Por Isadora Guerreiro
Nas últimas semanas muitas pessoas têm me perguntado sobre o que acho das cooperativas de entregadores por aplicativo como forma de luta e organização. Meu histórico é relacionado à autogestão na produção de moradia, que remonta à fase de redemocratização e que se transformou ao longo dos últimos 30 anos. Uma das questões a qual me dediquei quando me afastei destes processos foi buscar compreender seus ensinamentos e transformações como dinâmicas históricas às quais eles fazem parte. Desta maneira, aprendi que não há uma resposta objetiva sobre eles – pois eles não são bolhas, como muitas vezes parecem, mas, pelo contrário, estão diretamente relacionados à conformação social na qual estão inseridos. Falar sobre eles é, também, falar sobre esta conformação.
São, antes de tudo, experimentações que, como tais, envolvem momentos de enfrentamento, compreensão das relações sociais mais amplas, correlação de forças, tentativas de transformação de processos, amoldamentos, fracassos, conquistas… ou seja, são formas que, antes de “darem certo” ou “darem errado”, dizem respeito às possibilidades de conhecimento e intervenção na realidade concreta para além de fórmulas prontas (seja pela institucionalidade, seja pela história pregressa ou por outras formações sociais). Por isso é também difícil dar algum diagnóstico prévio ou fazer comparações com outras lutas, que tiveram seu contexto próprio, principalmente no que concerne ao estatuto histórico do trabalho – e que agora se transforma radicalmente. De qualquer maneira, este texto não pode ser considerado um prognóstico, muito menos um manual, mas tão somente uma contribuição ao debate, com muitas limitações.
A retirada do intermediário: a questão “do” capitalista
Depois do #BrequeDosApps começaram a aparecer notícias de cooperativas de entrega por aplicativos seja em outros países, seja por aqui mesmo. Antes de saudar tais experiências de organização da classe com adjetivos positivos ou negativos, é importante entendê-las como um passo, o primeiro, de um longo e árduo processo de experimentação política por meio do trabalho, que é sempre historicamente determinado. Portanto, é importante olhar para elas não a partir da sua face de trabalho abstrato e indefinido, que poderia ser comparável a qualquer outro da tradição industrial, pois se trata de algo muito específico: um serviço, cuja organização das relações de trabalho está vinculada ao que tem se chamado de “uberização”, ligado à circulação financeira, que faz parte de uma dinâmica de consumo própria a um modo específico de vida urbana – no qual, portanto, a cidade é elemento central, não apenas como “chão de fábrica” (numa aproximação simplista). São, portanto, muitas camadas a serem politicamente percorridas, para as quais a formação de cooperativas pode ser um primeiro passo, e precisa ser aprofundado politicamente se não quiser ser rapidamente engolido por um setor marcado pela dinâmica oligopsônica [1].
A fundação de uma cooperativa significa um rompimento com “o” capitalista, mas não necessariamente com o capitalismo. Para tanto, o caminho é muito maior e depende de uma grande escala de organização (que ao mesmo tempo preserve a descentralização), suficiente para se apresentar como alternativa concreta no mercado. Se isso não acontece, a dinâmica da concorrência faz com que, para sobreviver, as cooperativas ou se amoldem às relações de produção capitalistas, ou dependam da proteção do Estado (se amoldando à sua forma). Aquelas que não se adaptam e/ou não criam redes de proteção têm muita dificuldade de sair da situação limite de gestão da miséria, que acaba por inserir relações perversas dentro do processo político e de trabalho, não raro gerando situações de autoexploração, periculosidade no trabalho, hierarquização, burocratização, introjeção da competitividade, entre outros.
O rompimento com “o” capitalista pode estar, no plano imediato, servindo como maneira de construir melhores condições de trabalho e autonomia decisória – com um desejo real de receber melhor sem o intermediário. No caso dos entregadores, romper com as empresas que monopolizam o mercado pode ser importante para se afastar da métrica financeira que determina as relações de trabalho no setor. No entanto, como dito anteriormente, as cooperativas não são bolhas: participam de um setor econômico determinado por regras de concorrência próprias, que regulam indiretamente as relações de trabalho. Com o passar do tempo, se novos passos políticos não são dados, elas tendem a perceber que “o” capitalista é apenas uma personificação de um sistema do qual elas fazem parte.
