Por João Bernardo

É a mais cabal confissão da mais abjecta derrota que militantes políticos que começaram por pretender a destruição do capitalismo se apresentem depois como gestores do capitalismo. Pior ainda, pois se é certo que não cabe à esquerda anticapitalista gerir o capital porque a função da esquerda deve ser estritamente vocacionada para as lutas dos trabalhadores, há outra objecção, e de peso. É que sempre que ela pretende gerir o capital, a esquerda o gere mal. Deixemos os capitalistas gerirem o capital, já que o fazem muito melhor do que a esquerda.

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Durante mais de um século o socialismo foi assimilado às nacionalizações. As nacionalizações não se endereçavam ao problema das relações sociais de produção, entendidas como relações de trabalho, que se mantinham as mesmas, mas ao das relações de propriedade, substituindo a propriedade privada de burgueses pela propriedade de Estado, enquanto propriedade colectiva de gestores. Com efeito, nacionalizações era a fachada demagógica com que se escondia outra realidade, a da estatização. A propriedade não cabia ao povo, mas ao Estado, e eram os gestores quem controlava e dava corpo ao Estado.

O fracasso da experiência soviética e a adopção pela China de uma economia mista, estatal e privada, articulada sobre um mercado em boa medida concorrencial, levou a maior parte da esquerda a desistir da ideia de estatizações sistemáticas e geridas centralizadamente. Aliás, o desprestígio do modelo das estatizações tornou-se maior ainda quando os países que fizeram parte do bloco soviético, juntamente com a Roménia e a Albânia, se converteram nos regimes mais crapulosos da Europa e da Ásia. Na União Europeia é do grupo de Visegrád, composto pela Polónia, a Hungria e a antiga Checoslováquia, que surgem as propostas mais autoritárias ou até francamente racistas, e bastaria o contraste entre a Alemanha de Leste e o resto desse país para esclarecer a questão. No centro da teia, o presidente Putin e os seus conselheiros são os principais articuladores e financiadores dos nacionalismos e dos fascismos em todo o mundo. Merece uma séria reflexão o facto de o sistema económico e político que governou autocraticamente aquela vasta região durante mais de setenta anos não ter ali deixado nenhuma herança de esquerda. Quem há pouco se entreteve a celebrar o centenário da revolução russa teria aproveitado muito melhor o tempo se lhe dissecasse o cadáver.

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Renunciando à ambição de estatizar toda a economia, a esquerda com pretensões anticapitalistas limita-se agora a exigir um sistema economicamente misto, mas politicamente autoritário, que combine a estatização de alguns serviços públicos com a fiscalização exercida sobre as empresas privadas. A aplicação prática deste tipo de experiências é pouco frequente, mas já que serve de bandeira a muita gente e a grupos políticos com certa importância eleitoral, e já que é este o conteúdo que muitos atribuem hoje à palavra socialismo, vale a pena ver como o programa funciona na realidade.

Quando adquire uma influência decisiva no aparelho de Estado e, portanto, nas empresas públicas, aquela esquerda substitui os gestores existentes, que pelo menos sabiam alguma coisa da profissão e tinham experiência do ofício, por gestores incompetentes, oriundos do meio diletante formado pelos políticos profissionais, o que provoca de imediato ou a muito curto prazo graves dificuldades ao funcionamento destas empresas.

No resto da economia, embora mantenha em vigor o capitalismo privado e o mercado concorrencial, a tal esquerda lança pesados impostos sobre os lucros dos capitalistas e tabela os preços de venda. Um pouco por todo o mundo, quando as condições económicas se agravam costuma surgir uma reivindicação — os ricos que paguem a crise! Não a pagam, claro, precisamente porque pertencem às classes sociais que podem não a pagar. Com essa reivindicação, ou ingénua ou demagógica, pretende-se instaurar um regime em que os patrões privados continuem a produzir riqueza, encarregando-se a esquerda de os espremer regularmente para lhes extrair a riqueza produzida.

