Por Victor Hugo Viegas Silva[*]
“Estou me guardando para quando o carnaval chegar” (Marcelo Gomes, 2019), documentário agora disponível na plataforma de streaming Netflix, consegue um feito notável: falar de algo fora de moda: trabalho — e falar bem, falar bonito. Na verdade falar mal, no sentido corrente do termo. É um retorno às origens que não se realiza, a cidade rural que o diretor lembrava com carinho foi modernizada. Mas de que forma? Dá para perceber que o diretor e narrador fica horrorizado com o modo de vida que se instalou em Toritama, cidade-fábrica de jeans que nunca para e cujos trabalhadores não têm direitos, nem garantias, exceto a do seu próprio engajamento. Aliás, também não têm jornada — trabalham de segunda a segunda. Nas palavras do próprio diretor: a cidade é uma China com um carnaval no meio.
Só que, ao invés de fazer uma denúncia ou um olhar clínico sobre a exploração, com dados e análises de especialistas sobre esse mundo do trabalho, Gomes faz poesia. E vê, através das falas e do próprio olhar dos toritamenses, outra jornada que não é a do trabalho. Uma jornada heroica de desafiar seus próprios limites. O sonho da liberdade e da independência que esses trabalhadores buscam na labuta ininterrupta. Não ter patrão, ditar seu próprio tempo. O olhar nostálgico do diretor busca aquela imensidão antiurbana sonhada, antiurbanidade que ele identifica com a liberdade do seu próprio tempo, nesse novo modo de vida que se instalou na cidade — que aparece como pequeno modelo do mundo que vivemos hoje. Mesmo em meio ao pesadelo ainda existe um impulso original do sonho, a liberdade sem limites da imaginação.
É assim que uma longa cena de uma mão a manipular o tear nos ensurdece com o barulho da máquina, depois silencia e, ao som de Bach, que toma o lugar do ruído da máquina, a cena se torna um olhar apaixonado sobre o balé habilidoso dos dedos a costurar através do meio mecânico. É aí que se realiza o ponto de virada que dá o nome para o documentário — quando em gesto extravagante, os personagens vendem tudo o que têm e vão para a praia se divertir, viver a vida, curtir uns aos outros sem prestar conta a ninguém. Quer dizer, nesse caso, eles aprendem a registrar e topam fazer as filmagens, não para prestar contas, mas para contar sua história. E o olhar deles — na câmera emprestada pelo diretor — mostra como valorizam os momentos de descanso, as peculiaridades de cada pessoa, como se divertem bem e com gosto, sem obrigação. Ali se realizam, ali o mundo se inverte e, subitamente, aquelas 51 semanas de tempo totalmente escravizado às maquinas de produção de jeans, aqueles trabalhos de Hércules fazem sentido e aqueles trabalhadores habilidosos, independentes de patrão, mas escravos do mercado, reencontram sua liberdade e se realizam enquanto gente. Nesse momento, subordinam a máquina, a câmera, aos seus prazeres e descansos.
No outro dia tudo acaba; os moradores da cidade se endividam para comprar tudo de novo e retornam ao trabalho interminável, sem limites. Mas ainda sonham. Interrompem o trabalho para ouvir música. É um mundo terrível esse em que vivemos e esse que Toritama se tornou. A poesia do diretor não esconde isso, pelo contrário, explícita. Chega a ser uma distopia mesmo, um pesadelo. Não fica muito claro se eles se exploram entre si, mas parece provável. Os pequenos e grandes patrões não aparecem no filme enquanto tais, apesar de uma referência ou outra. Mas não se trata de um filme sobre a exploração, exatamente, no sentido de exibir as vítimas da exploração. É um filme sobre os trabalhadores enquanto sujeitos e o nosso tempo, o que constitui o fundamente desse mundo, o nosso, em que as pessoas sonham e resistem. Um mundo que elas são capazes de encontrar e lutar por sua liberdade. Que mostra que nós também — afinal, é o nosso mundo. Esse filme nos ajuda a pensar nisso — onde realmente se encontra a liberdade que buscamos e sonhamos. Não é do lado da máquina. Ela poderia ser um instrumento de emancipação — para fazer balé, para realizar belezas. Não é. Mas poderia. Se fossem outras as relações… quem sabe? Vale a pena ver o filme para vislumbrar essa beleza possível.
Até conseguirmos parar tudo quando quisermos, não só no carnaval… o sonho vai ser o alimento do pesadelo. Nossas esperanças (e não o medo!) a nos manter amarrados às máquinas até que…
[*] Victor Hugo Viegas Silva é estudante de jornalismo da PUC – Goiás e trabalhador da Universidade Federal de Goiás.