A maior perversão é a cooperativa se transformar numa empresa igual as demais, com os trabalhadores introjetando a lógica capitalista e fazendo, eles mesmos, o que antes os “patrões” faziam. A experiência pode se transformar numa forma de participar da “festa” com nicho de mercado próprio, cuja imensa fragilidade pode levar a negociações privadas que rondam formas mafiosas de organização.
Transformações nas relações de produção
Para ter um fim diverso, a experiência política não pode, portanto, cessar na fundação de uma cooperativa e dispensa “do” capitalista. Um segundo passo precisa ser a transformação das relações de trabalho a partir das suas condicionantes concretas. No caso dos entregadores por aplicativo, duas discussões precisam ser aprofundadas: a mais imediata, sobre o controle do trabalho realizado pelos algoritmos de um aplicativo; e a segunda, sobre a uberização como forma ampla de rearticulação do mundo do trabalho. De maneira objetiva, é importante, politicamente, não apenas:
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- Ter a propriedade da plataforma de entregas, mas também intervir sobre o algoritmo, reestabelecendo o controle direto e coletivo sobre as relações de trabalho, cujo objetivo não pode ser apenas o maior ganho, mas sim as suas melhores condições de execução para os trabalhadores. Esta intervenção é permanente, pois advém dos elementos concretos trazidos pela prática do trabalho coletivizado numa situação específica. Delegá-la, seja para patrões financeiros, seja para “coletivos do bem” externos, interrompe de saída a experiência autogestionária, que não é capaz de se reinventar a partir da própria prática;
- Intervir no algoritmo, mas também criticar o próprio controle autonomizado (separado) sobre o trabalho, que está na divisão do trabalho intelectual (de quem mexe no algoritmo) do manual (de quem faz a entrega), mas também na divisão de quem usa a tecnologia (a cooperativa) de quem a produz (Google, Apple, Windows e por aí vai). Nesse sentido, é importante uma rede orgânica de profissionais ligados à tecnologia dispostos não apenas a fornecer seus serviços, mas a abri-los, compartilhá-los e transformá-los na sua manipulação cotidiana junto aos trabalhadores na ponta, fora da lógica do controle sobre o trabalho;
- Alterar todos esses meios, mas também questionar o trabalho “sob demanda” e individualizado, com tendência à monopolização e geração de rendas financeiras, sem relação direta entre quem faz, quem recebe e quem contrata o serviço, sem reestabelecer os nexos do trabalho no mundo social, que acaba naturalizando relações de produção, circulação e consumo extremamente danosas.
Não se propor a estas transformações faz com que, mais uma vez, a formação de cooperativas seja apenas a criação de mais um CNPJ que, inicialmente, pode ser um “patrão do bem”, mas que, num curto período de tempo, volta a se adaptar às mesmas condições anteriores – com o adendo perverso de se dar pela própria mão dos trabalhadores organizados. Podem se transformar em sementes de muitas formas de populismo ou, pior, manutenção de nichos privilegiados de mercado de consumo “do bem”, glamourizando os bicos de sempre por meio da política – que vira etiqueta de marca, valorando um trabalho que não difere, em essência, daqueles que permaneceram vinculados às grandes plataformas.
Salário e propriedade dos meios de produção
Para questionar politicamente o trabalho uberizado é necessário, de um lado, o aprofundamento de seu entendimento por todos nós e, de outro, a experimentação de formas alternativas e auto-organizadas de trabalho que levem em conta suas determinações históricas. Não me parece promissor combatê-lo como se combatia os desvios à CLT, pois se trata de uma transformação profunda na forma do trabalho que não se resolve implantando formas antigas de trabalho à força – como se estas fossem boas para o trabalhador e como se a forma de reprodução do capital fosse a mesma que antes.