É o sistema da vaca leiteira. Todos os dias o capitalismo estaria prenhe de lucros, e todos os dias a esquerda iria ordenhá-lo até o balde ficar cheio, distribuindo depois o leite pelos pobres, os velhos e as crianças.

Pretende-se assim preservar a base de existência do capitalismo, que são as relações sociais estabelecidas no processo de trabalho, mas eliminando-se os inconvenientes do capitalismo. Contra o capitalismo mau, defendido pelos capitalistas, surgiria, graças à esquerda, o milagre de um capitalismo bom.

O que na verdade surge é um monstro disforme, porque se mantêm as relações sociais do capitalismo, mas se prejudica ou impede o funcionamento dos mecanismos capitalistas. Um capitalismo que deixa de ser estimulado pela obtenção e apropriação de lucros fica desprovido das condições em que pode exercer a actividade, enquanto, paradoxalmente, os trabalhadores continuam sujeitos ao mesmo regime de trabalho. Essa esquerda chama socialismo àquilo que na realidade é um capitalismo disfuncional.

Sem poderem dispor livremente dos seus lucros e vendo tabelados os preços de venda, os capitalistas só podem recorrer a duas medidas, sob pena de deixarem de ser capitalistas. Por um lado, desinvestem. E como no capitalismo a economia funciona tal como a rainha explicava a Alice, quando lhe dizia que naquele país todos tinham de correr para permanecerem no mesmo lugar, a ausência de investimentos não leva uma empresa a ficar estacionária, mas fá-la regredir. Por outro lado, para contrariar o tabelamento dos preços, os capitalistas procedem ao açambarcamento de bens. A combinação do desinvestimento com o açambarcamento leva à escassez no mercado de consumo, porque sem investimentos as empresas produzem menos e, além disso, bens já produzidos são retirados do mercado.

Esta reacção estritamente económica dos capitalistas é interpretada por aquela esquerda de uma maneira puramente política, sendo considerada uma sabotagem. E assim, em vez de resolver economicamente um problema económico, pretende-se solucioná-lo com a repressão. Aperta-se a tarraxa da fiscalização, aumenta-se ainda mais os impostos sobre os lucros e amplia-se o número de produtos sujeitos ao tabelamento dos preços.

Como seria de esperar, o efeito destas medidas repressivas é um só, o agravamento da situação anterior. O que na realidade se passa é que essas medidas estimulam o mercado negro e a economia paralela e, provocando o desinvestimento nas empresas do país, estimulam a importação ilícita de bens fabricados no estrangeiro, unindo o mercado negro interno às redes de contrabando.

Mas não pensemos que aquela esquerda é estúpida e que tudo isto resulta de ilusões desastrosas e de erros nos cálculos, porque os gestores deste tipo de socialismo lucram duplamente com a crise. Antes de mais, eles são privilegiados nas cadeias de distribuição, e se os produtos escasseiam no mercado, de certeza não faltam aos gestores do Estado. Por outro lado, situando-se no centro das medidas económicas e no topo do aparelho repressivo, os gestores do Estado ocupam uma posição que lhes permite controlar as operações do mercado negro e em geral a economia paralela. Instaura-se assim um círculo vicioso, porque aquelas mesmas pessoas que levam o capitalismo a ser disfuncional beneficiam directamente dessa disfuncionalidade. Afinal, se as estatizações sistemáticas e centralizadas efectuadas na esfera soviética levaram ao capitalismo de Estado explícito e oficial, o sistema da vaca leiteira levou a um capitalismo de Estado sub-reptício e, paradoxalmente, ilegal.

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Na realidade o círculo vicioso degenera rapidamente numa espiral em colapso, já que a crise é agravada pelo facto de a esquerda com pretensões anticapitalistas considerar um malefício a ligação à economia mundial. Ao isolacionismo chamam soberania económica. Esta aberração só pode compreender-se quando se recorda até que ponto comunismo e nacionalismo estiveram entrelaçados sob a égide do regime soviético. A tradição perdurou. Como habitualmente, o nacionalismo serve para instigar os trabalhadores a defenderem os capitalistas do seu país, ainda que com isto deteriorem a sua situação económica. Em economia, tal como em política, nós é um termo muito ambíguo.

