” a ser travada no campo do adversário. Acho que a escolha do tema deste texto não é ingênua e poderia apontar na mesma direção. Não para dizer que boa parte da esquerda eleitoral e bolivariana é obsoleta – disso a maior parte da população não tem dúvidas. O adversário aqui é o discurso direitista!, e aqui vemos argumentos muito bons para um video curto que ataque essa crítica bolsonariana aos médicos cubanos, que não passa pela defesa de Cuba nem pela defesa do programa, e que de lambuja ensina um pouco de crítica marxista à exploração (que é o mais-valioso de sua obra, seguindo a leitura joãobernardiniana).
Boa discussão, mas penso que o texto esqueceu de colocar a remuneração dos médicos no devido contexto, que é o da realidade cubana. Em Cuba o salário mínimo gira em torno dos 20 dólares. Um valor muito baixo, claro, mas que é determinado pelas fortes restrições à economia da ilha, geradas pelo bloqueio econômico. E cuja escassez de valor monetário é mitigada pelas políticas sociais que garantem serviços públicos de qualidade gratuitos e alimentação básica garantida.
É preciso considerar essas duas coisas: 1) o médico que escolheu, voluntariamente sair do país pra ganhar 50 vezes o salário mínimo da ilha vai desfrutar de uma vida de relativo luxo, além de garantir que sua família esteja no topo da pirâmide social cubana. Creio que essa perspectiva seja importante pra muitos deles, a de que eles e suas famílias, além de viverem bem numa sociedade socialista vão desfrutar de bens de consumo de alto padrão relativo, além de terem mais condições de saírem da ilha em outros momentos de acordo com a vontade ou necessidade. Se oa valor pago fosse integralmente recebido pelos médicos, isso geraria uma concentração de riqueza ainda maior na ilha, portanto ia afetar negativamente a sociedade cubana, havendo a necessidade de posteriormente resolver esse problema de concentração através de impostos severos sobre a riqueza/herança. De qualquer maneira o Estado cubano teria que tomar pra si uma grande parte dessa riqueza, para distribuir pra sociedade.
2) o Estado cubano investe adequadamente na educação da sua população, 70% dos habitantes tem ensino superior. Para manter esse investimento, fora outros que a ilha faz na sua sociedade, há um custo que não deve ser ignorado. Pensando nisso, podemos concluir que é mais do que justo que o Estado cubano fique com a maior parte dos recursos oriundos do seu “empréstimo” de profissionais da saúde para um país relativamente muito mais rico como o Brasil.
Creio que o texto, portanto, falha em olhar a questão sob a perspectiva desses dois pontos.
Depois de ler o comentário assinado por Vítor Joanni abanei a cabeça e pensei: não, não pode ser isto que ele escreve. Voltei a ler, três vezes, de cada uma mais estupefacto do que da anterior. Concluo então que quanto maior é a porção de mais-valia produzida por um trabalhador emigrado de que um Estado se apropria, mais socialista esse Estado é. Evidentemente, o Vietnam e a China fazem o mesmo relativamente aos trabalhadores que enviam para outros países.
Ô, João, acho que não dá para desqualificar os pontos que o Vítor traz assim tão rápido. A leitura do texto me obrigou a refletir exatamente sobre as mesmas questões. É evidente que a experiência cubana está repleta de contradições. As mudanças relativas às “missões internacionalistas” não deixam de ser uma delas. Cuba sempre colaborou (e continua colaborando) gratuitamente no âmbito da saúde. Mas, em um país bloqueado, com uma economia capenga e em um cenário de avanço feroz da direita por todos lados e, consequentemente, perda de potenciais aliados, a saúde como setor produtivo têm sido responsável por uma parcela cada maior dos ingressos. Isto é bem claro se falamos de medicamentos, imunobiológicos e afins, mas fica nebuloso quando se trata de “serviços médicos”. As cooperações pagas são uma forma importante de renda tanto para o país como para os cooperantes, que têm o acesso a uma remuneração infinitamente maior que aquela que teriam pelo mesmo trabalho em solo cubano. Salários assim só seriam possíveis se emigrassem definitivamente ou trabalhassem com turismo. Então eu me pergunto: como manter a economia cubana, as conquistas em termos de saúde, educação, cultura, etc, e retardar uma paulatina estratificação social sem passar por acordos como o que foi feito no Brasil? E mais: um Estado socialista consegue se manter sem extrair mais-valia de seus trabalhadores nas condições concretas do aqui e agora? E olha, estou perguntando isso com dor no coração ao pensar se seria o médico cubano, os “serviços médicos” ou a própria saúde o que se convertiria em mercadoria nesta transação. Abraços
Ursalina,
Você pergunta: «um Estado socialista consegue se manter sem extrair mais-valia de seus trabalhadores nas condições concretas do aqui e agora?» E eu pergunto: será socialista um Estado que, nas condições concretas do aqui e agora, não consegue se manter sem extrair mais-valia de seus trabalhadores?