Quando a reprodução do capital se dava predominantemente por meio dos lucros industriais, o entendimento sobre a geração e captura da mais-valia como tempo não pago aos trabalhadores gerou as lutas sindicais. Nelas, o fundamento do embate estava na diminuição desta parte não paga, o que colocava as lutas salariais no centro das mobilizações – inclusive daquelas direcionadas ao Estado, que poderia proporcionar o tal “salário indireto” por meio de políticas públicas. A autogestão, neste mundo, questionava as diferenças salariais e, até certo ponto, a maneira como a forma salário achatava as diferenças de necessidades entre os trabalhadores.
Como construir a autogestão num contexto de acumulação predominantemente fictícia, na qual os rendimentos do trabalho não têm mais, em grande medida, a forma salarial? Por “forma salário” estou entendendo aqui o preço da força de trabalho, que tinha alguma vinculação de origem com os seus custos de reprodução socialmente determinados – ainda que na América Latina isso nunca tenha acontecido, o mecanismo de baixos salários teve seu papel na implantação capitalista por aqui.
A uberização joga – ou gostaria de jogar – esses conceitos por terra. Eu gostaria aqui de colocar uma hipótese, da qual não tenho certeza (não sou especialista no tema), mas que pode contribuir para o debate em torno da questão, vinda de alguém que estuda formas de rendimento do urbano. Pois me parece difícil caracterizar os rendimentos do trabalho dos “colaboradores” uberizados puramente, ou totalmente, como salário, nestes termos acima expostos. O contrato estabelecido entre eles e o aplicativo não passa pela precificação do tempo de trabalho[2] e não se relaciona – nem na sua origem – com os custos de reprodução da força de trabalho[3]. Pois não se trata de empresas que almejam o lucro, mas funcionam como centralizadoras e direcionadoras de rendas para o mercado financeiro. Seu modelo de funcionamento me parece ter essa métrica: ao ter que pagar determinados juros aos investidores, uma porcentagem dos seus ganhos é direcionada aos trabalhadores. É uma conta inversa: não importa quais são os custos de reprodução da força de trabalho, nem mesmo os custos diretos com o serviço, mas a porcentagem que pode-se gastar nisso.
Parece-me que os rendimentos do trabalho ligados à uberização, nestes termos, estão muito mais relacionados a uma parte das rendas de propriedade: seja de bens móveis, como carros, motos e bicicletas (nos aplicativos de mobilidade) ou ainda bens imateriais, como produtos educacionais (no caso de professores “on demand”). Não seria exatamente o tempo de trabalho que estaria sendo remunerado (característica da forma salário), mas a possibilidade do serviço ser realizado – o que depende da propriedade de instrumentos de trabalho (moto/bicicleta e celular com internet) e dos meios para realizá-lo (acesso ao aplicativo).
Essa relação se parece muito mais com renda do que com salário. O trabalho, nesses casos, é o mecanismo de valoração da propriedade, é o que a traz à “vida”, à produtividade para o capital – como na Renda da Terra (Seção VI do Livro Terceiro d’O Capital de Karl Marx). Em uma ponta, os “colaboradores”, por meio do seu trabalho, capturam parte da renda proporcionada pela propriedade do instrumento de trabalho; na outra ponta, os investidores capturam parte da renda proporcionada pela propriedade do meio de trabalho – o aplicativo, que centraliza e canaliza as rendas de muitas propriedades dispersas. Não é à toa que se confundem donos de start-ups e “colaboradores”, ambos como empreendedores. O trabalho – concretamente existente – parece se perder no meio do processo na medida em que não produz mercadorias, nem lucro, mas apenas aciona rendimentos de propriedade, como se fosse uma máquina.
