Por João Rodrigues e Laura F.
O novo longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bacurau, chama atenção pela tranquilidade com que associa personagens ficcionais a ideias e posições políticas supostamente reais. Assim, por exemplo, o casal de motoqueiros que aparece no começo do filme “figura” (ou desfigura) aquilo que, sem forçar a mão devemos identificar como o eleitor-tipo da extrema-direita: casal de brancos de “classe-média” do sul do país, entregues de corpo e alma à “missão” dos estrangeiros norte-americanos. Já os moradores de Bacurau encarnam a verdadeira resistência ao avanço da extrema-direita. E por aí vai, um quebra-cabeça fácil demais de montar. Estamos em face de um caso curioso, tentativa de esculhambação paródica do inimigo que, de tão simplória e reducionista, termina numa esculhambação involuntária de si própria. Assim, a exposição de tipos tem qualquer coisa de desaforo político, feito sob medida para excitar o público de esquerda. E o faz.
A visão excessivamente esquemática da realidade cobra seu preço, convertendo toda a mixórdia de referências formais do filme em simples adereço. Eduardo Escorel enumerou algumas das modalidades de corte do filme: “Além de fusões e escurecimentos, Mendonça Filho e Dornelles lançam mão de cortina, ou wipe, trucagem usada, em geral, para indicar pequena passagem de tempo. É o que talvez se possa chamar de recurso vintage, incorporado à linguagem híbrida de Bacurau, que agrega também recursos que já foram novidade, como, por exemplo, flashes (planos que parecem durar menos de um segundo)”. Mas, para que serve tudo isso? Linguagem híbrida que leva do nada a lugar nenhum. A aparente gratuidade das opções formais se prolonga no enredo do filme: a metade inicial é uma sequência de pontas soltas, que poderiam ter algum potencial narrativo, caso não fossem submetidas à preparação linear do suspense e ao objetivo ansioso de fazer o público identificar-se com o ponto de vista dos moradores de Bacurau. Aqui, há elementos que apenas sugerem conflitos internos à região, como, por exemplo, a disputa pelo uso da água (quem manda na represa?); a relação aparentemente conflituosa dos moradores com o bando de criminosos liderados por Lunga; a relação dos moradores com os fazendeiros da região. Enfim, são elementos que indicam contradições internas ao vilarejo, mas que são rapidamente resolvidos ou simplesmente esquecidos pela preparação do suspense esquemático em torno da “guerra contra os invasores”.
O uso dos flashes, cortes rápidos para transmitir ao público informações que estão fora do diálogo no presente; a utilização de imagens que simulam aquilo que os personagens estariam vendo na tela do celular, como os vídeos das ações criminosas de Pacote; a utilização da trilha sonora como “comentário” que poderia estabelecer um ponto de vista distanciado… São recursos mal empregados, em seu alcance crítico, porque os diretores optaram pelo desenvolvimento da trama até a catarse das cenas finais. Por exemplo, a cena da roda de capoeira, que começa com uma cantoria dos próprios personagens, e termina com uma música eletrônica, de fundo, ilustra a submissão da trilha sonora à intensificação do suspense que precede a ação catártica. Assim, a multiplicidade de influências, que tanta gente enumera como índice de alcance crítico, não passa de um ecletismo vazio, simulando complexidade e empurrando os recursos narrativos para as proximidades do pastiche.
A aposta na fórmula do suspense imbecilizante quer parecer apropriação de um “gênero” comercial para efeitos críticos. Se assim é, devemos então meditar no efeito do conflito apresentado. Os habitantes do vilarejo aparecem sob o efeito contínuo de um estranho psicotrópico produzido pelo curandeiro da cidade. A própria câmera dá mostras de compartilhar o delírio, transmitindo-o à plateia. O público de esquerda, no momento da vingança, emite variados sons de estupor, risos ansiosos, pequenos grunhidos, gemidos de satisfação. A câmera parece à vontade exibindo a cabeça aberta de um dos invasores, que acabara de ser baleado. Obviamente, a ideia é que o espectador experimente a sensação de vingança como se ali estivesse contida uma promessa de resposta política no mundo real: “Não vai ficar por isso mesmo, cedo ou tarde nos vingaremos”. O filme estabelece um pacto implícito entre a câmera e a plateia, convite à conspiração (que, obviamente, fica restrita à sala de cinema). O problema é que o pacto depende da manutenção do transe. E o transe subordina-se às potencialidades narrativas do filme, que, por sua vez, dependem da tese apresentada sobre a realidade atual. E esta é frágil.
Os diretores ironizam os “fascistas”, o “invasor imperialista”, mas o ponto de vista é tão esquemático que poderia ser, ele próprio, objeto de ironia. O problema, evidentemente, não é a opção pela caricatura e a alegoria — mas sim o fato de não serem levados às últimas consequências. Em outras palavras, existe uma caricatura do inimigo, que aparece reduzido à imagem do mal, personagens destituídos de profundidade. Essa figuração não pode admitir ambiguidade no sentido de, talvez, ser acolhida pelo público como real. Afinal, estamos no terreno da alegoria, não? E, no entanto, é exatamente o que há em Bacurau. Daí a alegoria falha, resvalando a todo momento numa literalidade incômoda. No momento em que a plateia assiste ao filme, o inimigo real é concebido exatamente como aparece na tela, o estrangeiro racista, o eleitor branco do sul, etc. A força do filme depende desta identificação, que, no entanto, não deveria ser tão exigida num filme que se pretende “alegórico”. Esta espécie de alegoria antialegórica é mais do que contradição formal, e aponta para um exercício de mistificação da realidade.
“Forte em antiimperialismo, fraco em luta de classes”
Em uma crítica do filme publicada no site da revista Época, escrita por Thiago B. Mendonça, encontramos a seguinte descrição do vilarejo de Bacurau:
“Apesar das dificuldades, seus habitantes sobrevivem em uma curiosa harmonia, numa sociedade onde bandidos, professores, putas e comerciantes parecem conservar-se unidos, dentro de uma lógica singular de equilíbrio e respeito. Essa tranquilidade é quebrada quando uma série de assassinatos acontecem próximos ao povoado (…) Podemos pensar também o povo de Bacurau como uma alegoria do povo brasileiro. Onde o que parece calmo pode se mostrar extremamente violento (…) E essa erupção que emerge em Bacurau é uma possível resposta aos que pretendem pensar o Brasil como uma sociedade cordial”.
O trecho é revelador. De fato, o filme faz questão de ressaltar as relações de solidariedade entre os habitantes de Bacurau, espécie de autogestão, “apesar das dificuldades”. Mas, autogestão do que? Da comida estragada que o Prefeito entregou, dos remédios tarja preta, livros rasgados… Como conciliar a constatação de que o vilarejo gere a própria miséria, sobrevive em extrema penúria, com a ideia de “harmonia” e “tranquilidade”? Realmente, o fator que rompe a harmonia é externo, não só ao vilarejo, mas ao país, o que atira a origem do conflito para muito longe. Assim, fotos das cabeças decepadas, no “Museu histórico de Bacurau”, pretendem evocar o velho cangaço justiceiro, mas também remetem a uma prática comum, atualmente, no sistema carcerário da região Norte e Nordeste do país… Evocação involuntária de realidade externa à alegoria, que produz incômodo à luz de uma comunidade destituída de conflitos.
É verdade que Bacurau abre mão da cordialidade. Já no começo do filme, inclusive, quando o Prefeito, Tony Junior, visita o lugarejo para distribuir migalhas, a pergunta é: o problema do Prefeito seria o excesso ou, antes, a insuficiente cordialidade? Em que nos apoiamos para levantar essa hipótese? Ora, no mesmo aspecto que o próprio Thiago Mendonça destacou: em Bacurau, os diretores fazem questão de salientar a “autogestão” do vilarejo, a despeito do fato de não se ter muito o que gerir… A violência da comunidade contra os elementos externos, que rompe a cordialidade, só é possível na medida em que visa conservar a cordialidade entre os próprios moradores. Mas, claro: qual o problema em conservar a cordialidade entre os oprimidos? Nenhum. Desde que passemos a pressupor uma comunidade imune às contradições do mando e da violência, coisa que não existe no mundo real. Em entrevista recente, um dos diretores do filme, Juliano Dornelles, afirmou que a comunidade de Bacurau seria uma “representação microscópica do Brasil”. Logo, o problema do Brasil é externo, e não endógeno. É latente no filme o anseio por uma autoridade que, ao invés de associar-se a estrangeiros psicopatas poderia integrar-se valorizando a “inventividade” do povo e sua capacidade de sobreviver… “apesar das dificuldades”. É o aspecto que o próprio filme enobrece, optando por não desenvolver a apresentação de conflitos internos ao vilarejo, mas que não deixam de ser presumíveis em situação de tamanha escassez.
Estamos às voltas de um desejo irreprimível da esquerda brasileira, o anseio pelo retorno de um pacto que começou a ser desfeito em 2013. Ao trecho citado acima, “essa erupção que emerge em Bacurau é uma possível resposta aos que pretendem pensar o Brasil como uma sociedade cordial”, perguntamos: mas quem, afinal, nos dias atuais, continua concordando com a ideia de passividade dos brasileiros? Pelo menos não a extrema-direita. Na realidade, o próprio filme, com seu elogio quase místico da “harmonia” do vilarejo, optando por não desenvolver conflitos internos, é que parece desejar o retorno da velha cordialidade, comprometida pela violência do invasor estrangeiro mancomunado com a nossa “elite do atraso”[1]. Felipe Catalani, em texto publicado no blog da Boitempo, descreve um estado de espírito adequado à análise aqui proposta:
“Abaladas por um choque traumático, as expectativas da esquerda são tragadas pela apatia no desejo de restaurar a “normalidade”, alimentado pela miragem do “sonho efêmero”, cuja interrupção, entretanto, já não produz nenhum despertar da consciência (se não for muito anacrônico falar nesses termos), mas somente “vertigens” e “transes” produzidos pela pancada na cabeça. É como se a explosão catastrófica produzisse um grande ofuscamento e nos afundasse em uma cegueira histórica na qual só se enxerga um vulto de normalidade no passado”.
