Por Isadora de Andrade Guerreiro
A pandemia da COVID-19 parece aprofundar, em cada lugar por onde passa, latências sociais e políticas já instaladas. Pelo seu grau de espalhamento da catástrofe, acaba explicitando desigualdades previamente constituídas. A quarentena – que exige um foco no corpo e deste no espaço socialmente construído – tem gerado, desde que chegou ao Brasil, muitas discussões acerca da desigualdade das condições urbanas das cidades, que remete às desigualdades sociais profundas as quais estamos submetidos, desde o ponto de vista das relações de produção, até outras várias formas de dominação.
Quando falamos das lutas, no entanto, precisamos estar atentos não apenas à constatação de que “faltam” condições urbanas, bem como “faltam” condições de trabalho a uma parcela da população. É importante analisar as relações particulares que produzem e mantém a desigualdade, que impediam, antes da COVID-19, territórios populares (já) sitiados de construir reflexão e significado próprios sobre suas necessidades particulares e colocar em prática uma ação autônoma frente a elas. Pois a noção de “necessidade” só está ligada à “falta” na medida em que um arcabouço externo do que é necessidade é deslocado de uma relação social a outra, a dominando. Assim, a falta (sem aspas) de trabalho qualitativamente necessário para produzir determinado modo de vida é substituída pela “falta” de emprego e salário – categorias próprias ao modo de vida dominante. A falta de terra para construir autonomia de vida é substituída pela “falta” de habitação (o famoso déficit habitacional, que por isso mesmo é uma categoria ideológica). O discurso da “falta” é, nesses casos, bastante útil à permanência da dependência – cujos arautos sempre terão um menu de “soluções” que, evidentemente, apenas aprofundarão as condições de sua dominação.
No Brasil, os diversos territórios populares urbanos tem uma formação muito própria, que remete tanto ao quadro específico de espoliação estrutural do nosso desenvolvimento, quanto à organização coletiva dos trabalhadores para uma vida cotidiana não apenas nos limites do possível dentro da precariedade, mas com importantes aspectos de autonomia. Na década de 1970, vários autores brasileiros se debruçaram sobre a questão da espoliação (em particular Lúcio Kowarick), sendo ela descrita como parte da dependência ante ao centro do capitalismo, que transferia (e transfere) permanentemente as riquezas aqui produzidas, conformando uma dinâmica de acumulação baseada na impossibilidade de reprodução dos trabalhadores através do salário: desta maneira, a autoprodução do território faria parte da formação do caráter próprio da nossa classe trabalhadora, para além da clássica formação do exército industrial de reserva. A espoliação urbana, nesses termos, não poderia ser encarada como “atraso” ou “falha” de percurso (o discurso da “falta”), na medida em que ela é elemento condicionante do nosso desenvolvimento. André Gunder Frank chamou esse processo de “Desenvolvimento do Subdesenvolvimento”.
Ao mesmo tempo, tal espoliação urbana não foi realizada dentro de campos de concentração, que a controlariam. A autonomia popular sempre foi peça importante desta dinâmica, tornando-a sempre uma faca de dois gumes, em disputa e, a depender da conjuntura, mais ou menos regulada ou gerida – por isso é difícil falar em “informalidade”, na medida em que a “forma”, a “norma”, no nosso caso, inclui dentro dela mesma a exceção (como elemento que a funda e mantém). Assim, a autonomia está presente em formas específicas de sociabilidade, produção e arranjos espaciais próprios aos modos de vida populares: mutirões, terras comunais, quintais coletivos, hortas, terreiros, espaços de festa, de encontro, de comércio popular e trocas, além também da potência das redes de solidariedade e reivindicação – tudo bastante imerso em contradições, o que demonstra a riqueza e a potência dessa dinâmica.
O trabalho despendido na produção desses territórios e nas suas lutas é, portanto, fruto da contradição permanente entre a autonomia e a dependência – perpassados pelo enfrentamento acerca do que é e do que não é necessidade. Desta maneira, tais territórios estão em constante disputa por forças heterônomas, que buscam reforçar os laços de dependência, frisando mais o aspecto de “falta” presente no que entendem por necessidade – que sempre tem um parâmetro externo – do que no que tal necessidade tem de especificidade, aspecto que a conecta à autonomia. O olhar para os territórios populares apenas a partir da noção de carência, de “falta”, parece mais ser dispositivo para objetivos de classe do que uma visão inequívoca da “realidade”. Na conjuntura presente, precisamos ficar atentos a esse discurso de que a “falta” de condições urbanas “civilizadas” é motivo de alastramento da COVID-19 – na medida mesma em que as próprias relações “civilizadas” foram o seu meio de disseminação nessas proporções.