Aquela esquerda começa por anunciar que não pagará a dívida externa, o que tem como consequência imediata o aumento do custo do crédito. E se realmente cumprir o prometido e a dívida não for paga, o país ficará sem acesso ao crédito, com consequências catastróficas para a economia, sobretudo para quem tiver dificuldade em recorrer ao mercado negro. Os trabalhadores são os mais directamente prejudicados pelas ideias aberrantes.

Para justificar o isolacionismo essa esquerda perora contra os malefícios das empresas multinacionais e transnacionais, o que constitui uma apologia implícita do capital nacional. As credenciais dessa esquerda não se referem aos trabalhadores, mas ao capital nacional. É este o lugar que a esquerda hoje ocupa, não no antagonismo de classe entre trabalhadores e capitalistas, mas nas fricções internas ao capitalismo, defendendo os sectores económicos mais arcaicos. Numa série de artigos publicada neste site pretendi desmontar o mito dos malefícios das companhias transnacionais, mostrando como ele é contrário até aos interesses mais imediatos dos trabalhadores. «As companhias transnacionais devem ser analisadas criticamente como a modalidade mais desenvolvida do capitalismo, mas usualmente as acusações são feitas na perspectiva de uma entidade nacional lesada por um elemento que ultrapassa as fronteiras», escrevi eu a abrir o primeiro desses artigos, prevenindo depois que «o que me preocupa nas companhias transnacionais não é serem transnacionais mas serem capitalistas». Esses artigos foram pouco lidos, e é certo que nos assuntos económicos a esquerda gosta mais de repetir chavões do que de se dedicar à cansativa tarefa de estudar números. Para resumir uma longa análise, indo directo ao assunto que aqui interessa, concluí que «quanto mais uma empresa se internacionaliza, tanto maiores são o seu progresso tecnológico e os efeitos positivos sobre a economia do país de origem».

Hoje, aliás, o isolacionismo é duplamente pernicioso. Já não vivemos na época da simples internacionalização do capital, em que cada país tentava, melhor ou pior, reproduzir as estruturas empresariais dos países mais avançados. Vivemos agora na época da transnacionalização do capital, em que os estádios sucessivos da produção de um dado bem são distribuídos por uma multiplicidade de países. As cadeias produtivas transcendem as fronteiras, quer nos bens materiais quer nos serviços quer, mais ainda, naquela área de ponta que deixou sem validade as categorias tradicionais e tem como base a informática. Nestas circunstâncias, o isolacionismo é uma política suicida, que corta as empresas de um país não só das relações económicas gerais, mas até do acesso a inovações técnicas vitais.

É muito curioso que a esquerda, que brama indignada — e com toda a razão — quando um país imperialista impõe sanções aos inimigos ou rivais, adopte deliberadamente medidas isolacionistas que levam aos mesmos resultados dos boicotes e das sanções.

Os efeitos do isolacionismo são múltiplos — a dificuldade de crédito, a dificuldade de investimento, a incapacidade de beneficiar das inovações técnicas — mas resumem-se a uma consequência, a escassez de bens e o agravamento da crise. Mais uma vez compreendemos que a política isolacionista defendida pela esquerda com pretensões socialistas está intimamente conjugada com a economia paralela, pois os sectores ligados ao poder dispõem de um acesso privilegiado ao controle cambial. Neste socialismo aberrante, que na verdade é uma forma aberrante de capitalismo, não existe nenhum dinamismo interno que permita sair da crise, já que os interesses económicos dos gestores do Estado e do aparelho repressivo os levam a ficar directamente interessados pelo mercado negro e em geral pela economia paralela.