A análise económica é impiedosa. E a análise das relações sociais de produção é a mais impiedosa da economia, não se satisfaz com programas nem intenções nem discursos, chama às coisas pelos seus nomes. Passados pelo crivo dessa análise, os proclamados socialismos revelam-se como capitalismos de Estado. Quanto às dores no coração — e olhe que não estou a fazer ironia — prefiro ser lúcido do que enganar-me a mim próprio e, o que é pior, correr o risco de enganar os outros.
Acho que Vítor levantou questões importantes, e seu comentário, ao invés de ser debatido, foi tratado com ironia. Ele colocou claramente que a “mais valia” extraída dos médicos pelo estado cubano serve para que Cuba consiga garantir aos seus cidadãos direitos fundamentais, que são negados à grande maioria da população da grande maioria dos países capitalistas, principalmente, mas não somente, os periféricos. O conceito clássico de mais valia trata esta como elemento central do capitalismo, responsável por promover lucro para o capitalista e acumulação do capital. A “mais valia” estatal não funciona exatamente desta forma, o lucro para o capitalista vai depender das políticas fomentadas pelo estado serem mais ou menos pró-capital (infelizmente, as políticas estatais têm sido cada vez mais pró-capital). Por isso, acho que não ajuda na análise tratar as duas coisas como o mesmo. Tanto que as questões que Vítor levantou ficaram no ar… Enfim, não sou autor nem estudioso de filosofia ou ciências sociais, só tentando contribuir pro debate.
Caro Passa Palavra,
Se eu não tiver feito uma leitura equivocada, penso que há uma certa contradição no texto. Se em um parágrafo se afirma que “Os trabalhadores cubanos e das empresas de tecnologias e consultorias, por mais que sofram restrições, mesmo à mobilidade, ela é temporária e, após o término do contrato, eles estão livres para negociarem a própria força de trabalho com outras empresas”, em um outro, anterior a este, está posto que “Nesse último caso (médicos cubanos contratados indiretamente pelo governo brasileiro) os trabalhadores são em si os ativos, junto com o serviço prestado, daí as empresas imporem medidas protetivas para garantirem a recuperação dos ativos ao final do contrato e exigirem que a propriedade intelectual, ou algo equivalente, sobre o serviço prestado seja respeitada”. Salvo engano, a maioria dos trabalhadores cubanos, médicos ou não, não tem o direito nem de dispor livremente sua força de trabalho dentro ou fora de Cuba, assim como não tem o direito sequer de se locomover de forma plenamente livre, diversamente do que se pressupõe (e penso que mesmo em economias de livre mercado isto é mais uma pressuposição, conforme Marx já afirmava lá trás sobre a “liberdade” obrigatória de se vender a mão de obra – que, aliás, já pertence ao capitalista antes mesmo de seu assalariamento, conforme nos ensina João Bernardo…) em relação aos trabalhadores de empresas de tecnologias e consultorias. Enfim, se eu não estiver enganado, mesmo após o fim do contrato com o governo brasileiro, os trabalhadores médicos cubanos não estarão livres para negociarem sua própria força de trabalho, posto que, eles mesmos e os serviços que prestam pertecem ao governo cubano.
Vemos nos comentários um belo exemplo de como a própria esquerda faz questão de associar “socialismo” à “exploração”. Não é a toa que a maior parte dos e das trabalhadoras ao redor do globo relaciona socialismo a Estados autoritários que vivem às custas dos e das trabalhadoras. Primeiro porque isto foi a realidade nas principais experiências duradouras dos tais “Estados socialistas”, segundo porque parte da esquerda continua reivindicando uma forma de exploração do homem pelo homem (e da mulher pela mulher).
Toinhot, essa questão só poderá ser respondida se descobrirmos quais são as restrições aos médicos cubanos quando eles estão no próprio país. Se for permitida a migração da ocupação — deixando de ser médico para exercer qualquer outro trabalho — então a restrição à mobilidade é temporária e a analogia apresentada no artigo tem força, por mais que o mercado de trabalho cubano continue a existir com uma variedade mínima de empregadores. Mas se você estiver certo, se de fato os médicos cubanos estiverem completamente submetidos ao monopsônio, tanto fora quando dentro de Cuba, então a situação é bem mais grave e o artigo pegou leve com o capitalismo da Ilha.
Quanto aos comentários que aqui criaram a teoria esdrúxula de repartição da mais-valia extraída de uns e repassadas aos demais trabalhadores do mesmo país — uma exploração sem exploradores! –, os seus responsáveis deveriam estar mais preocupados em responder às perguntas levantadas no final do artigo, fazendo um esforço de compreensão das novas formas de exploração do trabalho e tentando responder também de que forma Cuba participa ou não delas. Não se trata de cair na cilada do “quem é mais justo, Brasil ou Cuba?”, mas de assumir, honestamente, as contradições e limites daquilo que cada um de nós defende.