Não estou dizendo que não seja uma preocupação a falta de saneamento e de moradia. Quero apenas ressaltar que há elementos importantes na autonomia popular que podem ser acionados – e, pensando na mobilização para as lutas, precisam ser ativados e renovados – justamente para dar respostas próprias que fortaleçam as comunidades em contraposição à sua dependência, que as mantêm presas à certa ação estatal (que acaba regulando a espoliação) ou a regimes privados variados – de organizações da sociedade civil a políticos, lideranças populistas, máfias ou facções. O discurso da “falta” acaba se transformando em dispositivo para a ação dessas forças da ordem, e precisa ser contraposto à ação direta de organização dos territórios – cujas necessidades não podem ser categorizadas apenas pelo elemento da “falta” (que remete a um “ideal” de outra classe), mas devem também ser entendidas como elementos próprios a modos de vida que confrontam a normalização “civilizatória” do capital. Tais sociabilidades e suas formas de luta, desta perspectiva da “falta”, precisam ser eliminadas, pois trariam desgraça não apenas para a população diretamente envolvida, mas para toda a “cidade de bem”.
Não é demais lembrar que as grandes reformas urbanas em todo o mundo sempre passam de uma maneira ou de outra pelo argumento higienista – as que implantaram a forma urbana moderna, desde o último quarto do século XIX até o início do XX, depois as reconstruções pós-guerra e, por fim, as espetaculares revitalizações pós-modernas. Nas primeiras, o higienismo serviu de justificativa para a limpeza social, que abriu os centros das grandes cidades europeias para o urbanismo moderno e sua razão devastadora – bastante propícia aos ganhos imobiliários e políticos, na medida em que criavam uma ordem urbana controlada pela métrica do capital, cujos espaços eram de difícil apropriação pelas lutas populares. Paris é o caso mais paradigmático[1], aonde as reformas do Barão de Haussmann vieram livrar a cidade das intrincadas ruas medievais que permitiram as barricadas de 1848 mas, em seguida, foram também o estopim para a retomada da cidade por aqueles que foram expulsos, construindo a Comuna de Paris (1971). As reformas da Ringstrasse de Viena também, na mesma linha, foram alvo de críticas não apenas dos românticos medievalistas, mas também daqueles (como Carl Schorske[2]) que viam naquele aparato de transformação urbana algo sobre a ascensão de sentimentos antissemitas – que em seguida tomariam a Europa de assalto.
As reformas urbanas da segunda metade do século XX também se basearam no argumento da “falta” – principalmente de habitação. Reitero: não estou dizendo que isso não tinha base na realidade. Chamo a atenção ao fato de que a construção da narrativa da “falta”, quando se coloca ideologicamente na sociedade, traz elementos do real para justificar interesses de classe. Os grandes conjuntos habitacionais modernistas, promovidos principalmente pela ação estatal em todo o mundo, foram base para o amoldamento de modos de vida populares à razão “civilizatória” do capital, que conformou as mais diversas subjetividades, sociabilidades e modos de produção ao advento do trabalhador como capital variável, peça de máquina, o limite do funcionalismo. Não é para se esquecer de que Le Corbusier, o maior difusor da arquitetura modernista no mundo, no seu livro-manifesto “Por uma arquitetura”, terminava com a exortação: “Arquitetura ou Revolução. Podemos evitar a Revolução”.
Entre os brasileiros, vale lembrar que isso tem significados sempre mais áridos: a solução militar, os conjuntos do BNH e a ideologia da casa própria são a maior prova de até aonde vai o argumento da “falta” de habitação para a desmobilização e controle da população – que, diga-se de passagem, teve suas condições habitacionais extremamente pioradas o período, dado que sua “falta” de habitação serviu para que a classe média a tivesse, jogando os mais pobres para lugares mais periféricos. Um típico procedimento ideológico. Importante, mais uma vez, é lembrar que a organização da população cuja falta (aqui sem aspas) de terra (pois o habitar é mais do que quatro paredes) era real, levou à importante fase de construção de movimentos populares de promoção de autogestão na construção habitacional – um fortalecimento de potências presentes na sua sociabilidade que se renovaram com a disputa pelo fundo público num período histórico específico, compondo uma mobilização popular gigantesca que fundou nossa última democracia. As contradições deste processo são outro capítulo, que posso discutir em outro momento.