Ao assistir esse filme fiquei pensando em muitas coisas. O diretor consegue transmitir na composição audiovisual angustia que ele viveu ao visitar Toritama, porém enquanto a angustia dele esta relacionada com a perda do sua memória idílica de infância, as minhas são outras.
O pesadelo que eu assisto parece ser meu, do espectador que está atônito com a rotina de trabalho, com a reorganização da cidade, já os entrevistados relatam o pesadelo como sonho. Afirmam que possuem independência no trabalho, que trabalham o quanto quiserem, apenas ocorre de quererem trabalhar 13 horas por dia, de 6 a 7 dias por semana.
Como se organizam esses trabalhadores? Qual espaço de mobilização existem, a quem uma greve deles afetaria? Não transparece no filme que se percebam como trabalhadores, mesmo em estatísticas devem estar divididos entre informais e “empreendedores”, mas de fato estão inseridos como trabalhadores em uma das mais antigas indústrias.
O filme faz bem em nos colocar perguntas, precisamos com urgência continuar formulando-as
Não seria idealismo demais ressaltar o “sonho” (assim abstrato) da classe trabalhadora como o elemento mais interessante desse filme?
Creio tratar-se de um filme belo por emocionar ao mesmo tempo em que revela relações cruas. Tais relações que poderíamos discutir até a exaustão. É uma obra e arte esplendorosa que dá muito pano pra manga.
Mas do que trata o “sonho”? Desejo de viver o carnaval todo mês? Trata-se da busca pelo paraíso? Ora, o sonho também pode ser aprisionador, uma vez que não liberta realmente o trabalhador da escravidão assalariada que o arrasta ao longo do ano até o suspiro desesperado em fevereiro. O sonho do carnaval ajuda a suportar a miséria da existência cotidiana. Evidentemente, todos precisam aproveitar a vida apesar do sofrimento, mas o “sonho” pouco pode contribuir para a emancipação da humanidade.
Aos dois que me antecedem,
O sonho é o controle do próprio tempo, a autonomia. Viver em função da necessidade da própria vida, sem precisar seguir ordens de ninguém. Só que ao se dar de forma atomizada e vinculada e metas de produtividade, se torna o próprio alimento do pesadelo. As jornadas exaustivas de trabalho são naturalizadas, as demissões são vistas como oportunidade de buscar outros caminhos (ao menos para os mais habilidosos e carismáticos, como o protagonista do filme). A rebeldia se torna fundamento e motor da ordem em seu próprio impulso. Compartilho das questões de LL. São as perguntas que devemos fazer. Outra: porque eles não parecem se preocupar com isso? Porque não há nenhuma conversa sobre o que fundamenta o poder de barganha deles? Porque aceitam as metas de produtividade colocadas como lei natural, como a chuva ou a mão de deus? Eu acho que a resposta se encontra no que de positivo consegue fantasiar, realizar e esperar nesse processo de trabalho. Não é pelo medo, pela coerção, mas pelo engajamento e pela individualização do processo de trabalho. Quis explorar como esse impulso que tem aparência positiva, emancipadora, acaba por ser mais uma corrente e das mais poderosas.
O sonho a que aludo aí é o comunismo, relações sociais de trabalho em que os produtores sejam senhores do seu próprio tempo. O que eu tento falar na resenha é que esses trabalhadores conseguiram uma espécie de pré-figuração negativa, em que a exploração aparece como liberdade. Por que? Provavelmente deve-se encontrar na história de lutas daquela região alguma resposta. Provavelmente – se posso arriscar – trata-se de um aumento do padrão de vida para a maioria diante dos padrões anteriores… especialmente aqueles do sonho idílico do diretor do filme, de quem quase ninguém parece ter saudade.
O que me parece central dessa discussão sobre a positividade ou não – o ponto de partido do “sonho” – é que bases ele coloca pra uma perspectiva de revolução social. Por um lado a fragmentação e o impulso rebelde dentro da ordem pode muito bem ser a base social de um fascismo vindouro. Se Toritama for o futuro do Brasil – e não vejo motivos pra afirmar que não é – talvez tenhamos que lidar com um fascismo ascendente por estar em consonância com a atual organização do trabalho. Pra quem propõe o comunismo, a ruptura do isolamento e o respeito ao desejo de autonomia e igualdade política/jurídica do trabalhador me parecem pontos de partida interessantes para tentar construir algo no futuro com condições de disputar essa base social. Caso contrário, no melhor dos casos teremos uma corrosão profunda do que resta de coletividade organizada no Brasil e a supressão total de nossos direitos – no pior, um fascismo com altíssimo nível de engajamento de trabalhadores empenhados em se explorarem e vigilantes com as faltas, diferenças e subversões dos outros.
Para quem estiver em SP, cine-debate sobre o documentário amanhã:
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