Outra hipótese que é levantada sobre a uberização tenta aproximá-la do que Marx definiu como “salário por peça” (Cap.XIX, Seção VI do Livro Primeiro d’O Capital). Estariam nesta categoria os rendimentos do trabalho associados à venda da mercadoria final (produto ou serviço), chamado popularmente de “pagamento por empreitada” ou “por produção”[4]. Muitas semelhanças aproximariam esse conceito da uberização: a flexibilidade de horário de trabalho, o distanciamento “do” capitalista, que não detém necessariamente a propriedade dos meios de produção (que remete à noção atual de empreendedorismo), a maior liberdade de controle do processo produtivo ou da forma da prestação do serviço etc. Apesar das semelhanças, tenho dúvidas sobre essa aproximação, na medida em que nesta categoria ainda é possível falar de salário[5]: não como vinculação contratual com o dono dos meios de produção, mas como preço ou valor do tempo de trabalho embutido na mercadoria final.
No caso da uberização, me parece que esta vinculação se perde por completo: o preço do seu serviço não tem nenhuma relação com o valor de reprodução da sua força de trabalho, mas com os juros a serem pagos aos investidores do aplicativo. O preço de cada corrida é flutuante, e pode variar ao longo da própria corrida. A “conta” embutida no algoritmo do aplicativo não parece levar em consideração nem mesmo os custos diretos para a prestação do serviço, ou seja, existe a possibilidade de se chegar a um limite dela não ser viável – situação na qual o aplicativo simplesmente se desloca para outro lugar do mundo.
Assim, a hipótese de que os rendimentos do trabalho, no caso da uberização, são, na verdade, renda derivada das possibilidades de prestação de serviços ligadas à propriedade dos instrumentos de trabalho, pode ajudar aqui na discussão sobre as lutas no setor, sejam as reivindicativas, sejam as possibilidades de autogestão. Para as lutas reivindicativas, melhores condições de trabalho com melhores rendimentos, no caso, não adviriam de reivindicações próximas ao simples “aumento salarial”, mas da vinculação das taxas pagas aos entregadores com dados da realidade do setor: preço do combustível, manutenção do instrumento de trabalho, preço do tempo de trabalho pré-contratuado – ou seja, pressão para que as determinações das relações de trabalho sejam relevantes na parte da renda que cabe aos trabalhadores. Para as experimentações autogestionárias, valeria a pena investir nas possibilidades de coletivização dos instrumentos de trabalho (motos e bicicletas coletivas) – o que interviria na figuração do empreendedor individual, na capacidade maior de captação de renda, coletivização de custos e problemas de manutenção e possibilidades de ausência remunerada de trabalhadores (saúde, maternidade, férias), cobertos pela força coletiva de trabalho.
O urbano como última fronteira
Por fim, mas não menos importante, o último passo para se pensar as lutas relacionadas à uberização é a consideração de que, no caso dos aplicativos relacionados à mobilidade, a renda gerada não é apenas da propriedade do instrumento de trabalho, mas do uso da cidade. As rendas derivadas do fluxo urbano podem gerar cidades não apenas desiguais, mas também inviáveis para se viver – seja do ponto de vista do aumento dos custos de reprodução da vida, seja da monopolização dos acessos, ou ainda da combinação entre áreas de difícil acesso e baixa capacidade de consumo.
A autogestão no setor da mobilidade não pode se preocupar “apenas” na sua autossuficiência num mercado marcado pelo oligopsônio, ou na transformação das relações de trabalho internas ao setor, o que já seria bastante… Se ela não tiver em vista a reapropriação do urbano como produção da vida em comum, poderá acabar contribuindo para desigualdades que inviabilizarão não só a sua existência, mas os modos de vida populares. As mudanças nas relações de produção precisam ter como objetivo a reapropriação dos produtos do trabalho pelos trabalhadores – e aqui a mobilidade não se separa do uso da própria cidade. Por isso, a autogestão na mobilidade é a única forma de inverter prioridades do setor, atendendo quem não é atendido, dando acesso a quem não tinha, proporcionando poder a quem não o detinha. Num momento como esse de pandemia, por exemplo, poderia proporcionar segurança no transporte àqueles que mais precisam (os trabalhadores que usam transporte público), ou ainda proporcionar isolamento maior aos que não conseguem por ter que se deslocar para consumir. A partir desse horizonte alargado, o interesse político pelas cooperativas pode começar a avançar para além das experiências anteriores, numa outra fase das relações de trabalho.