Ora, o transe de Bacurau não é outro, senão este anseio de retorno à normalidade. Nesse sentido, a ênfase nas cenas de violência, o excesso de sangue etc. não deixa de ser funcional, servindo para despistar a plateia, a catarse como meio de induzir à sensação de ruptura, que é desmentida, contudo, pelo próprio desenvolvimento da narrativa. Aqui reside um pouco do tom de falsidade inverossímil do conflito armado no final do filme, que não tem nada a ver com seu caráter “alegórico”. Afinal, num aparente paradoxo, a violência que irrompe no vilarejo não visa a alterar radicalmente o estado de coisas, subverter as relações sociais dominantes (se não for muito anacrônico falar nesses termos, como diz Felipe), mas sim conservar a normalidade do vilarejo, ameaçada pela violência que vem de fora. O desejo de conservação presente no desenvolvimento da trama envolve as próprias referências cinematográficas dos diretores. Citando novamente o texto de Thiago Mendonça: “os diretores dialogam com o cinema brasileiro dos anos 60 e sua construção de conflitos no meio rural e no sertão”, aspecto do filme lembrado por diversos outros textos. Aqui também vale a observação do começo, pois a utilização de procedimentos banais para a produção de suspense em uma narrativa que trabalha com a pura e simples identificação converte a evocação das alegorias do Cinema Novo em simples acessórios, e não recursos narrativos postos a serviço de um questionamento à altura do tempo presente.
Já é possível ouvir as réplicas: os diretores optam por não enfatizar os conflitos internos à região — apenas indicados na primeira metade do filme — porque se trata afinal de uma alegoria. Mas não chamamos a atenção para o excesso de alegoria, como se faltasse “realismo”, mas sim o contrário: as figuras postas em movimento pelo filme são excessivamente simplórias, de um realismo rasteiro e fraco de imaginação, e o próprio desenvolvimento da trama, apostando na catarse e no jogo de identificação, trabalha com elementos antialegóricos, exigindo aqui e acolá uma atitude realista do público. Os roteiristas selecionam o que há de mais típico e estereotipado na representação do “invasor imperialista”, evocações retiradas do arco da velha dos antigos sonhos de formação nacional. É o velho bicho-papão imperialista, mas hipsterizado, utilizando armas vintage e um drone em forma de disco voador! Assim, se for para evocar a década de 60 para explicar alguma coisa em Bacurau, mais vale lembrar o seguinte trecho do ensaio Cultura e Política, 1964-1969, de Roberto Schwarz, caracterizando parte do clima pré-64:
“… o socialismo que se difundia no Brasil era forte em antiimperialismo, e fraco na propaganda e organização da luta de classes (…) Formou-se em consequência uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico (…) facilmente combinável com um populismo nacionalista então dominante”.
Não teria como definir melhor o espírito que move o filme de Kleber Mendonça. No entanto, como já deveria ser óbvio, não estamos mais na década de 60. O ensaio de Roberto Schwarz não esquece de apontar, inclusive, a dose de responsabilidade deste marxismo “desdentado” na preparação das condições para o golpe militar. Ainda está em aberto a tarefa de mensurar as consequências regressivas desta tentativa de reedição de um marxismo “desdentado” e patriótico nos dias de hoje, após a queda do PT e a ascensão de Bolsonaro.
O território real: Toritama/PE
Recorrer ao discurso alegórico é uma saída cômoda quando a realidade teima em não ser aquela que imaginamos. Tentando desvendar esse aparente paradoxo de uma “alegoria literal”, notamos que, na realidade, exprime uma certa ansiedade política, desejo de acelerar a compreensão das metáforas, que termina por substituí-las por figurações diretas. A única coisa verdadeiramente sutil em Bacurau é a paródia da própria esquerda, obviamente efeito não calculado pelos diretores. Como termo de comparação, citaremos aqui outro filme, não uma alegoria, sequer ficção, mas um documentário: Estou me guardando para quando o carnaval chegar, de Marcelo Gomes, que estreou há pouco, ironicamente um fracasso de bilheteria. O documentário de Marcelo Gomes só tem uma coisa em comum com a “alegoria” de Kleber Mendonça: também se passa no interior de Pernambuco, mais exatamente na cidade de Toritama, considerada a “capital do jeans”. Ao contrário de Bacurau, Toritama existe no Maps, e, no momento, não é do interesse de ninguém fazê-la desaparecer: ali são produzidos 20 milhões de jeans por ano. Não existem fábricas gigantescas, mas uma miríade de pequenas oficinas, na própria residência dos moradores. Os trabalhadores financiam as máquinas de costura; prestadores de serviço, defendem explicitamente a condição de autônomos, por não “prestar contas” a patrão.
Marcelo Gomes conheceu Toritama na infância, acompanhando o pai, que viajava a trabalho. Sua ideia era rever a cidade dos tempos idos, que não existe mais, agora tomada pelo zumbido ensurdecedor das milhares de máquinas de costura. Resolveu então filmar o que viu, não aquilo que desejava ver. O diretor coloca-se numa posição de observador, externo, distanciado, o que lhe permite apresentar as contradições daquela realidade. Assim, trabalhadores que alternam entre a compreensão de sua condição precária, enfiados em oficinas de costura o dia inteiro, com a ilusão de que a ausência imediata de patrão representa algum tipo de “liberdade”. Ambas as visões alternam-se, na boca dos trabalhadores, tributo talvez involuntário à memória do mestre Eduardo Coutinho. Como toda obra de qualidade, suas fraquezas são instrutivas: o respeito do diretor pela distância que o separa dos trabalhadores torna-se excessivo, por vezes, e ficamos sem compreender muito bem o regime de “contratação” da força de trabalho local: todos ali produzem por facção, isto é, sob encomenda para grandes marcas de roupa? Ou os próprios trabalhadores comercializam as calças, na enorme feira que ocorre todo final de semana na cidade? Em todo caso, a falta de maiores explicações sobre o regime dominante de trabalho na cidade aguça a curiosidade do espectador a respeito — façanha considerável do diretor, num tempo em que a esquerda não se ocupa mais destas questões. Nas palavras do próprio Marcelo Gomes:
“Fiquei com um nó na cabeça para desvendar, e estou passando esse nó para o público. Filmes sobre sweatshops, mostrando como os trabalhadores braçais são vítimas do capitalismo, já há vários por aí. (…) O que me interessava era ouvir os desejos e os sonhos dessas pessoas que se apegam à idéia da autonomia, de ser o próprio patrão, sem perceber que estão sendo escravizadas por elas mesmas. É um filme que expõe a farsa do neoliberalismo. Fala de um Brasil que ninguém conhece. Toritama é uma China com um Carnaval no meio.”
Melhor descrição impossível. O Carnaval no meio é o fato de que, na semana de carnaval, a cidade fica deserta. A população local vende tudo o que tem, inclusive máquinas de costura, e se manda para o litoral pernambucano. O momento da evasão rumo às praias já é o final do documentário, quando finalmente Marcelo Gomes reencontrou a cidade silenciosa da infância.
Bacurau e Toritama, são mais do que duas cidades, uma imaginária e outra real. Na mesma região onde Kleber Mendonça Filho imaginou um povoado independente, ligado à memória de um povo mítico e predestinado, Marcelo Gomes encontrou e mostrou o povo real, uma cidade inteira dominada por trabalhadores autônomos. Em Toritama, o inimigo não são gringos diabólicos que querem apenas brincar de tiro ao alvo com a população local — mas, antes, contratá-la como “prestadores de serviço”. A modernização não é só adereço, celulares e drones, mas altera o próprio conteúdo das relações sociais.
Nota
[1] Como se sabe, a expressão é título de um livro de Jessé de Souza. Em texto publicado no site Outras Palavras, Iná Camargo Costa apresentou um dos pressupostos básicos do pensamento de Jessé. Citaremos por extenso as palavras de Iná, pois parecem sob medida para o nosso argumento: “… trata-se de adepto [no caso, Jessé de Souza] do atualmente chamado comunitarismo, que em política equivale a um centrismo radical (nem liberal nem marxista), atualiza a Doutrina Social da Igreja lançada no fim do século XIX com a encíclica Rerum Novarum (1891) (…) A marca central deste discurso dito centrista é dedicação (discursiva) total aos pobres, miseráveis, excluídos, etc.”.
Quatro razões fundamentais para vermos o filme BACURAU:
– Resistência não é milagre. É criação da “comunidade”, dos de baixo e suas estratégias como autogestão; uma espécie de “laboratório pós-colonial” efetivo…
– A “violência do oprimido” é um direito do oprimido… Não há um “fetiche da violência”, mas uma percepção histórica da sua origem…
– O Brasil real e vivido que vem aos nossos olhos: Homens e mulheres, negros e negras, trans, putas, os caboclos e povos originários – convivendo, resistindo, criando…
– O lugar da memória comunitária e criada a partir de dentro da comunidade. A memória viva e efetiva vem do próprio povo. É preciso educar a todos e todas para a memória. Memória é política e resistência. Memória abriga a utopia…
engraçado, essa lista de Romero me parece recomendar muito mais o tal documentário “Estou me guardando…” do que essa ficção “Bacurau”. Ou seja, falar de memória do povo a partir de uma obra de ficção que trata de um conflito anacrônico e estereotipado… me faz pensar na pouca atenção que essa mesma esquerda deu às revoltas do “Brasil real e vivido” nas obras de Jirau.
Quando o “auê” é mto, o “uai” é imperativo.
Na língua imperial: dont believe the hype.
Romero Venâncio tipifica exatamente o tipo de pensamento ainda comum na esquerda, criticado sem meias palavras nesta resenha. Muita idealização de identidades estáticas, pouca atenção para problemas reais de sujeitos reais. Subscrevo integralmente a resposta de Lucas.
A crítica política a Bacurau, de quem é anticapitalista, é obviamente o fato de apresentar uma comunidade, uma microssociedade sem conflitos de classe. Uma das interpretações é a da unidade nacional (colaboração de classe) contra o invasor. Aliás, a referência mais real que lembrei ao ver o filme foi a que segue: “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade” (Jair Bolsonaro – Presidente).
