Por Pascal Paulus
A participação em projectos de intervenção local, em bairros populares na Bélgica, e num projecto de escola, sonhado por pais e mães da geração de Maio ’68, possibilitou-me aprender como, para o formador ou educador, a escuta atenta é ponto de partida para o envolvimento nos projectos dos outros, adoptando-os e partilhando-os. Sendo catalisador às vezes, impulsionador voluntário ou involuntário outras vezes, procurando sinergias entre pontos de vista dos outros e pontos de vista pessoais, o envolvimento pessoal torna-se possível.
Há 24 anos em Portugal, continua a interessar-me perceber a lógica das pessoas com quem contacto profissionalmente, ora crianças, ora adultos. Uma nova realidade substancialmente diferente da anterior, encontrada na periferia da Grande Lisboa, apoiou a reflexão pessoal em torno da ideia freiriana de que o verdadeiro educador trabalha com as pessoas e não para as pessoas. Desenha-se um trabalho lento, em certas ocasiões aparentemente contraditório, obrigando tanto à proximidade, como ao distanciamento necessário, para continuar a ser formador com voz crítica quando necessário e ao trabalho de equipa.
Deixo aqui algumas notas acerca de três aspectos que me parecem ter de ser entendidos, para que se possa avançar com segurança com uma proposta de aprendizagem em comunidade: a percepção do meio no qual a acção se situa, o sentido do trabalho autónomo no desenvolvimento de projectos e a caracterização do local de onde parte a acção tal como a sua percepção pelos demais actores. Situo seguidamente, com alguns exemplos, a intervenção junto a uma comunidade local.
Bairros, contextos fora do contexto
Proliferam na zona da Grande Lisboa aglomerações de prédios, muitas vezes de quatro ou cinco andares, evitando assim a instalação de elevadores eléctricos. Com aspectos uniformes, identificam-se facilmente como prédios de alojamento a baixo custo. Para eles foram transferidas as populações que antes viviam em zonas não urbanizadas, em casas clandestinamente construídas com madeira, chapas e tijolos. Os grandes períodos de realojamento, nos anos ’70 e ’80, abrangiam sobretudo migrantes internos, vindos de zonas rurais, na década anterior, em busca de emprego, e, nos anos ’80, imigrantes provenientes das ex-colónias portuguesas de África. Algumas zonas de realojamento serviram também para a sedentarização de parte da população cigana de Portugal.
Os bairros de alojamento a baixo custo são geralmente identificados como bairros sociais. Quando a concentração de migrantes, ciganos, desempregados ou adolescentes se torna mais densa, o bairro ganha rapidamente a designação de bairro problemático ou bairro difícil. Não negando a existência de situações complicadas, associadas a actividades ilegais, ao tráfico de drogas e de armas, a prostituição infantil, também é verdade que sempre encontramos moradores, adultos, adolescentes e crianças, que procuram intervir, contrariando esta estigmatização, desenvolvendo projectos mobilizadores.
A rede de escolas públicas do 1º ciclo (único ciclo em monodocência, que se destina a crianças de 5-6 até aos 10-11 anos de idade, em quatro anos de escolaridade) está implantada em todo o país desde os anos ’60. Nas periferias das grandes cidades havia, originalmente, escolas de pequena dimensão com 2 ou 4 salas de aula, separando meninas e meninos. Actualmente mistas, muitas escolas não conseguiram dar resposta à crescente pressão demográfica devido aos fluxos migratórios, o que provocou escolas sobrelotadas, com duas e, às vezes, três turmas seguidas na mesma sala, ao que se denominou de regime duplo ou regime triplo. O parque escolar público foi, entretanto, renovado e ampliado, o que não significa que em muitos dos bairros periféricos continue a haver edifícios com deficientes condições de trabalho, com pavilhões provisórios e espaços exteriores pouco arranjados.
Por norma, as crianças são inscritas nas escolas da zona de residência. Por um lado, significa que, nas grandes cidades e na sua periferia, a distância até a escola nunca é muito grande, permitindo a muitos deslocarem-se a pé até a escola. Por outro lado, conjugando com as características próprias dos bairros de realojamento cujos residentes são maioritariamente migrantes e pessoas com empregos e rendimentos mais instáveis, assiste-se a um fenómeno crescente de guetização. Nas zonas de contacto entre os bairros de renda social e os de venda livre, habitados por uma classe média com rendimentos mais elevados, verificamos que esta mesma classe média opta pela escola básica privada. Dados da OCDE e da Eurydice apontam Portugal como um dos países da OCDE com mais elevado número de crianças matriculadas no ensino básico privado (8,5% no relatório Eurydice de 2007).