Notas:
[1] Oligopsônio, neste caso, quer dizer que existem poucas empresas de aplicativo que compram o serviço de muitos entregadores, conformando um setor de concorrência protegida, de difícil acesso para novos atores.
[2] “Portanto, inserido em uma relação despótica, o trabalhador trabalha sem saber como, por que e quando receberá o trabalho; sem saber como é definido o valor de seu trabalho. Está submetido a regras onipresentes mas ao mesmo tempo obscuras, cambiantes, não negociáveis. Vive em um exercício de adivinhação permanente, arcando com riscos e custos, sem ter mínimas garantias sobre tempo de trabalho ou remuneração” (ABÍLIO, Ludmila Costhek. Breque no despotismo algorítmico: uberização, trabalho sob demanda e insubordinação. Blog da Boitempo, 30 de julho de 2020, disponível aqui).
[3] O PL 3728/2020, de Tábata Amaral (PDT), propõe fazer esta vinculação, a partir do valor-hora do salário mínimo. Os problemas da proposta foram discutidos por Ludmila Costhek Abílio na referência acima. Por enquanto, a forma de contrato não leva nem isso em consideração.
[4] O filme “Estou me guardando para quando o carnaval chegar”, de Marcelo Gomes (disponível na Netflix), fala sobre o tema de maneira paradigmática.
[5] “O salário por peça nada mais é que uma forma metamorfoseada do salário por tempo, do mesmo modo que o salário por tempo é a forma metamorfoseada do valor ou preço da força de trabalho” (MARX, Karl. O Capital – Livro Primeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.139).
O artigo na primeira parte aponta bem os limites e desafios conhecidos do cooperativismo.
Mais adiante, um trecho que gostei bastante, no qual a autora aponta que nao se deve combater a uberização como um desvio da CLT e como se a CLT fosse boa para os trabalhadores. Concordo.
Porém depois acho que existe um pressuposto equivocado que interfere na discussão subsequente. Não entendi o que a autora quer dizer com “acumulação fictícia”. O pressuposto equivocado é de que essas empresas de aplicativos, como ifood, Uber, Rappi respondem ao mercado financeiro. Estou tomando aqui que a autora quis dizer mercado financeiro que funciona parecido com o mercado acionário, pois teria que pagar juros aos investidores. A Uber nunca teve lucro, e só teve ações na bolsa em 2019. Rappi trabalha no prejuízo também. São empresas com muito capital de risco investido, que não buscam retorno de curto prazo, como no mercado acionário em geral. O que não significa que elas não procurem sempre aumentar a mais-valia, pois é inerente à função do capitalista e é preciso demonstrar ao menos capacidade de explorar bem o trabalho para mostrar a viabilidade aos investidores.
E justamente por se basearem em uma quantidade grande de capital de risco elas podem operar no prejuízo sem problemas, o que já implica por si só uma dificuldade para a concorrência de cooperativas.
Sobre se é salário ou renda, acho que tem que se olhar para as relações de trabalho. Existe organização do trabalho por parte do dono do meio de produção, ele determina tempos, normas etc: é salário, ou muito mai próximo do salário fordista do que da renda da terra. Salário pago por produção, restringindo ao máximo o tempo pago disponível ao patrão, o que sempre foi o sonho dos patrões.
Por fim, minhas considerações sobre o cooperativismo de entregadores por aplicativos:
A ampliação da discussão de cooperativismo de plataforma digital no Brasil aparece como expressão da ascensão-refluxo da luta dos entregadores de aplicativo.
É expressão de limite e “derrota” assim como a criação do PT foi expressão do limite e “derrota” das greves do ABC.
Os limites do cooperativismo dentro do capitalismo já são bem sabidos. Em mercados de serviço em que o valor da marca é determinante e em que empresas possuem capital de risco para trabalharem no prejuízo para sufocar a concorrência, o cooperativismo só tem chance de sobreviver em pequenos nichos ou de forma marginal.