Para pegar um filme cujo personagem principal de certa forma é uma comunidade/cidade, Dogville, nela também não aparecem conflitos internos e de classe. Nem por isso o filme deixa de ter relevância política e de reflexão, embora eu ache Dogville muito mais rico nesse sentido.
Mas evidentemente Bacurau não é só isso. É bem mais rico do que uma alegoria de resistência nacional à invasão imperialista.
Ele consegue ser bom mesmo que tosco na forma. As alegorias antialegóricas expostas na resenha são uma das virtudes do filme, não defeito, a meu ver. E acho que comparar essa obra de ficção com um documentário é exigir do filme algo que ele não se propôs. Como em banca de teses, deve-se julgar a tese pelos objetivos postos pelo autor e não pelo que o avaliador gostaria que ele tivesse feito.
Pra terminar, um ponto interessante do filme, que vai além dessa interpretação mais vulgar de nação se defendendo do imperialismo é o fato da população de Bacurau ter se guardado nas casas em dois momentos: o primeiro é quando o prefeito vai até lá e distribui “assistência”. O segundo é quando eles se defendem do exterminadores. Ora, o filme de certa forma mostra que a política de assistência estatal é o outro lado da moeda da política de eliminação e extermínio, e vice-versa.
Bacurau: pastiche de gosto duvidoso. Tenta combinar resistência com maniqueísmo.
Guardadas as devidas proporções, o filme me fez lembrar a crítica de Milan Kundera a George Orwell: “A influência nefasta do romance de Orwell (1984) está na redução implacável da realidade ao seu aspecto puramente político e na redução deste aos seus aspectos negativos. Não perdôo esta redução com o pretexto de que era útil como propaganda na luta contra o mal totalitário. Porque este mal é precisamente a redução da vida à política e da política à propaganda. Assim, o romance de Orwell, apesar das intenções, forma ele mesmo parte do espírito totalitário, do espírito de propaganda. Reduz (e ensina a reduzir) a vida de uma sociedade odiada à enumeração simples dos seus crimes.” A redução promovida por Bacurau esconde as cicatrizes de um país miserável e racista, como se os forasteiros tivessem rompido o idílio sertanejo.
Sacada da crítica: “Estamos às voltas de um desejo irreprimível da esquerda brasileira, o anseio pelo retorno de um pacto que começou a ser desfeito em 2013.” […] “A única coisa verdadeiramente sutil em Bacurau é a paródia da própria esquerda, obviamente efeito não calculado pelos diretores.” A paródia está no pastiche. Bacurau tenta combinar resistência com maniqueísmo. A esquerda eleitoreira tenta combinar democracia com capitalismo, como se fosse possível. Bacurau é o limite que a esquerda eleitoreira não ultrapassará: nem na estética, nem na política.
Ao contrário de realizar uma legitimação da “violência do oprimido”, o filme, por meio de espetacularização da própria violência, promove um afastamento da realidade da opressão para colocá-la numa forma alegórica na qual ela se mostra não o que é, mas como deveria ser na mente dessa esquerda formada no up to date da academia e consumidora ávida de Netflix, Star Wars, Vigadores e Tarantino. Quando a situação de confronto aparece clara, essa mesma esquerda é a primeira a não preconizar com a luta dos oprimidos no seu modo real.
Leo,
a comparação com Dogville é descabida. A maior diferença é o uso irrestrito de recursos destinados à produção de identificação, em Bacurau. Já Dogville, aquilo que mostra o narrador, que é a própria voz do Lars Von Trier, a divisão da narrativa em capítulos etc. são elementos destinados a suspender a identificação fácil. Não proporciona o conforto de um ponto de vista único. Não há mocinhos e violões, como em Bacurau. Assim, a boa comparação aqui recomenda apontar as diferenças.
O primeiro movimento do texto se resume na tentativa de apresentar o mecanismo formal elementar do filme, que é a produção da catarse. Acredito que essa é a melhor forma de apreender aquilo “a que se propõe” um filme. Critério que você secundariza, inclusive, dizendo que Bacurau “consegue ser bom, mesmo que tosco na forma”. Agora, se o filme “é bem mais rico do que uma alegoria de resistência nacional…”, então vc precisa mostrar isso. Tá faltando.
Mas tem mais coisas, realmente. A comunidade de Bacurau é um grande idílio de harmonia entre “identidades”: prostitutas, negros, trans, mulheres, lésbicas. O que os personagens possuem, além da miséria, claro, é a sua “identidade” (a ser valorizada, inclusive, como mecanismo de compensação). É o reino da empatia e das identidades estanques, reforçado pelo mecanismo catártico. Não estranha que a plateia de esquerda tenha ficado tão excitada e apaixonada pelo filme.
Os fatores antialegóricos de Bacurau são metáforas ruins. O casal de motoqueiros. Aquela cena realmente péssima do disco voador (chega a ser constrangedora de tão ruim). É uma tentativa de restaurar uma visão sebastianista do povo, muito forte entre os tropicalistas. Assim, não consigo compreender como esses aspectos antialegóricos são virtudes do filme, como você afirma. E sobre o documentário, é que uma boa exibição direta da realidade é preferível a um conjunto de metáforas ruins que acabam mistificando essa mesma realidade. Mais concretamente, em se tratando de um documentário que expõe a crueldade do mundo do trabalho atual, que é o caso do filme do Marcelo Gomes.
Outro bom termo de comparação com Bacurau, que me ocorreu agora, é o Jogo das decapitações, do Bianchi. Nesse filme também há uma tentativa de diálogo memórias comuns à esquerda. Mas em outra chave, que recusa a identificação pura e simples. Bacurau aposta na preguiça mental. Talvez tenha algum alcance crítico, para setores do público de esquerda, caso os faça refletir sobre si próprios. Mas pra mim está claro que não é isso que o filme se propõe.
“Gosto duvidoso”, “pastiche” , ” excessos”… algumas críticas ao filme ta me parecendo mais um certo incômodo estético do que uma crítica racional
Acredito que o filme demonstra que a união dessa cidade, de grupos sociais tão diferentes, não é natural, ou vinda de uma identidade primeira simplesmente (apesar disso estar presente), mas da resistência dessa cidade. Teve um conflito ali. Tem uma questão colocada. E só aí a referência ao cangaço pode voltar. Agora, dizer que o filme não aponta conflitos internos, é absurdo! O filme não começa justamente com a Domingas ensandecida no velório? Sim, o filme aponta essa situacao como fruto da bebida. Mas é uma médica chamando uma curandeira de bruxa. A situação não é desenvolvida, mas apontada. O que é Lunga e seu bando senão fruto das contradições internas da região?
Pedro,
você leu o texto com atenção? É dito:
“há elementos que apenas sugerem conflitos internos à região, como, por exemplo, a disputa pelo uso da água (quem manda na represa?); a relação aparentemente conflituosa dos moradores com o bando de criminosos liderados por Lunga; a relação dos moradores com os fazendeiros da região. Enfim, são elementos que indicam contradições internas ao vilarejo, mas que são rapidamente resolvidos ou simplesmente esquecidos pela preparação do suspense esquemático em torno da “guerra contra os invasores”.
Isso é repetido em outros momentos. Portanto, não é dito que o filme não aponta conflitos internos, mas que não os desenvole. Mesma coisa que você falou. A discussão central gita em torno do significado político da opção pelo não desenvolvimento dos conflitos (que apenas despontam).
Só da pra discutir se partir do que é dito. Do contrário, acaba reforçando a hipótese do texto, de que o filme joga com a reação e a identificação emocionais do espectador…
Antes de mais, o filme é magnífico, um prazer para o espectador, uma delícia de se assistir.
Espanto-me, nas várias críticas lincadas e comentários, com a longa enumeração de supostas referências e inspirações eruditas, que incluem John Carpenter e Lars Von Trier, mas omitem a referência mais óbvia e central: Astérix, de Goscinny e Uderzo.
Bacurau é a aldeia (nordestina/gaulesa) irredutível que resiste sempre ao invasor. Tem o druida Panoramix (o velho curandeiro pelado) e a respectiva poção mágica (as pílulas psicotrópicas), e tem LITERALMENTE o bardo Chatotorix, que, como o nome indica, aparece para CHATEAR os dois motoqueiros! Façam a síntese de Pacote, do Professor, de Domingas e de Lunga, baralhem para dar de novo e extraiam Abracurcix, Astérix e Obélix – que em muitas das aventuras brigavam ocasionalmente entre si para se reconciliar mais tarde. Tal como os romanos, os gringos são loucos, como haveria de ser de outra forma?
Há “conflitos internos” dentro da aldeia, que são apenas sugeridos mas não desenvolvidos? Claro. Na aldeia gaulesa também há conflitos internos, por exemplo entre o peixeiro e o ferreiro (cujos nomes já não lembro). A função dramática desses conflitos é reforçar a unidade final perante o invasor. Sendo certo que a vitória em nada ajudou à sua superação, não há porquê “desenvolvê-los”, no próximo episódio lá estarão eles de novo exatamente iguais.
Tal como em Astérix, aproveita-se uma estrutura relativamente esquemática e previsível para fazer paródias à realidade. E que belíssimas e maravilhosas paródias! Quem consegue conter uma gostosa gargalhada quando se revela que o colaborador/motoqueiro é ASSESSOR DE DESEMBARGADOR DO TRF-4? Eu não, e vários me seguiram na sala.
Como não se aperceber que o humor a auto-ironia são inteiramente deliberados e voluntários ao longo de todo o filme?
Por exemplo, toda a “caridade” do prefeito é composta de lixo, tanto os alimentos são vencidos quanto os livros são rasgados e imprestáveis. Mas os alimentos vencidos são descarregados normalmente em caixas, como se bons fossem, enquanto que os livros são transportados e descarregados por uma espécie de caminhão-caçamba, porque seriam sempre lixo mesmo que bons estivessem…
Parece que as pessoas já não entendem o que é uma história, contar uma história e ouvir uma história, que pode sim estar cheia de paródias e referências à realidade política atual sem que a dinâmica central do enredo seja ela mesma uma metáfora da realidade.