Trabalho com sentido
A pedagogia institucional, da qual Fernand Oury [1] foi precursor, e a proposta pedagógica do Movimento da Escola Moderna portuguesa, desenvolvida e reflectida em grupos de autoformação cooperada e teorizada por sócios, com especial relevo para Sérgio Niza [2], propõem que o trabalho pedagógico seja munido de sentido. Têm pontos de contacto, com as propostas pedagógicas para o trabalho com adultos, com pedagogos como John Dewey e Paulo Freire.
Estagiário de professores do grupo de trabalho de Fernand Oury, nos subúrbios de Paris, em meadas dos anos ’70, fiquei impressionado pelo efeito formativo e, muitas vezes, quase terapêutico que a acção pedagógica em sala de aula provocava nos alunos. Alguns anos mais tarde pude verificar como o poder instituinte dado ao grupo de aprendentes, conduzido pelo formador, tinha este mesmo efeito formativo, num projecto de formação não-formal, com um grupo de jovens num antigo bairro de pescadores, em Oostende, na Bélgica.
A autonomia para a qual indivíduos e grupos são incitados, o acarinhar de projectos de trabalho concretos, que surgem do poder instituinte do grupo, provocam um sentimento de pertença que aponta uma direcção e confere uma significação à acção: esta ganha sentido, para cada um dos envolvidos.
Etimologicamente, autonomia significa a lei do próprio, (autós (próprio) + nómos (lei)). Porém, não se propõe, nem se pede às pessoas, com quem trabalhamos, para fazer a sua própria lei e governar-se por ela, sem mais.
O conceito é aqui utilizado num dos seus significados modernos: ter a liberdade moral ou intelectual, destacando o segundo aspecto de liberdade intelectual, não tanto no sentido filosófico, mas mais no sentido prático.
Curiosamente, a palavra “trabalho” deriva do latim “tripaliu”, um aparelho de três paus que era utilizado para dominar e imobilizar os cavalos para os ferrar, um aparelho de exercício de poder, portanto. Mais tarde, a palavra é vulgarizada e passa a significar um “instrumento de tortura”, significado que fazia certamente todo o sentido para os escravos.
Mas entre as muitas definições de trabalho, na modernidade, encontramos duas que nos servem em relação ao espaço e ao tempo em que nos situamos:
• conjunto das actividades humanas, manuais ou intelectuais, que visam a produtividade;
• maneira como alguém trabalha;
Assim, é possível relacionar os dois conceitos, autonomia e trabalho, de forma dialéctica, para que um reforce o outro.
A liberdade intelectual permite ao sujeito organizar o seu trabalho intelectual, conferindo sentido ao seu trabalho manual, inserido num projecto comum. Este projecto comum obriga à liberdade intelectual para continuar a organizar o trabalho. Sabendo que o trabalho (também o trabalho intelectual) exige um esforço, podemos concordar que esta exigência é, muitas vezes, dolorosa. Aprender dói, mas terá que ser uma tortura?
A instituição de projectos de trabalho, monitorizados em grupo, permitindo a autonomia dos seus membros, sendo cada um responsável por uma parte da sua execução, é assim proposta como fio condutor, na acção educativa com crianças, na escola, como na formação de adultos, em contextos formais.
A escola: educare ou educere
Ainda que a pedagogia institucional, tal como outras correntes de inovação pedagógica, substitua o paradigma do ensinar, baseado na relação professor-saber, pelo paradigma da aprendizagem, baseado na relação aprendente-saber (Houssaye, 2004), a instituição escolar mostra-se pouco permeável a tais propósitos.
Refém do seu próprio autismo, ela quer manter-se inalterada, não admitindo dúvidas acerca do que continua a considerar o seu papel principal: formar quem não está formado, educar quem não está educado, utilizando padrões de normalização. A este respeito, Albert Jacquard (1991) assinala o que considera ser a diminuição da palavra éduquer (educar). Argumenta que educere, ou “levar a pessoa para além de si própria”, se degradou para educare, que significa alimentar.
A escola alimenta, à força. Fiel à educação bancária (Freire) remete as crianças para um papel de receptor. Em muitos casos, o que recebem não é questionável.
Não entra no horário da escola o trabalho intelectual, nem a liberdade intelectual para conduzir projectos, em grupo. Não enquadrado por quem transmitiu, em primeiro lugar, a informação a ser trabalhada, fica o aprendente entregue a si próprio, eventualmente apoiado pela família para armazenar conhecimento depositado.