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Como se mantêm as relações de trabalho capitalistas, perduram todos os motivos de insatisfação social, agravados pelo facto de o mau — ou péssimo — funcionamento desse capitalismo deteriorar muito as condições de vida dos trabalhadores. Perante isto, a margem de manobra dos velhos patrões e dos novos gestores reduz-se ou desaparece, porque se reduzem ou desaparecem os lucros que permitiam o aumento da produtividade e as concessões salariais, ou seja, o mecanismo da mais-valia relativa. A insatisfação dos trabalhadores aumenta, e tudo o que há para lhe opor é a repressão.

Inicia-se então a espiral crescente de conflitos, prisões, manifestações, massacres e banditismo. E como as perseguições vitimam ao mesmo tempo os trabalhadores que reivindicam e os capitalistas privados que desinvestem e açambarcam, a própria repressão cria, contra os gestores deste peculiar socialismo, uma solidariedade entre classes opostas. Perante esta solidariedade existe uma esquerda bem-intencionada que coça a cabeça com perplexidade e atribui aos «agentes do estrangeiro», inevitavelmente «do imperialismo», aquilo que resulta de motivos exclusivamente internos. É que em política os bem-intencionados confundem-se frequentemente com os mal-intencionados.

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Caímos, assim, das promessas de abundância, no socialismo da miséria. O fracasso da esquerda chega aos mesmos resultados da distopia ecológica. Mas enquanto os ecologistas apelam explicitamente ao decrescimento económico e ao regresso a técnicas arcaicas, é tornando o capitalismo disfuncional que esta esquerda se precipita no decrescimento. O paradoxo não podia ser maior.

A esquerda só retomará a sua vocação originária de se interessar pelas lutas dos trabalhadores e não pela gestão do capital quando uma nova etapa de lutas levar os trabalhadores a assumirem outra vez a dimensão sociológica de classe. Enquanto isto não suceder, fica uma pergunta. Se a esquerda, quando gere o capitalismo, o leva à disfuncionalidade, como entende ela o mecanismo económico primordial do capitalismo?

Referências
Critiquei o mito dos malefícios das companhias transnacionais na série de quatro artigos Os nacionalistas e as transnacionais, publicada no Passa Palavra.

As ilustrações deste artigo reproduzem, de cima para baixo, obras de Julien Dupré, Theo van Doesburg e Georgia O’Keeffe.

Esta série inclui também os seguintes artigos:
1. O dicionário sem palavras
2. O dinheiro não é o poder
3. Dois lugares-comuns do nosso tempo
5. Tudo se esvai em fumo
6. A utopia de uma sociedade transparente

9 COMENTÁRIOS

  1. Considerando a práxis histórica, você não acha que a esquerda só se interessa pelas lutas dos trabalhadores exatamente para geri-las (recuperá-las) em favor do capital (ainda que faça desconhecendo os mecanismos fundamentais da economia capitalista)? Nesse sentido, a “vocação originária” da esquerda seria tornar-se classe gestorial…

  2. Essa era a tese de Makhaisky, o fundador da teoria de uma classe dos gestores, que denominava intelligentsia. Ele considerava que o socialismo marxista era a teoria da intelligentsia. Mas esta visão parece-me equivocada, porque unilateral. Por um lado, o marxismo, tal como foi formulado pelos seus dois criadores, é ambíguo e em alguns aspectos é contraditório, deixando um espaço entre uma teoria dos gestores e uma teoria da emancipação. Por outro lado, a historiografia interessa-se muito mais pelos vencedores do que pelos vencidos. Conhecemos o nome e o percurso daqueles trabalhadores revolucionários que, mediante a burocratização das formas de luta, se converteram em gestores capitalistas. Conhecemos os mecanismos do capitalismo sindical. Mas permanecem obscuros os nomes daqueles trabalhadores que não quiseram ascender e continuaram a lutar na base. Mais importante ainda, numerosíssimas lutas foram vencidas sem terem degenerado internamente. Reproduzo o que escrevi no segundo artigo desta série:

    «Pode argumentar-se que na dimensão do tempo histórico as lutas activas e colectivas que permitam aos trabalhadores ocupar as empresas e iniciar a remodelação das relações sociais de produção não só são muito raras como de extrema brevidade. Mas esta é uma abordagem enganadora. Nos mais potentes aceleradores de partículas os cientistas produzem e detectam partículas impossíveis de observar no mundo habitual, e a sua duração é tão ínfima que não conseguimos percebê-la mentalmente, embora visualizemos o número de zeros e operemos matematicamente com eles. No entanto, são essas partículas que nos permitem entender a estrutura daquilo a que, por hábito, ainda chamamos matéria. Passa-se o mesmo com as lutas activas e colectivas dos trabalhadores. Apesar da sua escassez e da sua curta duração, são elas que nos permitem entender os fundamentos da estrutura social do capitalismo. Essas lutas revelam-nos directamente o carácter das relações sociais de produção.»

  3. Sobre o sistema da vaca leiteira, a esquerda que ainda aposta nesse tipo de solução deveria ler essa notícia: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/09/sem-cpmf-guedes-quer-fim-de-privilegios-nos-impostos.shtml. Nos livros infantojuvenis da série Harry Potter, há um espelho que te mostra ao lado daquilo que você mais deseja no mundo. Lendo essa notícia, a esquerda da vaca leiteira se verá ao lado de quem menos deseja, abraçada com Paulo Guedes.

  4. Caro João Bernardo, essa esquerda que às vezes governa e enfatiza programas sociais, ela sempre promove essa disfuncionalidade no capitalismo? Os programas sociais e mecanismos redistributivos (ainda que na esfera da circulação, que nada mudam na esfera das relações sociais de produção) não acabam favorecendo certa funcionalidade do capitalismo, combatendo muito parcialmente a exclusão? Abraço.

  5. Caro Marcos,

    Temos aqui mais um caso daquela confusão terminológica que mencionei no primeiro artigo desta série. Tentando evitar equívocos, neste quarto artigo eu especifiquei desde o início que me refiro à «esquerda anticapitalista» ou «esquerda com pretensões anticapitalistas». Ora, a descrição que faço da orientação económica proposta por este tipo de esquerda, que ela aplica nos casos — felizmente raros — em que chega ao poder, deve bastar para distingui-la do que no Brasil foram os governos do PT e do que na Europa são a social-democracia e o centro-direita. O Passa Palavra dedicou ao Programa Bolsa Família uma série de artigos, na qual eu colaborei com um artigo e outro artigo, e você poderá ver aí que, para empregar as suas palavras, considero a Bolsa Família como um mecanismo redistributivo muito bem pensado, que favorece a funcionalidade do capitalismo e combate parcialmente a exclusão. Aliás, foi nestes termos que o Programa recebeu os elogios dos órgãos mais lúcidos do capitalismo mundial. E nos outros artigos que publiquei neste site, em que analiso a economia brasileira, sempre considerei os governos do PT como governos eficazes, que procederam a uma modernização do capitalismo brasileiro. Para regressar ao tema deste artigo, enquanto a esquerda com pretensões anticapitalistas, que aqui refiro, pretende aplicar uma orientação que incapacita o funcionamento da mais-valia relativa, os governos do PT, tal como os governos do centro-esquerda e do centro-direita na Europa, são governos puramente capitalistas que se esforçam por melhorar o funcionamento da mais-valia relativa.

