Por Santiago Assunção
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A coerência exige que os defensores da democracia contra a tirania a defendam tanto no Brasil como fora dele, afinal golpe é golpe em qualquer lugar. Por isso à solidariedade à presidente brasileira impedida deve se seguir a solidariedade ao presidente que corre o risco de ser impedido, pois tanto este quanto aquela alegaram — e é tal alegação a única sustentação da tese — estarem sofrendo um golpe. E com isso Dilma fica de mãos dadas na defesa da democracia liberal — do poder do povo — com um dos maiores apoiadores de Bolsonaro, com pessoas que nunca deram muito valor a ela, nem ao poder do povo.
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Uma solução menos vergonhosa para o PT — já que ele busca estar tão bem integrado nas estruturas públicas e privadas de poder da nossa república liberal — teria sido reconhecer que o impeachment foi o resultado de um duplo fracasso, isto é, o fracasso em conservar apoios entusiásticos, de pessoas dispostas a lutar até as últimas consequências, no âmbito institucional e ao mesmo tempo no âmbito dos movimentos populares. À perda de apoio em meio às instituições que regulamentam, administram, fiscalizam e exercem o poder punitivo sobre a sociedade e no interior do próprio Estado, e também em meio às instituições que executam e gerenciam a produção econômica e os mecanismos da produtividade,[*] somou-se a perda do apoio — novamente, entusiástico e disposto a resistir até as últimas consequências — da maior parte do seu eleitorado. Um fracasso até hoje não reconhecido e escondido por trás do palco onde preferiram encenar o teatro do golpismo.
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Enfim, o partido preferiu denunciar a ruptura na ordem democrática, justo ela, para cuja defesa é tão difícil mobilizar, tão desmoralizada que está, tão associada no imaginário popular ao famoso “sistema”, um sistema tão perverso que chega a estimular entre as mais altas autoridades da república tendências homicidas e suicidas: “o império contra-ataca”, teria dito Janot, ao ser surpreendido por uma busca e apreensão da Polícia Federal em sua casa, “é… Vai mexer com o sistema. Tem muita gente na República feliz hoje”. Um policial federal teria dito na ocasião que “ele [Janot] disse o que muita gente tem vontade de fazer. Eu sou fã dele”, e que lhe pediria um autógrafo, tão logo fosse lançada a autobiografia que revelou o crime cogitado.
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Acontece que aí os petistas convergiram, como convergem agora, com um campo político muito à extrema-direita, e populista, na denúncia do “sistema”, ao mesmo tempo em que — e aí provavelmente o PT está sozinho na luta — pretendem obter o apoio popular para a defesa do mesmo “sistema” no qual se integraram tão bem no passado, só que sob sua gestão. Os fascistas bolsonaristas pelo menos têm a coerência de denunciar o “sistema” democrático e reconhecer que sob ele — a democracia liberal vigente, claro — nada provavelmente poderá mudar.
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Seja como for, denunciando o golpe, ou seja, esta democracia golpista de que tanto desejam participar, que tanto desejam ter em suas mãos e manejar habilidosamente, os petistas não mais fizeram que alimentar um sentimento geral de desconfiança popular na democracia… E — para eles, claro — que venha Bolsonaro.
Notas
[*] Os petistas não falaram em golpe contra a democracia quando eram os empresários e executivos, ex-companheiros do partido e do governo, as vítimas do direito penal do inimigo, sem contar a resistência do núcleo do governo petista às reformas necessárias para a retomada do crescimento econômico, as quais o governo não podia apoiar, sob o risco de alienar as suas próprias bases; além disso, a campanha central do partido é, o nome já diz, pelo Lula Livre.