A naturalização da escola ao longo do último século (Canário, 2005) aplica-se também à forma escolar; a via transmissiva levou a aprendizagem a ser considerada um acto formal que depende de quem ministra aulas e deposita saber. Qualquer actuação de um agente da instituição que se desvia desta forma escolar naturalizada constitui um desvio do esperado, pelo que a primeira reacção de pais e mães é de estranheza, de preocupação ou de recusa de uma forma de trabalho que não corresponde ao padrão considerado universal. Em determinadas situações, a rejeição dificulta, em muito, o diálogo.
Quem ensina a ler e a escrever a adultos analfabetos ou pouco letrados, que em criança já tiveram contacto com a escola formal, sabe como os próprios aprendentes procuram reencontrar rotinas didácticas da escola, chegando mesmo a propor cópias e ditados como exercício, assumindo a “culpa” de não terem aprendido por não terem estado atentos quando o professor “dava matéria”. O mesmo acontece com pais e mães relativamente aos filhos. Tudo o que não lhes parece identificável com a escola normativa, transmissiva, castradora e escravizante – associada à ideia de escola séria – é considerado desperdício de tempo. A exigência não é de esforço intelectual, é de escuta exaustiva e trabalho repetitivo.
Comunidades de aprendizagem
As crenças do senso comum, em torno da naturalidade da escola, dos adultos em geral, dos pais e das mães em particular, obrigam à desocultação da prática pedagógica centrada sobre a participação activa dos aprendentes no seu próprio processo de aprendizagem.
Legitimamente preocupados com o desenvolvimento dos seus filhos, pais e mães procuram perceber como estes vão gradualmente gerir o seu trabalho. Uma forma interessante para o mostrar, é de os envolver, situando a acção pedagógica no campo da intervenção e acção na e com a comunidade.
Muito do trabalho desenvolvido na sala de aula, como o que desenvolvemos em equipa pluridisciplinar, nos bairros e nas escolas inseridas em zonas de intervenção prioritária, tem este pano de fundo.
Outurela, 1998-2008
A equipa com quem trabalhei na então escola de Outurela-Portela escolheu por diversas vezes escutar as crianças para desenvolver projectos de estudo e, nalguns casos, de intervenção. Surgiu assim um estudo sobre os perigos da estrada em frente à escola, conduzido por duas turmas de crianças com 7-8 anos (de 2º ano de escolaridade), que levou a um documento dirigido ao poder local, propondo a instalação de passadeiras e passeios em condições, para peões, concretizada um ano e meio depois. Um trabalho prolongado, envolvendo cartas aos homens e às mulheres políticos locais e nacionais faz com que as crianças percebam que elas próprias, agindo na comunidade, exercem actividade política. E cada nova acção que têm entre mãos é apresentada aos pais e às mães.
Um novo projecto centrado sobre alguns temas ecológicos e sobre a evolução da espécie humana, que ocupa duas turmas durante 3 meses, leva a uma exposição e um conjunto de apresentações aos pais do bairro, que pela primeira vez se mostram interessados em participar, questionando e discutindo a partir do seu conhecimento os temas apresentados. O próximo estudo será sobre as origens de cada um, em que se reúne informação sobre a migração interna e externa, abrangendo novamente duas turmas e em que se descobre que todos, inclusive um dos professores, têm as suas raízes longe do sítio [lugar] onde actualmente vivem e trabalham.
A apresentação deste novo trabalho aproxima os adultos que mais uma vez se tornam ouvintes atentos do que as crianças têm para contar. Nasce uma associação informal de pais e mães que começam a participar activamente, no seio do Conselho Pedagógico, mas também no apoio a novos projectos dos seus educandos.
Uma das turmas lança-se numa investigação-acção de solidariedade com mulheres afegãs (estamos em 2000), com o objectivo de co-financiar uma escola clandestina de aldeia. As crianças produzem um documento que relata a sua intervenção activa para os direitos da criança e publicam-no. Os lucros são para as mulheres afegãs. Para a venda do caderno, colaboram activamente dezenas de mães.
Quando as crianças formulam o desejo de se encontrar com os seus correspondentes belgas, pais e mães do bairro, mas também pais e mães da escola belga organizam-se para apoiar as crianças na concretização de mais este projecto. Durante todo o ano lectivo, a preparação, a viagem e os relatos são acompanhados, em reuniões mensais primeiro, quinzenais depois, sempre dirigidas por crianças, nas quais a turma recebe pais e mães e discute com os adultos o andamento do projecto.