  6. João, por que insistir em chamar de “comunismo” aquilo que tão bem se conhece por capitalismo de Estado. Não quero ensinar o pai nosso ao vigário, mas “comunismo” aqui é apenas um uso ideológico de um termo histórico da luta proletária, recuperado pelos gestores. A esquerda do capital se coloca como viúva desse “comunismo”, enquanto a direita delirante o demoniza. Compreendo seus argumentos linguísticos sobre o uso ou não de certos termos devido ao seu desgaste político, conceitual etc. Mas, insistir em chamar os bolcheviques e a rede mundial de partidos ligados ao PCUS de “comunistas” me parece estranho. Não estaríamos recaindo na tão surrada tática identitária de aceitar como verdade os processos de autoidentificação? Se alguém se diz homem ou mulher, negro ou branco, o é e ponto. Sei que é um costume em Portugal se referir aos membros deste ou daquele partido como “comunistas” ou “socialistas”, de acordo com sua legenda. Mas, isso ocorre em noticiários televisivos. Devemos seguir esse “método”? A distorção histórica do comunismo apresentado como capitalismo de Estado não justifica, para mim, reforçarmos em nossas análises tais formas de recuperação. Entendo seu argumento de que certas palavras não tem significado sócio-histórico restrito a pequenos grupos, mas discordo que isto seja suficiente para que chamemos uma coisa pelo outro nome, assim como o fazem os nossos inimigos, da “esquerda” e da direita. Assim, ajudamos a esvaziar de sentido termos tão caros à luta histórica proletária. Sinceramente, o termo “socialismo” pela sua polissemia e pelo conjunto de práticas políticas históricas que o informam é bem mais dispensável que o comunismo. Assim como “anticapitalismo” trás uma negatividade, mas não uma positividade, um projeto de sociedade futura, como se propõe o termo “comunismo”. Em Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista, de sua autoria, era utilizado o termo “sistema de conselhos” (comunismo de conselhos) para dar forma à sociedade futura. Por que você abandonou essa perspectiva, por puro pessimismo? Uma posição minoritária hoje não pode se transformar em majoritária amanhã? Abandonamos a dialética? O que os “anticapitalistas” (legítimos?) precisam é de inventar novas palavras e esquecer o acúmulo histórico das lutas? Você mesmo valoriza aqueles que não se tornaram gestores e se mantiveram no campo de base das lutas. Seria correto entregar seu esforço histórico assim de bandeja, jogando fora suas “palavras” de ordem? Fica a reflexão…

  7. Irado,

    Uma muito grande poetisa da língua portuguesa, Sophia de Mello Breyner, no livro O Nome das Coisas, publicado em 1977, incluiu este poema:

    Com fúria e raiva acuso o demagogo / E o seu capitalismo das palavras // Pois é preciso saber que a palavra é sagrada / Que de longe muito longe um povo a trouxe / E nela pôs sua alma confiada // De longe muito longe desde o início / O homem soube de si pela palavra / E nomeou a pedra a flor a água / E tudo emergiu porque ele disse // Com fúria e raiva acuso o demagogo / Que se promove à sombra da palavra / E da palavra faz poder e jogo / E transforma as palavras em moeda / Como se fez com o trigo e com a terra.

    Também é com fúria e raiva que eu acuso quem estragou as palavras. Mas agora, que estão estragadas, para que me ater a elas? Não vivo nas paisagens desaparecidas. No início da célebre peça de Goethe, quando Fausto hesita na tradução de «No começo era o Verbo», ele interpreta como significando que «No começo era o Sentido», mas ainda não satisfeito prossegue e traduz «No começo era a força», para afinal concluir «No começo era a acção». Mas se passarmos da palavra para a acção, decerto da acção hão-de resultar novas palavras.

    Foi simplesmente isto que eu pretendi dizer nesta série de artigos.

  8. João Bernardo, isso se aplica aos casos brasileiro e boliviano? Até onde pude acompanhar, durante o governo Evo houve um forte crescimento econômico e de renda dos mais pobres, o mesmo ocorrendo no Brasil, embora aqui a crise tenha chegado antes do impeachment e com certeza o influenciou. Como explicar isso?

  9. Paulo Henrique,
    Sobre a Bolívia não tenho competência para me pronunciar. Mas, por favor, repare no título desta série de artigos. No Brasil, os governos do PT nunca se pretenderam anticapitalistas e na prática procederam a uma indispensável modernização do capitalismo brasileiro. Este artigo visa casos como o da Venezuela e, com outras especificidades, do Zimbabwe. E visa, além dos apoiantes latino-americanos da Venezuela de Maduro, partidos europeus que pretendem apresentar-se como anticapitalistas, por exemplo o Bloco de Esquerda em Portugal e os seus similares noutros países. São esses que confundem socialismo com capitalismo disfuncional.

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