Mais recentemente, o século XXI inventou os Grandes Projetos Urbanos (GPUs), os herdeiros 2.0 da longa história da transformação urbana sob o capitalismo. Os formatos diferentes mal escondem seu cerne: longe do “Estado mínimo”, o aparente enaltecimento da iniciativa privada na reestruturação de grandes áreas urbanas, na verdade, é a mais nova Tecnologia Social, a parceria público-privada, que conecta a produção, circulação e uso do espaço urbano local às finanças mundiais. Um elemento fundamental dessa forma de produção urbana é a capacidade de conectar escalas por meio de redes de informação e circulação de recursos, que basicamente centralizam e normatizam dinâmicas dispersas e muitas vezes desmonetizadas ou fora do controle estatal. No chão, tal sistema necessita de agentes de gerenciamento social e difusão de uma forma específica de reprodução da vida dependente. A heteronomia aqui é perversa, pois se esconde atrás de uma aparência salvadora – a redenção da “falta” –, inserindo a subsunção a modos urbanos gerenciáveis e geradores de rendas centralizadas e, depois, securitizadas. Falei um pouco sobre uma face desse processo na última coluna.
No nosso contexto, o microgerenciamento popular é extremamente importante para esta forma financeira de reprodução urbana, pois conecta de maneira dependente, com escala, o local ao global. A crise pandêmica é uma grande oportunidade dessas redes se fortalecerem. Ela joga abruptamente o foco das ações políticas e econômicas para o território onde as pessoas estão em quarentena. Estamos num momento da pandemia no Brasil no qual está se organizando qual a melhor forma de renovar e aprofundar o cerco (sitiar) esses territórios. O governador de São Paulo acabou de decretar o uso da PM para o controle de comércios e aglomerações e, em vários casos relatados, tal ação está concentrada em territórios populares – em particular os mais vulneráveis, ou seja, com dificuldade de auto-organização. As ruas dos bairros populares estão tão cheias quanto antes – pois a forma de sociabilidade ali é diferente dos bairros de classe média, bem como as condições de isolamento dentro de barracos são complicadas. Onde precisará de controle externo? Aí está uma receita com futuro macabro: o discurso da “falta” urbana, a criminalização da sociabilidade popular e a ação de gerenciamento através de redes de entidades sociais – que precisam sempre de representantes locais, vozes que expressam o que é e o que não é “falta”, constroem a necessidade popular por meio da tradução com as necessidades de outras classes.
Não me parece necessário reiterar sobre as desigualdades das condições urbanas do nosso país e a enorme potência de alastramento da pandemia entre nós. Quero chamar a atenção, no entanto, para a semelhança dessa “oportunidade” para o vírus e o lugar que a espoliação tem no desenvolvimento capitalista brasileiro. A expansão de oportunidades de captura dos modos de vida em direção aos mercados é imensa e, de maneira mais preocupante, passa por “soluções” que parecem cada vez mais possíveis de serem compostas em conjunto: políticas públicas, gestão centralizada e militarizada do território (pública, privada ou “comunitária”), parcerias com entidades sociais. Estamos vivenciando uma disputa política no combate à COVID-19 entre formas de gestão da cidade (permanentemente) sitiada – formas como será exercida a heteronomia, que aparece como consensual para a saída da crise.
Nesta dinâmica, não basta explicitar as “faltas” dos territórios populares brasileiros, mas aguçar a percepção sobre as narrativas que se criam em cima delas, aonde querem levar, quais seus interesses. Gostaria assim de, antes de falar das “faltas” – que geram “soluções” –, falar da enorme dificuldade para a organização política autônoma que os territórios populares passam nos últimos anos, atravessados pela generalização da competitividade, da gestão e da indiferenciação de forças heterônomas entre o poder público, a milícia, o crime, as entidades sociais e, muitas vezes, seus representantes de classe. Como se organizar no meio dessas disputas que, muitas vezes, têm objetivos confluentes? Como diferenciar autogestão de empreendedorismo? Como centralizar esforços de cuidado coletivo sem utilizar – ou utilizando de maneira soberana – o enorme aparato que estas forças montaram nesses territórios nos últimos anos? A pandemia aprofundará a dependência deles às formas variadas de extração de riqueza ou, por outro lado, mostrará os limites históricos de amoldamento popular a esta forma de vida? O que se coloca para as lutas populares no momento, me parece, é construir as possibilidades de organização autônoma a partir da nossa realidade específica, que tem dificuldades e potencialidades próprias, ou seja, construir reflexão e prática histórica acerca do que são as nossas necessidades, não as “faltas” que outros procuram “solucionar”.
Notas:
[1] David Harvey escreveu longamente sobre todo este processo em “Paris: Capital da modernidade”.
[2] SCHORSKE, Carl. Viena fin-de-siècle: cultura e política. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Companhia das Letras, 1990.