Então, alguns (suponho que na direita?) vêem no filme uma “apologia da violência” que “exalta inquietante parceria entre população desassistida e bandidos” (sic), e outros aqui no PP parecem conseguir ver apenas um panfleto contra o “imperialismo” saudoso da harmonia interclassista do lulopetismo. Suponho que o Astérix também seja uma grande metáfora anti-imperialista desse sofrido povo francês que tanto penou sob a bota do colonialismo? E que os filmes de gangsters estadunidenses, por exemplo os vários “Scarface”, sejam “apologias” da violência e da criminalidade?
Espero que todas estas pessoas um dia recuperem a capacidade de ir ao cinema apreciar um bom filme.
Então, aproveitem para rever Bacurau, e já agora também “Aquarius” e o “O Som ao Redor”, e redescubram um dos melhores diretores brasileiros da última década.
Leo Vinicius, acertou em cheio: ” o primeiro é quando o prefeito vai até lá e distribui “assistência”. O segundo é quando eles se defendem do exterminadores. Ora, o filme de certa forma mostra que a política de assistência estatal é o outro lado da moeda da política de eliminação e extermínio, e vice-versa.”
A questão incômoda é que o prefeito caricato identificado como um “fascista” está mais para Lula da Silva e suas “assistências” do que para “Bolsonaro’s”, lembremos que foi o próprio Lula que colocou o General Heleno como chefe das forças armadas no Haiti, estruturou a política de extermínio e assistencialismo no Rio de Janeiro via instalações da UPP e depois deu de presente pelos serviços prestados o comando do Estado Norte (Amazônia) das forças armadas.
Não seria as UPP’s a verdade de Bacurau? Sérgio Cabral e Lula estão preso para seus filhos reinarem…o clã bolsonaro.
Infelizmente a maior alegoria do filme é a redenção final.
Há elementos críticos realmente interessantes e produtivos no texto, o qual, contudo, termina refém da “demarcação de oposição a qualquer custo” a priori que organiza toda a crítica, bem cara a certo idealismo das reflexões autonomistas aqui do PP.
Então… ops.
Não acho que a discussão se resuma em ficar disputando o significado de figuras do filme. Aliás, acho isso sintomático. O problema da leitura do Leo Vinicius, que você citou, é exatamente esse. Tentar rebater a posição do texto se restringindo ao significado manifesto do filme, como se estivéssemos interpretando uma parábola. A crítica fica restrita a apresentação de elementos, a nível de conteúdo, para desmentir a tese da visão antiimperialista simplificada. Você aprofunda essa análise, adicionando um “novo conteúdo” à figura do Prefeito de Bacurau, que agora representa também o ex-presidente Lula…
Mas há um ponto fundamental, que ta faltando na análise de vocês, embora ajude a explica-la: a tendência às leituras conteudistas (que marginalizam a discussão de forma) se explica, em boa medida, pela própria organização formal do filme, que desvia a discussão pro conteúdo manifesto. Basta ver o tipo de interpretação que tem circulado nas redes sociais, todo mundo tentando interpretar o filme como se fosse uma espécie de parábola.
Ou então volume de argumentos identitarios contrários a qualquer crítica mais negativa. Isso não é casual. Quando sustentamos que a principal tese do filme é a apologia mistificada de uma grande unidade nacional contra o interesse de invasores externos tentamos relacionar isso com a própria organização formal do filme.
As pautas identitarias estão todas representadas naquela comunidade, o filme trabalha com um acúmulo progressivo de tensão em torno do conflito contra os invasores, até o desenlace final. Isso me parece central. Não vi ninguém contestar. O máximo que fazem é mencionar detalhes, que aparecem no nível do conteúdo mais manifesto, pra opor à tese central supostas antíteses que, repito, estão contidas em detalhes.
O filme apresenta um clima distopico, meio de guerra do fim do mundo, ao mesmo tempo em que induz o espectador à identificação com uma imagem de povo que pertence a outra era. Como se mesclasse o resgate de uma noção sebastianista de povo num ambiente de guerra total própria do presente. Aonde isso pode levar?
Enfim. São questões que acho importante. Em todo caso não da pra ignorar, na minha opinião, o lado apelativo do filme, que aparece tanto no conteúdo como na forna. Vão dizer “é apelativo de propósito, é intencional”. E daí? Como se o fato de ser intencional obrigasse a gente a relativizar a visão que o filme apresenta.
E de fato. Pode ser que o Prefeito do filme seja o Lula. Da mesma forma a ação daquele personagem, Pacote, atirando encapuzado na cabeça de pessoas indefesas lembra muito o jeito de agir das milícias cariocas, não?
Só na ficção de Bacurau bandidos dão a própria vida pra defender o povo. Na vida real, eles são uma opressão ainda mais sangrenta e aliados de políticos, de empresários, de policiais.
Mais um filme nacional a fazer a louvação aos bandidos. Sendo que o crime é um poder paralelo todo entrelaçado com o poder oficial.
No meu primeiro comentário dei um exemplo de possibilidades interpretativas que o filme apresenta, para além do lugar comum “imperialismo” vs. “nativos”.
Deixo aqui um comentário realizado na internet por alguem de codinome Arkyx sobre o assassinato da menina Ághata por Witzel e seus PMs..
” a soma de todos os erros nos trouxe ao pior dos pesadelos: a não responsabilização pelos crimes cometidos pela Ditadura Empresarial-Militar (1964/1989) deixou intacta a rede de dutos da necropolítica brasileira, que agora jorra emergindo do chão como um fluxo incontrolável de esgoto venenoso para envenenar a tudo.
os ex ajudantes de ordens do Gal. Sylvio Frota e os descendentes dos operadores dos Porões da Ditadura estão alojados em pleno Palácio do Planalto. e são eles quem dão as ordens.
a Amazônia arde em chamas, sua fauna é incinerada viva, os Povos da Florestas são dizimados, as águas de Minas Gerais secam, terras produtivas do MST são reintegradas ao latifúndio ecocida e garotxs inteligentes, estudiosxs, obedientes e de futuro são assassinadas pelas costas por Herr Witzel.
a máquina da morte assumiu o controle da operação.
mas não seria esta a melhor tradução do estágio terminal do Capitalismo contemporâneo: não apenas 1,2 ou 3, mas muitos Daesh, um deles em cada território e em cada coração onde pulsar a vida.
a necropolítica é a expressão mais explícita e contundente do grau de patologia do Capitalismo. o terror pelo terror, a destruição pela destruição, a morte pela morte.
mas a máquina da morte nunca teve a mínima condição de gerir a si própria. e aqui, mais uma vez, a referência ao filme Bacurau se impõe: eles não estão apenas nos caçando, estão também se matando uns aos outros.
a máquina da morte não se entende, e não pode se entender, pois sabe apenas matar, destruir, aniquilar, segregar, excluir.
se tudo sob o céu está mergulhado no caos, a situação é péssima ou ótima?
sem passar pela fase do caos nenhuma criação é possível.”
Essa é uma das melhores (se não a melhor) crítica que já li do filme.
O problema é o incômodo com o pastiche e o ecletismo. Sério? O pastiche está longe de ser “gratuito”. É o recurso mais interessante de todo o filme!
Interessante a critica parece falar do nada para o nada, uma crítica a esquerda mas quem escreve não faz parte dela?
Esse site e quem manda contribuições a ele em maioria cumpre bem com o papel que se presta, enxergar a classe trabalhadora, falar por ela e quando pode sempre que possível escrever de intelectuais para intelectuais, o grupo por trás e a maior parte de sua militância parece ter bastante tempo e pouca inserção na classe trabalhadora e luta para se prestar ao papel pedante de ficar escrevendo critica de filme, num momento em que estamos todos trabalhadores esfacelados, fazem criticas ao sindicalismo a luta sindical e a esquerda como se tivessem grande inserção no movimento dos trabalhadores e tendo grande papel na contribuição de sua luta.
O que se vê aqui é a forte busca de uma maioria por um lugar á luz da militância, essa que está no campo intelectual e existe só nessa esfera on – line que mau trabalhador conhece, falam para si mesmos se acham diferentões ultra-revolucionários, mas não passam de esquerdistas falando de si para si em busca incessante por aplausos.
Não aplaudo a decadência de boa parte de setores do qual fazemos parte nós da esquerda, o filme de fato apresenta problemas em sua abordagem e narrativa reconheço as considerações, mas não o saldo, ele não contribui para nada, a não ser para colocar mais crise em setores da pequena burguesia intelectual cultural que se dedicam a produzir arte no capitalismo e acreditam que fazer criticas ao sistema a partir da esfera da ideologia dominante é possível em sua totalidade por acreditar na transformação dela e só e isso é muito claro para quem é revolucionário, não precisa ficar repetindo.
É triste o papel a que alguns militantes se prestam nesses tempos, assistem a conjuntura esperando o dia D, grande dia em que a grande espontaneidade do trabalhador que acreditam fará a revolução e estarão lá para apoiar a luta e pensar sobre ela.
Estou luta incessante por ela, mas em movimento e não fora dele pensando ou falando sobre ele e pior fazendo critica cultural a filme que chora cadáver, a critica ao projeto democrático popular e ao PT pareceu como algo que se coloca como coadjvante de algo que não fomos, nós trabalhadores temos em parte culpa do cenário em que estamos, acreditamos em lideranças que não estavam de fato com a gente, mas será que o setor a que se propõe a escrivinhança ai do nada para nada, tentando colocar em confusão gente já confusa, se entende e vê como trabalhador? Talvez seja por isso a confusão na análise.
Fora isso para concluir parece que o estudo, por que esse pessoal ai gosta muito de estudar a classe trabalhadora como objeto, algo “exótico”, fica no campo da abstração e sem pé nenhum no chão, buscam apontar que existe um novo setor da classe trabalhadora se formando a partir de trabalhos autônomos o que não é nenhuma mentira, mas a verdade é que estamos nesses trabalhos por mera sobrevivência, levo a acreditar e espero não estar enganada que não serão estes dos meus a nova ponta de lança da luta de classes e sim se caírem em si da sua condição serão parte dela, tomara! Já o mentor desse site Paulo Arantes em um blog de internet esses dias disse que nem existia mais classe trabalhadora, dai deve vir a confusão desse pessoal. A classe trabalhadora existe e está bem viva, não estamos a parte das escolhas que fizemos, é bom que se diga, somos produtores do que vivemos por que movimentamos a história, que é a história da luta de classes.