A reorganização administrativa da escola, inserida numa instituição maior, impossibilita o trabalho informal e de proximidade construído ao longo de quatro anos. Contudo, depois de um intervalo de um ano, três turmas voltam a propor um trabalho de intervenção, desta vez sobre os espaços exteriores da própria escola, há muito degradados. O projecto abrange toda a comunidade escolar e resulta em mais uma proposta para o poder local. A insistência durante dois anos fez com que a escola seja informada de que o projecto de requalificação se fará e terá em conta algumas das sugestões das crianças. Começado em 2006, aguarda-se para 2010 o início desta mesma requalificação. Entretanto, por duas vezes, duas turmas organizam alguns dias de trabalho de campo em outras regiões de Portugal, envolvendo mães e familiares na preparação e no acompanhamento das estadias.
Com os pais e as mães novamente interessados pelo trabalho, uma das turmas procura envolvê-los num estudo alargado acerca dos três bairros em redor da escola, inquirindo pontos fracos e pontos fortes dos três núcleos de habituação, sugerindo algumas alterações necessárias. Este trabalho é novamente comunicado ao poder local.
Depois de Outurela
Actualmente, colaboro em vários projectos de acompanhamento de escolas, em zonas de intervenção prioritária, onde fui encontrando colegas de equipa que percorreram caminhos parecidos, a partir da constatação de que um trabalho comunitário dentro e em torno das escolas faz pessoas protagonistas de processos em vez de reféns da instituição.
Uma participação, no projecto K’CIDADE, em várias zonas da Grande Lisboa, com equipas de professores de actividades peri-curriculares e com grupos de pais formalmente ou informalmente organizados, ensinou-me como é possível que a gestão destas mesmas equipas seja gradualmente transferida para os próprios pais e mães, logo que para tal manifestem o desejo.
Ainda em outro contexto, e trabalhando com mediadores locais, procurou-se encontrar soluções que permitam que normas culturais, muito estritas e severas, deixem de impedir que as meninas tenham acesso ao saber, o que neste caso específico passa inevitavelmente pela sua presença na escola. O processo, co-liderado pela própria comunidade com a qual se trabalha, permite procurar a co-existência entre marcas culturais próprias e um conceito moderno de plena integração como cidadão activo, contrariando o senso comum, alimentado pela superstição, fruto da ignorância.
Em todo o trabalho [3] estão presentes três focos de atenção: (1) perceber, como actor envolvido, o meio no qual a acção se situa, (2) dar sentido ao processo de aprendizagem, através de trabalho autónomo, gerido em cooperação, e centrado sobre o desenvolvimento de projectos e (3) entender a percepção que os outros actores demonstram ter acerca da instituição na qual se situam as relações e interacções.
Notas
[1] Proposta pedagógica que confere ao grupo em formação – crianças ou adultos – o poder instituinte. O grupo escolhe os seus projectos de trabalho, organiza a regulação dos mesmos, como a própria regulação do grupo, sempre acompanhado pelo professor ou formador. Ver Martin, Meirieu, Pain (2009).
[2] Ver Houssaye, Jean (1996) acerca de Oury, Niza e Freire, entre outros.
[3] Ligações para relatos de prática em http://pascalpaulus.wordpress.com/
Referências bibliográficas
Canário (2005). O que é a escola? Um olhar sociológico. Porto: Porto Editora.
Houssaye (org.) (1996). Pédagogues contemporains. Paris: Armand Colin.
Houssaye (2004). “Pedagogia: justiça para uma causa perdida?” in Houssaye, Soëtard, Hameline e Fabre: Manifesto a favor dos pedagogos. São Paulo: Artmed.
Jacquard (1991). Voici le temps du monde fini. Paris: Seuil.
Martin, Meirieu e Pain (2009). La pédagogie institutionnelle de Fernand Oury. Paris: Matrice.
Paulus (2004). “Uma questão de opção… curricular.” in Escola Moderna 5ª Série, nº 20. Lisboa: Movimento da Escola Moderna
Paulus (2005). Os pais na escola. http://www.freewebtown.com/pascalcorner/textos/paisescola.htm consultado em 29.09.2009
Desde Argentina un abrazo grande!
Wxcelente la nota.
Ola!tudo bem adorei seu modo de educar,mais nao sei o que fazer para meu filho aprender a ler e a escrever tenho muita dificuldade para ensina lo o que debevo fazer muito obrigado beijooooss claudia
Claudia,
Veja a documentação relacionada com a pedagogia institucional e com o movimento da escola moderna de portugal (movimentoescolamoderna.pt) Talvez encontre mais pistas de trabalho. Um abraço
Pascal