Ou podemos implementar algo próximo no Brasil, quem sabe? Escolhemos uns 20 milhões de trabalhadores que serão superexplorados, sem direito à organização sindical e demais direitos trabalhistas, para proverem o restante da população de serviços públicos. Tipo o que Aldous Huxley vislumbrou em Admirável Mundo Novo, a criação de uma espécie de trabalhador à parte dos demais. Não seria uma forma de “mais-valia estatal” repartida entre todas da sociedade? Assim, a esquerda e o nazismo se unem no sonho comum do bem-estar geral a partir da negação da humanidade de uns poucos. Ou podemos chamar isso também de aprofundamento dos mecanismos da mais-valia absoluta, o que dá no mesmo.
Senhores, quanto a essa citação “(e penso que mesmo em economias de livre mercado isto é mais uma pressuposição, conforme Marx já afirmava lá trás sobre a “liberdade” obrigatória de se vender a mão de obra – que, aliás, já pertence ao capitalista antes mesmo de seu assalariamento, conforme nos ensina João Bernardo…)“ , isso esta na primeira parte do livro Labirintos do Fascismo? Ou outra obra do João Bernardo?
Quanto aos comentários que surgiram, não sei se foi intenção de Vitor foi a de “justificar“ ou “legitimar“ as acoes do governo cubano, embora tenha dado essa impressão, mas acho que, pelo menos, ficou claro que o ponto não é esse, como falou o Leo..
Agora tentando entrar sobre as questões ao final, tenho pensado que a estrutura do capitalismo global atual de certa forma tem apontado algumas tendencias… a tecnologia de automação, algoritmos, a “industria 4.0“ e etc (que provavelmente (??) se dará mais nas economias centrais), a já costumeira pejotização no mercado de trabalho, a forte concentração que temos visto de forma constante; em certo grau, a própria incapacidade do capital de se restruturar financeiramente de renda e o discurso hegemônico do “individuo empreendedor individual“ etc. Enfim, estou falando de forma muito vaga e sem estruturação mas me parece que o capitalismo vem tendendo pra novas formas de exploração e como dito no texto, o próprio medico é tratado como ativo pelos governos.. parece que nos países “subdesenvolvidos“ vamos ser ainda um exercito de mão de obra para as áreas que quiserem atrasar suas automações, mas com um menor grau de bem estar social estatal, desigualdade social e miséria, enquanto nos “desenvolvidos“ vai haver uma maior necessidade de qualificação desse tipo “micro, extremamente especificas“, digamos, que hoje muitas vezes geram salários exorbitantes, o que por um tempo poderia acentuar a desigualdade dentro dos trabalhadores e no longo prazo evidentemente tende também a redução desses salários; sem falar que me parece que haverá maior necessidade de atuar no ramo do “entretenimento“, vendendo literalmente a si mesmo e qualquer tipo de coisa que se possa fazer para entreter a grande massa através da internet e se sustentar com isso.
Enfim são só algumas piras que tive uns tempos atrás e achei que cabia compartilhar aqui.
Depois posso estruturar melhor mas em geral o que penso é que a economia global não tem, em certos aspectos, se recuperado pós 2008 como os capitalistas gostariam, e isso vai gerar novas formas de exploração (uberização/individualização total da responsabilidade do trabalho sobre o trabalhador) que, pra mim, passam essencialmente pela captura da subjetividade das massas, isto que seria um melhoramento do toyotismo por assim dizer, pois a ideologia faz com que, alem das condições materiais, o individuo se sinta verdadeiramente como parte pertencente a um todo e isso o da sentimento de proposito (alem da responsabilizacao), e faz com que o próprio trabalhador contribua ainda mais na sua própria exploração, excluindo cada vez mais os limites entre o “ambiente“ do trabalho e o pessoal, já que mesmo atividades não pertencentes a profissão viram fonte de exploração, expandindo em muito a mais valia absoluta extraída; e pela substituição cada vez maior do governo pelas “organizações da sociedade civil“ e etc, que estão também sob o controle do capital
Caro Gabriel,
“(…) a completa integração da produção de força de trabalho no capital, os trabalhadores não oferecem no mercado a sua mercadoria, o valor de uso de sua força de trabalho, porque desde o início os capitalistas já a detêm. A condição de trabalhadores assumida a cada nova geração é fixada de antemão. Ela é uma condenação. O ato de assalariamento não assinala a inauguração da apropriação capitalista do uso da força de trabalho; pelo contrário, o assalariamento ocorre porque o conjunto dos capitalistas detinha já previamente o direito de usar o conjunto da força de trabalho, porque o processo de produção dessa força de trabalho fizerase como processo capitalista (…). O salário é a condição para a reprodução desse processo de apropriação, e não seu fundamento”. (BERNARDO, João. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991, p. 95).
Gabriel, na verdade este é um conceito proposto por João Bernardo e que se encontra presente também em outras obras, mas nã me lembro se está em Labirintos do Fascismo. Em todo o caso, capitalismo de mercado ou capitalismo de estado o conceito é totalmente válido.
Toinho
ah sim, muito bom!
Vou dar uma lida me parece um conceito basante válido mesmo, assim como quando Marx define que à partir da manufatura surge um trabalhador coletivo que faz nascer uma força produtiva que é a força produtiva do capital e tal por suas condições de surgimento..
Só recentemente fui conhecer as obras do João Bernardo @_@