Me sinto mau de perder tempo fazendo comentário nesse texto, já teve outras coisas que mereciam comentários mas deixei para lá, por que o desgaste com arrogância alheia é muito,e não leva muito a lugar algum, pra mim essa pirocação intelectual pedante é coisa de quem tá completamente forada realidade e do movimento real dos trabalhadores. Realmente não deu, é de cair o c% da b% carah.
É um filme produzido pela Globo.
Isso já basta e muito, não precisa de uma extensa crítica cheia de argumentação de teor estético-técnico-cinematógrafo pra mostrar o objetivo, por trás da aparência, desse tipo de produção. Como disse o ou a camarada aí acima “quando o “auê” é mto, o “uai” é imperativo.”. Pra um filme da Globo popularizar tanto no meio da esquerda ele só precisa seguir uma receita de bolo simples, desde que o toque cultural colonial esteja inserido como o ingrediente principal, o resto é história…
Uns adjetivam o filme como “pastiche” como se isso fosse defeito, outros reclamam da “alegoria anti-alegórica” e do “conteudismo”. Um comentador critica a “louvação aos bandidos” (sic) e um outro que “se sente mau” (sic) não gosta da “pirocação intelectual”. Por último, para desqualificar o filme basta mencionar que é “produzido pela Globo”, como se todos os restantes filmes produzidos por empresas capitalistas devessem também ser descartados liminarmente.
Parece-me que o pedantismo e o anti-intelectualismo rasteiro são duas faces da mesma moeda…
E, continuando por este caminho, vai deixar de ser interessante ler os comentários do Passa Palavra, estamos ladeira abaixo rumo ao nível da Folha ou algo assim.
Estou curioso para conhecer a opinião, sempre interessante, do João Bernardo, tão assíduo neste espaço. Talvez o filme não tenha estreado em Portugal? Que alguém lhe envie um linque pirata, urgentemente.
Deuteragonista,
Então, ninguém descartou o pastiche em absoluto. Só tentamos apontar que, nesse filme, o alcance crítico do pastiche é nulo.
O seu comentário acima, a analogia com Asterix, é interessante e engenhosa, mas sem maiores consequências. Você capta duas formas de desenvolvimento de conflitos análogas – Bacurau e Asterix -, daí tenta contrabandear o prestígio de uma pra outra, produzidas em situações históricas bastante diversas. Um saco inteiro de questões ficam sem resposta: o que significa essa estrutura narrativa hoje, no Brasil? Qual o significado da opção pela alegoria nesse momento histórico?
Quanto ao fato do filme ser uma produção da Globo. É óbvio que isso não depõe contra um filme, a priori. Ninguém aqui é bobo. E por isso discordo em parte do comentário do Alan, de que é inútil analisar um filme só porque é produzido pela Globo. No entanto, é preciso desconfiar, sim, de um filme divulgado pela rede Globo em horário nobre. Se tem uma coisa que não existe no cinema — uma arte que envolve tanto esforço de trabalho coletivo e força produtiva — é gratuidade.
E companheiro, você pode discordar dos argumentos do texto. Mas nao precisa se valer de uma retórica de falsa modéstia pra desqualificar o interlocutor, sem nem tocar em vários pontos importantes que o texto levanta. Também achei estranha e um tanto deslocada a invocação do nome do João Bernardo. Só reforça a impressão de que o seu objetivo é apenas desqualificar o interlocutor, e não entrar no mérito das questões colocadas. Em todo caso, nosso texto vai por um caminho que é caro às reflexões do próprio João Bernardo, ou seja, o esquecimento e a desatenção da esquerda em relação aos conflitos que se travam no interior das relações de trabalho. Veja que coincidência: quase não há referência às questões do mundo do trabalho, em Bacurau. Tudo se passa como se a luta dos trabalhadores fosse antes uma questão de fortalecimento de identidades (raciais, nacional etc.). Isso está no filme, em vários planos.
Nao quero prolongar o comentário, mas acho curioso dizerem que a crítica à tese “antiimperialista” que o filme apresenta é um lugar-comum. Ora, isso deveria ser dito do filme. Não existe em Bacurau uma caricatura do gringo norte-americano? Isso não é central no filme? Não existe uma valorização imagética e simbólica da comunidade como representação de uma essência nacional? O que me parece absurdo é vocês fingirem que isso não está lá, ou que não é central.
Há uma tendência forte na esquerda brasileira atual a responder ao avanço da extrema-direita reciclando um receituário “nacionalista de esquerda” que cheira a mofo. Pra mim, Bacurau dialoga frontalmente com essa expectativa da esquerda e da forma a ela. Vocês podem citar à vontade o argumento da “complexidade” do filme, seus múltiplos sentidos possíveis etc. O central é a disputa de sentido do que seja a nossa “identidade nacional”. Está lá. É explícito.
O que realmente me preocupa é esse espírito de que é mais importante a ofensiva contra a extrema-direita do que a análise fria dos nossos meios de luta. Acho que tem uma dose desse desespero no modo como vocês defendem um filme que, infelizmente, não passa de um panfleto ruim.
Caro João Paulo,
Vou apenas responder a alguns dos seus pontos, talvez não os que considera mais importantes, se e quando dispuser de tempo abordarei os restantes.
Ao contrário do autor do texto, não me propus fazer uma análise exaustiva e detalhada do “significado” político do filme, de como ele vai ser visto na conjuntura política atual, de como os vários atores nessa conjuntura se tentarão apropriar desses “significados”, ou de como ele pode ser enquadrado na “disputa de sentido” de uma eventual “identidade nacional”.
Pareceu-me apenas que vários aspectos centrais do filme haviam sido inteiramente ignorados e quis chamar a atenção para eles, aparentemente com muito pouco sucesso.
É verdade que também não me propus dialogar com a maioria dos pontos levantados no texto, talvez porque, ao contrário de você, não os considere tão importantes assim. Mais do que discordar da tese do “anti-imperialismo”, discordo da forma como a questão está sendo colocada e discutida. Não acho que o filme seja um manifesto político na forma de “alegoria” e discordo tanto dos que o interpretam como um hino à resistência ao “fascismo”, como o primeiro comentador Romero Venâncio, como dos que o interpretam como apologia de um certo “nacionalismo” aliado conjunturalmente a setores majoritários da esquerda.
Várias críticas e reflexões apresentadas no texto seriam (na minha opinião) bem mais apropriadas se fossem dirigidas, não ao filme em si ou ao seu diretor, mas à forma como uma grande parte da “esquerda” o está vendo, interpretando, utilizando para os seus fins, e, de forma lamentável, transformando numa espécie de “meme” da forma mais reducionista. Em parte, parece-me que este texto acaba por cair em erros semelhantes, e outros que comentaram aqui, como o Leo Vinicius, também o fazem, embora abraçando interpretações diferentes do filme, às vezes criativas e interessantes.
Está muito claro que estamos em desacordo, a sua posição está muito bem explicada e não me parece que necessite de argumentos adicionais. Não há nada de errado na divergência, vamos concordar em discordar!
Não entendi a sua referência à minha eventual “modéstia”, falsa ou verdadeira, não vejo onde ela se apresenta nas considerações que fiz.
Identifiquei de fato um comentário/referência que pode ser visto como desqualificador e peço desculpas à Debulhadora. O preconceito linguístico é uma forma de preconceito de classe, merece autocrítica e mais autovigilância no futuro.
Penso que nenhuma das minhas restantes críticas foi “desqualificadora”. Talvez a minha referência ao “nível” do debate tenha sido deselegante, mas, não posso deixar de repetir, agora de forma mais explícita, acho muito preocupante ler num lugar como o Passa Palavra a expressão “louvação aos bandidos” sem que isso provoque qualquer reação. Não desejo com isto desqualificar nenhum interlocutor mas sim a posição ideológica implícita.
Não pretendi “invocar” o “nome” do João Bernardo, muito menos apelar à sua “autoridade” (?) na esperança de ele concorde comigo e discorde do autor.
Pretendi, supondo que há alguma probabilidade de que ele leia regularmente estes comentários, “provocá-lo” a dar a sua opinião, por genuína curiosidade e porque os textos e comentários dele sempre me interessam aqui no Passa Palavra, apesar de frequentemente discordar de muitas das suas opiniões.
Como você mesmo aponta, há vários motivos para ele poder concordar em absoluto com a análise do autor, eu acrescentaria uma certa obsessão em combater o “nacionalismo”, e em ver “nacionalismos” em toda a parte, muito patente em textos dos últimos anos, em que chega ao ponto de defender, não o internacionalismo, mas o “cosmopolitismo”. Por outro lado, parece-me que nos seus textos sobre arte e estética há uma visão que não se coaduna com o que (na minha opinião) é um certo reducionismo patente neste texto.
Por estes motivos, tenho curiosidade de saber o que ele pensa, como outros podem ter curiosidade de saber o que pensam outras pessoas cujas opiniões costumam acompanhar e pelas quais se interessam.
Aquilo que, embora não me tenha preocupado, me entristeceu quando escrevi o primeiro comentário, foi o espírito (talvez inconsciente?) de que é mais importante a ofensiva contra a “esquerda” e/ou o “petismo” e/ou o “nacionalismo” do que o simples prazer cinéfilo, mesmo quando o alvo é equivocado, e especialmente num momento em que todo o cinema nacional, seja ele de “esquerda” ou não, está sob ataque.
Aquilo que às vezes me intriga em vários textos que leio aqui (mas que também não me “preocupa”), é que se proclame tantas vezes a importância da “análise fria dos nossos meios de luta” e das lutas concretas dos trabalhadores, e ao mesmo tempo se gaste tanto tempo e tinta, desproporcionalmente, na crítica à “esquerda” majoritária e hegemônica, aos seus partidos e respectivas posições e atuações.
Usando a terminologia de um texto recente aqui publicado, muito divertido e bem escrito; quando não se “participa no espetáculo” nem na festa, fará sentido ficar comentado os detalhes da participação de apenas um dos lados, criticando-o como se ele devesse participar de outra forma ou como se devesse não participar? Se é claro para nós que grande parte da “esquerda” não é anti-capitalista, nem aliás se apresenta como tal, porquê dedicar-lhe mais atenção ou analisá-la de forma distinta de qualquer outro dos “atores” e “participantes” do “espetáculo”? Estou apresentando aqui dúvidas genuínas e estou receptivo a esclarecimentos e argumentos.
Particularmente achei o comentário do Deuteragonista, em que ele joga na nossa cara o que deveria ser óbvio e evidente – as referência tão claras e diretas a Asterix – , a melhor resenha de Bacurau que li. Por sinal, Lunga é o Obelix. A relação de Bacurau com a história de Asterix é quase tão forte quanto a relação de Mãe com a história bíblica. Impressionante é que não tenhamos notado.
Dito isso, para mim o único motivo racional – e talvez óbvio – da TV Globo fazer propaganda do filme Bacurau é que se trata de um produto dela. Pragmatismo econômico. Ela produziu, tem que dar lucro. Se o filme é propaganda antimperialista e de saudosismo lulopetista, pela lógica política não faria nenhum sentido a Globo divulgar, já que ela continua ferrenhamente lavajateira, antipetista e a favor da manutenção da prisão do Lula e nunca teve uma posição sequer “antiamericana” ou “antimperialista”.
Sim, sim, Lunga é Obélix! Ele vai acumulando cadáveres da mesma maneira que o Obelix faz com os capacetes de romanos…
O mais próximo do Astérix é sem dúvida o Pacote, o protagonista central que articula os outros personagens.
E a dupla Domingas/Professor representa Abracurcix, tanto por ocupar os cargos de maior relevo na aldeia, como pela sua inoperância, desorientação e total falta de liderança, substituída por discursos pomposos.
Certa vez, um crítico literário que talvez não valha a pena ser citado por extenso, para não correr nas margens do antiintelectualismo, mostrou em um de seus estudos a importância de se compreender de que maneira a obra trabalha o real, quais seus recursos, métodos e qual seu alcance dentro de seu tempo histórico. Começa com Homero vai até Virginia Woolf.
Isso só pra citar em sobrevoo, que a representação da realidade não é uma brincadeira, nem uma novidade. Neste sentido, Bacurau é um filme sim alegórico anti-alegórico, porque ao parodiar uma fratura da realidade, oras pela sátira, oras pelo grotesco, vincula imagens e frases que estão na ordem do dia para formalizar um retrato ideológico do que, supostamente, a esquerda no Brasil pensa sobre o atual governo. Esse movimento não é externo ao filme, apesar de vir sim de um lugar extra-filmico, a sondagem de uma postura antiimperialista, contra os eleitores conservadores do Sul, aliados aos malucos Norte americanos, junto dos políticos escarnios do Brasil, é um discurso ideológico da esquerda, que, não, não é homogênea, tampouco tem razão diante da história.
Cria-se, então, através do recurso filmico uma disputa pela representação do real que tem consequências políticas. A discussão em torno da formaçāo nacional é extensa e não pode ser rebaixada a leitura ideológica notada em Bacurau.
Quer queiram, quer não, os elementos filmicos de Bacurau são recursos clássicos da estética, que podem ser criticados a luz de antigas formulações acerca de um realismo fantasmagórico, que não cansa de aparecer no filme. Um movimento contínuo, que atinge seu clímax na concretização da violência contra um grupo seleto de pessoas, para que depois tudo permaneça igual, o anticlima do filme, aliás, mantém a intensão catártico citada pelo texto: é preciso acabar com o inimigo externo para que nós possamos voltar a gerenciar nossa barbárie em paz.
Agradeço aos companheiros pelo texto. Tem aberto discussões até mesmo em sala de aula. Que o debate sempre se amplie para que possamos sair desse mar de concordâncias generalizadas, que tanto estanca as possibilidades de luta.
Talvez seja útil tentar primeiro separar e isolar as diferentes críticas apresentadas, para num momento posterior conseguir entender melhor como elas se articulam entre si. Criticar aquilo que se supõe ser a ideologia e visão de mundo subjacente ao filme é distinto de dizer que ele é “ruim”, e esta última crítica incomoda-me mais apesar de discordar de ambas.
Vamos supor (“for the sake of the argument”), que esteja certa a tese do “anti-imperialismo”, de que o filme pretende realmente ser um panfleto da “esquerda nacionalista” e quer apresentar a aldeia de Bacurau como uma idealização da “identidade nacional”.
POR SI SÓ, isso não seria nenhum demérito, certo? Em “panfleto ruim”, a palavra operativa é “ruim” e não “panfleto”, ou não?
Todos conseguimos conceber que se possa fazer um excelente filme, uma maravilhosa obra de arte, que é ao mesmo tempo uma óbvia propaganda de uma ideologia de que não gostamos, por exemplo o “Triunfo da Vontade” ou o “Nascimento de uma Nação” – vejam só, filmes que fazem “louvação aos nazistas”, ainda é pior que “louvação aos bandidos”!
Estamos todos de acordo neste ponto?
Neste caso, os autores e outros que aqui comentaram, acharam o filme ruim sobretudo porque não gostaram das opções estéticas/formais dos diretores, da forma de contar a história, do que chamam “alegoria anti-alegórica”, do excesso de realismo e/ou caricatura, etc. Foi isso? Ou foi por outros motivos que não entendi?
Lunga é o único que não usa camisa no combate, também como Obelix. E o Asterix Pacote, diante dos capacetes de romanos acumulados por Lunga Obelix, solta aquele “será se ele não exagerou?” Típico do racional Asterix diante dos excessos de Obelix. Aliás Lunga também aparece comendo, apenas ele, antes da batalha… Só falrou o javali.
Deuteragonista e Leo,
Vocês consideraram que os personagens de Asterix são mais metafóricos que os de Bacurau? Digo, a natureza figurativa dos personagens de Asterix é mais densa, não permitindo associações automáticas e com uma conjuntura política específica e localizada, como é o caso de Bacurau (problema maior num filme que se pretende alegórico). Assinalar a semelhança possível não significa muita coisa, a não ser isso mesmo, que é semelhante. E daí? Qualquer novela da Globo tem um desenvolvimento de trama que pode lembrar um drama de Ibsen, por exemplo. Ficamos por isso mesmo. Reitero a diferença importante: Bacurau aspira a uma literalidade que, em vários momentos dialoga diretamente com a conjuntura atual. Tem muita pressa em se fazer entender. A mistura de alegoria com realismo cru precisa ser debatida em seu significado e alcance crítico para o momento histórico em que vivemos. Isso é premente.
Deuteragonista, você tem toda razão. Não é porque uma obra tem finalidades políticas de propaganda que é ruim. Não se trata de aversão a uma arte panfletária, somente quando o panfleto não presta. Respondendo à pergunta: o incômodo com o filme tem a ver com a funcionalidade da ironia e da paródia.
Li em algum lugar que agora não lembro um paralelo entre Bacurau e aquele que, até onde sei foi o último filme de propaganda produzido pelo Terceiro Reich, intitulado Kolberg (direção de Veit Harlan e Joseph Goebbels). O paralelo diz respeito à trama, sobretudo: a ideologia da “comunidade” (cara à aos nazi, como vocês sabem) é mobilizada pelos diretores, também narrando a história de um vilarejo sob ataque de forças estrangeiras. O filme tinha a finalidade de encorajar os alemães a resistirem na última hora, já no final da Guerra. Obviamente, não estou aqui nivelando Bacurau e a última peça de propaganda de Goebbels. Mas apontando para a possibilidade de um traço comum aos dois, a saber, o apelo a um discurso identitário contido na valorização da noção de “comunidade”. É própria do discurso identitário a difusão de uma consciência propensa ao auto-reconhecimento não-contraditório.
Pra finalizar, sobre auto-ironia, cito as palavras de Walter Benjamin, em Rua de mão única, na sessão do livro intitulada “Viagem através da inflação alemã”, que reúne impressões de Benjamin sobre o modo de vida alemão no pós Primeira Guerra, e apreende bem, a meu ver, o crescimento do nacionalismo. Reparem, 1° na centralidade da questão da “identidade nacional” traduzida em termos de “comunidade”; e 2° na semelhança com alguns aspectos do espírito que move a comunidade de Bacurau (repetindo, antes de ser acusado da heresia de comparar um “filme de esquerda” com o crescimento de uma mentalidade fascista: não é uma equivalência total, mas analógica):
“Para o estrangeiro que segue por alto a configuração da vida alemã, que até mesmo viajou pelo país por tempo curto, seus habitantes não se mostram menos estranhos que uma população exótica. Um francês espirituoso disse: “Nos caos mais raros, um alemão terá clareza sobre si. Se alguma vez tiver clareza, não o dirá. Se o disser, não se fará compreender”. Essa distância sem consolo, a guerra a ampliou, não apenas pelos efetivos e legendários atos infames que se relatam dos alemães. O que completa mesmo o grotesco isolamento da Alemanha aos olhos dos outros europeus é a potência, totalmente inconcebível para os que estão de fora e totalmente inconsciente para os prisioneiros, com que as circunstâncias de vida, a miséria e a estupidez fazem dos homens, nesse palco, súditos das forças da comunidade, tal como a vida de algum primitivo é determinada pela legalidade do clã. O mais europeu de todos os bens, aquela ironia mais ou menos clara com que a vida do indivíduo pretende transcorrer em disparidade com a existência de toda e qualquer comunidade em que ele esteja encravado, está inteiramente perdido para os alemães”.
Ora, Benjamin notou a ausência alarmante de distanciamento irônico dos alemães em relação à sua própria condição (o que chama “o mais europeu de todos os bens”). O mecanismo perigoso da identificação estava em curso então, a pleno vapor. O ponto principal, que tentamos levantar no texto, é o fato de que a construção formal de Bacurau investe na identificação pura e simples do espectador com o ponto de vista da “comunidade” — isso ocorre deliberadamente, ainda que possamos pinçar detalhes do filme que apontam para outros caminhos. Na verdade, o central não é compreender porque os diretores optaram por esse recurso (bilheteria, por exemplo), mas assinalar que a heroicização eufórica da comunidade de Bacurau, por parte do público de esquerda, é sintoma de algo sério…
Para inúmeros setores da esquerda atual, a luta contra a extrema-direita consiste na disputa para provar quem é mais “verdadeiramente brasileiro”. A luta é travada no terreno deles, onde nunca vencemos e nunca poderemos vencer. O filme de Kleber Mendonça ajuda a dar forma a esse sentimento. Não é uma simples peça de propaganda nacionalista, claro — até porque não é possível à esquerda ser “simplesmente nacionalista” sem alguma dose de raciocínio crítico num momento em que a extrema-direita dá as cartas. Por isso, ao contrário do que disseram nos comentários acima, o nacionalismo implícito no filme não é uma dedução simples, feita a partir da presença caricatural de um grupo de estrangeiros; claro que não. Tem a ver com a centralidade da questão da “comunidade”… Ora, os próprios diretores assumiram que a comunidade de Bacurau é uma “representação microscópica do Brasil”.
Me preocupa que não se veja isso, a não ser, claro, que estejamos tão mergulhados na luta puramente discursiva contra a extrema-direita, que um filme como esse só pode fazer muito sentido.
João Paulo,
Sim, uma coisa é Asterix outra coisa é Bacurau pois os contextos são diferentes. Mas há várias associações possíveis no filme com a atualidade brasileira. Algumas eu apontei em comentários anteriores. Pra pegar um exemplo que citei de filme, Mãe… Não veria muito sentido numa resenha que focasse numa crítica política ao filme pela espécie de visão de ecologia profunda contida nele. O filme é bem mais do que a visão ecológica nele (tem a crítica ao cristianismo, à perspectiva que ele apresenta de Deus, o ser egocêntrico, e muito mais). É uma obra que faz pensar, nos coloca com olhar diferente diante de velhos objetos. Bacurau em menor medida também desperta isso.
Bacurau: pequeno manual de voo, por Arkx
para os que não suportam se resignarem grudados ao chão, em face do vôo dos Bacuraus.
não recomendado aos que padecem de reações alérgicas frente ao mais poderoso dos psicotrópicos: a análise crítica.
– apesar das oscilações de linguagem e narrativa, o filme “Bacurau” enfoca um claro ponto central: acabou o amor, isto aqui virou um inferno;
– a lumpenburguesia brasileira, sócia minoritária dos mega interesses globais, declarou aberta a temporada de caça;
– nós somos a caça. e a temporada só encerra quando estivermos todos mortos;
– neste game viciado não tempos opção, a não ser lutar por nossas vidas. numa guerra de extermínio, ou lutamos ou não sobreviveremos;
– não será nenhum messiânico Salvador da Pátria quem nos guiará através do vale das sombras da morte, tampouco faremos esta travessia movidos pela paz e o amor;
– nenhuma pax nos salvará. o inimigo não admite qualquer possibilidade de conciliação. o fascismo precisa ser decapitado e suas lideranças devem ser enterradas… vivas;
– a autodefesa da comunidade e do território no qual vive (ZAD – Zona A Defender) é tarefa de seus próprios integrantes;
– déjà-vu: tudo isto já aconteceu antes. no chão deve ser novamente cavado um buraco, num ponto exato conforme indicações exatas: há um mapa do caminho;
– um museu não é o depósito de uma História fossilizada, e sim onde com orgulho estão prontas as armas para a luta;
– sem resgatar a própria memória e conquistar autonomia sobre sua própria História é impossível no presente o vôo dos Bacuraus;
– a comunidade é uma Zona Autônoma Temporária (TAZ), sua perenidade é o tempo da luta por sua permanência. nada está dado, tudo precisa ser continuamente conquistado: somos todos quilombolas;
– isto sempre acontece: os caçadores acabam se caçando entre si. a guerra de classe é também uma guerra entre frações de classe: Guerra de Famiglias;
– o joguinho tem um nome: Daesh;
– um hardware da morte processando a necropolítica do Capitalismo contemporâneo: o lucro pelo lucro, a acumulação pela acumulação, o terror pelo terror, a destruição pela destruição, a morte pela morte;
– trata-se da guerra de um mundo contra todos os demais e contra si mesmo, conforme sintetizado em seu lema macabro: “Viva la Muerte!”;
– a assim denominada “civilização” nada mais é do que esta barbárie instalada: o Capitalismo como a máquina da pulsão de morte;
– contra a extinção em curso, há um Povo: os Seres da Terra;
– para alçar vôo com os Bacuraus, é preciso estar enraizado no centro da Terra. e isto só se concretiza em comunidade, através daquele território no qual vivemos e criamos laços: com o meio ambiente e uns com os outros;
– por que lutamos? lutamos porque só assim nosotros pode estar vivo: “Muera la Muerte! Gracias a la Vida!”.
P.S. do Leo: vejam como uma interpretação política extremamente fiel ao filme mas totalmente fora da ideia de luta antimperialista e saudosismo lulopetista. Pelo contrário, não tem salvador da pátria.
-> P.S. do Leo: vejam como uma interpretação política extremamente fiel ao filme mas totalmente fora da ideia de luta antimperialista e saudosismo lulopetista. Pelo contrário, não tem salvador da pátria.
veja como são as coisas, meu caro. o “Pequeno Manual de Vôo do Bacurau” foi também inspirado em seus comentários aqui.
agradeço as referências. não por alguma vaidade, mas por contribuir para circular outras possibilidades de abordagens do filme.
uma das linhas de análise sobre “Bacurau” argumenta que se “gentileza gera gentileza”, “violência gera violência”. em sua autodefesa a caça acabaria se equiparando aos caçadores. numa vitória às avessas destes, em consequência da inversão de papéis sob um mesmo script.
para outros, o filme é uma evocação nostálgica dos tempos dourados do Lulismo. o sonho impossível de retorno ao paraíso perdido da conciliação de classes. o vôo dos Bacuraus seria prenhe de anti-imperialismo, mas abortivo da luta de classes.
ao se analisar um filme (ou um texto, ou um fato, ou o que quer que seja) é preciso primeiro fechar o foco. ser “extremamente fiel” ao que se analisa, sem inserir à fórceps qualquer elemento alheio à linguagem ou narrativa.
exemplo: em qual momento de “Bacurau” há qualquer referência, mesmo indireta ou implícita, ao Lulismo?
em seguida, o plano deve se abrir. numa grande panorâmica voltada para as possibilidades vistas a partir do filme.
neste sentido, é muito interessante a aproximação feita aqui nesta área de comentários de “Bacurau” com Asterix.
grande abraço
.
A referência ao Asterix foi a primeira que me saltou à mente quando vi o filme. Mas longe de me entusiasmar, preocupou. Há poucos meses estive numa região da França onde acontecia um encontro dos Identitaires, nome sugestivo adotado por uma juventude de extrema-direita. A cidade estava coberta de adesivos celebrando “o primeiro francês”, a raiz nacional do povo que resistiu ao imperialismo romano (nas pirações míticas deles, seria esse cara: https://archive.4plebs.org/pol/thread/120952664/ – soa familiar?). Me deixou pensando muito: o que significa reivindicar a resistência das comunidades, tradições e anscestralidade pela esquerda num capitalismo transnacionalizado?
Caio,
essa resistência das comunidades, tradições e ancestralidades podem dar nessa extrema-direita.
Por outro lado não existe futuro sem memória (e memória é diferente dessa pirações míticas, pra deixar claro). Os zapatistas já destacaram bastante o papel da memória. Acho que os zapatistas são a resistência mais notável em décadas que é ao mesmo tempo de esquerda, de comunidade (e sempre mais-além), que carrega tradições enquanto autocontesta e modifica outras e atira contra o capitalismo transnacionalizado.
“Sejamos realistas, tentemos o impossível”,
“Tomar o céu de assalto”,
a tal luta final…
tenho a impressão de que todos os movimentos revolucionários modernos estavam cagando e andando para as tradições, queriam mesmo era fazer algo completamente novo, passando necessariamente pela criação de novos sujeitos, como por exemplo a destruição da classe trabalhadora, enquanto que a força de conservação identitária e tradicionalista operava absolutamente contra as tendências mais radicais, papel que coube aos nacionalismos e sindicalismos tão arraigados na esquerda. Interessante como a referência a Asterix e ao zapatismo resgata o lado mais defensista da esquerda. Se isso não é nostalgia, não sei o que é. No filme Aquarius também não vemos nenhuma referência direta à Dilma e ao lulismo. No entanto a abertura do filme é com fotos antigas e as primeiras cenas são situadas no passado do tempo narrativo principal.
realista,
Se o zapatismo é defensista eu quero jogar sempre na retranca!
TOMAR OS MEIOS DE PRODUÇÃO é defesa?
Instituir poderes autônomos, com rodízio entre todos nos papéis nesses organismo de gestão política e social é defensivo? Expandir essas conquistas para outras localidade é defensivo?
Então não sei o que é uma revolução.
Os zapatistas (os atuais), como o nome já diz, bebem de uma tradição, por assim dizer, de revolução e movimento anterior, e também bebem da cultura indígena e de, portanto, pelo menos de algumas de suas tradições. A palavra tradição pode não ser apropriada, mas não somos tabula rasa, herdamos algo que carregaremos com a gente mesmo na hora da revolução. Algo do velho sempre está em nós e para o bem ou para o mal algo do velho estará ainda na sociedade que virá.
O problema é quando a tradição se torna o centro da política, sua manutenção um fim, assim como o problema é quando a política gira em torno e para uma identidade, como o fim em si.
Tradição de luta, memória de luta… isso são instrumentos que não devemos perder. São meios. Nos servem de ferramentas para agirmos no presente, situando-as nas circunstâncias novas que aparecem.
A questão é que os zapatistas são, por assim dizer, anti-identitários (talvez o melhor livro para entender isso seja o Mudar o Mundo sem Tomar o Poder do John Holloway. Eles partem do ponto em que estão e do que são mas apontam para um universal, não se fecham nas suas identidades indígenas.. e isso é muito claro nos discursos zapatistas desde o levante de 1994.
João Paulo,
A velocidade com que estes comentários se sucedem faz com que seja difícil ter tempo de os acompanhar e responder a todos os interessantes pontos levantados que me suscitaram reflexão.
O seu último comentário foi esclarecedor, mas avançou bastante mais rápido do que eu havia proposto. Vou tentar resumir para que me confirme se entendi corretamente, ou me corrija:
– Está muito claro que um filme pode ser muito bom mesmo sendo propagandístico e panfletário, mesmo propagando ideologias ou pontos de vistas de que não gostamos. O “Triunfo da Vontade” é uma obra-prima.
– Por omissão, e pelo que já havia sido dito no texto principal, deduzo que também não há nenhum problema com as opções estéticas/formais mais “técnicas” PER SE, os recursos cinematográficos empregues, as influências do cinema de “gênero”, etc. Muitos dos melhores filmes da história foram de “gênero”, provavelmente podemos concordar nisso também.
– As críticas concentra-se portanto nos seguintes aspectos:
1) A excessiva “literalidade” do filme, que teria como finalidade ou resultado uma colagem à conjuntura política atual. Daí a expressão “alegoria anti-alegórica”.
2) A “funcionalidade da ironia e da paródia”. A representação da “comunidade” de Bacurau seria, não apenas acrítica, mas inteiramente destituída de distanciamento, “heroicizante”, visando a total identificação emocional do público com essa comunidade e os seus habitantes. Por sua vez, essa comunidade seria uma representação, um “microcosmos” do Brasil, aparentemente segundo um dos diretores – mas acho que não segundo o Kleber Mendonça.
Sobre o ponto 1), em parte não concordo, mas em parte também não entendo porque seria um problema. A “literalidade” e o excesso de referências à conjuntura atual seria uma “contradição formal” com a “estrutura alegórica” do filme. Porquê? À partida não vejo contradição nenhuma.
Mas não concordo porque acho que as referências à conjuntura atual, sem dúvida presentes, como no exemplo que mencionei sobre o motoqueiro ser assessor do TRF-4, não me parecem centrais. São laterais e exteriores à dinâmica principal de “resistência da aldeia aos gringos exterminadores”.
O roteiro do filme foi escrito 10 anos atrás, em plena “paz e harmonia” dos governos PT pré-2013. Tudo o que está sendo interpretado como “fascismo” e característico apenas do atual governo já estava presente na sociedade brasileira anteriormente. E, embora tenha de facto havido uma escalada discursiva na direção do “fascismo”, a situação concreta (ainda) não mudou assim tanto como isso.
Por exemplo, a estratégia inicial de confronto do primeiro governo Sérgio Cabral, ainda antes das UPP’s, foi provavelmente tão ou mais mortífera que a atual política de Witzel, apesar do discurso mais moderado; e o mesmo pode ser dito da intervenção federal do governo Dilma na Maré. A “necropolítica” – termo que não me agrada particularmente – não é nada de novo, é uma constante no Brasil.
De facto, no mundo real, os exterminadores de Bacurau são os exterminadores fardados nas favelas e periferias. Sendo estes muitas vezes também pobres e periféricos, um paradoxal abismo mental separa-os dos alvos da sua violência, sendo assim representados como “estrangeiros”, que só se comunicam com os “nativos” usando um tradutor automático – já agora, repararam que a “siri” ou “senhora google” da gringa ferida fala em português de Portugal? Nada disto é por acaso…
Sobre o ponto 2) há tanto, mas tanto, para dizer… poder-se-ia escrever um texto maior que o post inicial, mas não estou seguro de ter capacidade de o fazer – espero não ser acusado de “falsa modéstia”!
Acho que de tanto prestar atenção à reação do “público de esquerda” ao filme, você acabou vendo o mesmo filme que esse público, e eu vi um filme muito diferente.
É verdade que houve uma “heroicização eufórica da comunidade de Bacurau” por grande parte do “público de esquerda”, que viu no filme um hino a uma “resistência” sonhada e improvável. Mas isso diz-nos muito mais sobre o “público de esquerda” do que sobre o filme. É da natureza humana ver espelhos onde eles não existem e selecionar apenas aquilo que reforça as nossas crenças prévias, o famoso “viés de confirmação”.
E, convenhamos, nestes tempos estupidificantes de “memes” e redes sociais, qualquer porcaria serve para a “esquerda” (ou a “direita”) se identificar, até uma banalíssima propaganda do Banco do Brasil provoca reações apaixonadas.
Mas há inúmeros elementos críticos em Bacurau que passam muito longe dessa visão de uma comunidade idealizada e harmônica, e você certamente apercebeu-se deles, como se apercebeu de pelo menos algumas das críticas dirigidas claramente à “esquerda”. Mas, os primeiros considera-os “detalhes”, e as segundas pensou que eram todas acidentais ou involuntárias, uma “esculhambação involuntária de si próprio”. Ora a mim pareceu-me que era tudo deliberado, apesar de os diretores certamente conseguirem prever que não seria assim que o filme seria visto, pela maioria das pessoas e na conjuntura atual.
Este comentário já está longuíssimo, talvez ainda tente voltar aqui para explicar melhor este ponto 2), explicar porque eu acho que o filme NÃO “idealiza” a comunidade de Bacurau, não a retrata como “feliz” nem “harmônica” nem em “paz”; porque acho que a crítica, a auto-ironia e o humor são constantes; e porque NÃO me “identifiquei emocionalmente” com a “comunidade” de Bacurau. Que continua sendo um filme excelente!
Se alguma identificação houve, foi apenas com Pacote e Lunga, e já agora com o alemão que é aprisionado no fim, que, como alguns outros gringos, não achei nada que fosse “destituído de profundidade” e “reduzido à imagem do Mal”.
Aliás, é-me muito mais fácil em geral a identificação com os “bandidos” e os “malvados” do que com as pessoas do “bem”.
Mas, só para falar de um segundo aspecto óbvio (já falei da “caçamba” de livros acima):
Quem consegue suportar ou sequer levar a sério o nauseante discurso do Professor no velório do início do filme? Quando ele menciona, com tanto orgulho, os familiares e amigos pós-graduados que, obviamente, fugiram da parvónia e pasmaceira de Bacurau assim que puderam, e que eventualmente enviam umas “ajudas” muito esporádicas e simbólicas, o que devemos concluir? Que a “educação” vai resolver os problemas do Brasil? Que devemos “levar um livro” na hora de votar? Ou que há ali uma pesada crítica ao insuportável bacharelismo de grande parte da “esquerda”, que foi tão ineficaz e penoso de observar na candidatura Haddad? Ninguém é mais inútil e inoperante perante a ameaça dos matadores que o professor e a médica, que nunca atuam como as lideranças que poderiam ser. Neste ponto, a esquerda-universitária-classe-média-espectadora já não se identifica nem se reconhece… O espelho é muito seletivo.
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Caio,
“Esse cara” é Vercingétorix, a estátua é bastante conhecida. Não penso que se diga que é o “primeiro gaulês”, mas algumas fontes, incluindo César e Plutarco, atribuem-lhe a iniciativa de ter formado e liderado uma grande aliança de tribos “gaulesas” (celtas da Gália) anteriormente dispersas e constituído um exército que combateu os romanos em duas grandes batalhas: Gergóvia, onde teria vencido César, e Alésia, onde foi decisivamente derrotado, capturado e levado prisioneiro para Roma para ser exibido no desfile das tropas vitoriosas.
Tal como muitos outros países fizeram na mesma altura com outras figuras, a “invenção” de Vercingétorix como herói nacional e fundador da pátria deu-se na segunda metade do século XIX, especialmente na sequência da derrota na guerra Franco-Prussiana.
Uma resenha política bem interessante, casada com uma pesquisa informal com o público. Aliás, é a explicação política derradeira para a produção e propaganda da Globo:
““Bacurau” para não-cinéfilos
Um quadro não muito diferente do discurso martelado diariamente pela mídia corporativa: o povo deve se manter unido contra os políticos corruptos. Esse foi o mote das domingueiras de bolsomínios com camisetas da CBF pedindo punição aos corruptos e uma intervenção salvadora de não-políticos – os militares.
Por isso, esse humilde blogueiro decidiu assistir ao filme Bacurau no CEU Butantã em São Paulo, dentro do circuito Spcine. Ao contrário das salas de cinema cults com cinéfilos sobrecodificando o filme, seria mais interessante ver a reação do público menos intelectualizado.
O resultado foi o que mais temia: involuntariamente Bacurau reforçou o niilismo anti-política da grande mídia. A sequência final do castigo imposto pelos moradores ao prefeito Tony Jr. (seminu, colocado amarrado num jegue, com uma máscara de lobisomem, condenado a vagar no deserto sob o sol a pino) foi catártica para a plateia.
Duas frases este editor do Cinegnose mais ouviu na saída da sala de projeção: “é isso que esses políticos merecem!”… e “o brasileiro tá precisando dessa droga pra ficar mais corajoso!”, numa alusão ao “psicotrópico forte”, como descreve a personagem Domingas.
Sem querer fazer teorias conspiratórias, talvez seja por isso que a Globo Filmes assinou a co-produção de Bacurau: no final, a narrativa do filme dá uma continuidade ao discurso diário dos telejornais da rede. ”
http://cinegnose.blogspot.com/2019/10/filme-bacurau-perde-no-cabo-de-guerra.html#more
Interessante esta “pesquisa informal”, mas cabe observar: o posicionamento político deste “público menos intelectualizado” não se pode inferir “a olho”. Como não assisti o filme, e talvez termine não assistindo, não tenho como falar do conteúdo. Mas o tipo de paralelo proposto pelo “pesquisador informal” pode ser bastante frutífero.