Lá fora se fala mais sensatamente em plataformas públicas, com as privadas impedidas ou reguladas. Mais realístico diante do poder das plataformas privadas. Sem orçamento público no meio não há como competir.
Isadora,
Gostei muito do seu texto, como é habitual. Agora queria tirar uma dúvida. Será que você poderia esclarecer esse trecho?
“Por “forma salário” estou entendendo aqui o preço da força de trabalho, que tinha alguma vinculação de origem com os seus custos de reprodução socialmente determinados – ainda que na América Latina isso nunca tenha acontecido, o mecanismo de baixos salários teve seu papel na implantação capitalista por aqui.”
Por que você afirma que a forma salário nunca tinha acontecido antes na América Latina?
Alan,
Eu quis dizer que na América Latina os salários não necessariamente cobrem a totalidade dos custos de reprodução da força de trabalho. A moradia, por exemplo, é um desses custos não considerados, o que leva à particularidade da urbanização por autoconstrução típica entre nós. Durante os anos 1960 e 1970 muito se escreveu sobre isso: nossa “urbanização de baixos salários” (Chico de Oliveira) ou de “preço da força de trabalho abaixo do seu valor” (Marini) faria com que tais custos fossem transferidos ao capital como “acumulação primitiva”. Ou seja, o capitalismo aqui teria se implantado predominantemente às custas da espoliação dos trabalhadores, e não tanto com ajuda estatal, como na Europa.
Então não é que a forma salário nunca tenha acontecido por aqui, mas que as nossas condicionantes sociais o mantém baixo, abaixo das necessidades mínimas para a reprodução da força de trabalho. Mas a forma salário continua atuante na medida em que se refere a esses custos socialmente estabelecidos – ainda que não os cubra integralmente, os têm como referência. São referências rebaixadas, mas são referências. Minha questão no texto é a completa falta dessas referências na uberização, não apenas pelo baixo valor, mas pela sua falta de vinculação com tais custos. Parece mais uma porcentagem sobre ganhos especulativos no mercado de capitais…
Leo V,
Agradeço o comentário e análise cuidadosa. Você levanta vários pontos, vou comentar alguns.
Quando falei “acumulação fictícia” eu estava me referindo ao contexto, não especifiquei com exatidão a forma de acumulação destas empresas – inclusive porque tenho dificuldade de fazer isso. Venho de um setor – a construção civil – na qual a forma acionária, que você cita, é predominante. Não se trata de acumulação fictícia, neste caso. Não acho que os aplicativos sejam a mesma coisa, justamente porque acho que “existem mais coisas entre o céu e a terra” do que geração de lucros a serem redistribuídos na forma de juros, como na forma acionária. O capital fictício – até onde eu entendo, mas me corrija se discordar – é uma forma específica do capital portador de juros, que envolve ganhos especulativos sobre uma produção que pode nem chegar a existir. Sua vinculação com as CONDICIONANTES da produção – e, portanto, com os possíveis rendimentos do trabalho – é praticamente inexistente, embora ainda dependa da produção para existir. Forma-se algo que é a necessidade do trabalho, porém a sua desmaterialização enquanto atividade concreta – que depende da reprodução da força de trabalho, dos custos de produção… Nesse sentido, me parece que a uberização é a forma de trabalho que responde a essa falta de vínculo do capital fictício – diferente do capital acionário. Neste último, dá para falar dos rendimentos do trabalho como salário. Na uberização, como respondi acima ao Alan, me parece mais uma porcentagem sobre a renda, sem vinculação com as determinações concretas do trabalho imediato – que permanece existindo, daí a perversão e todo o problema.
Achei interessante sua hipótese sobre a discussão de cooperativismo aparecer “como expressão da ascensão-refluxo da luta dos entregadores de aplicativo”. A autogestão, nesse meio, caminha sobre um fio de navalha, pois carrega o empreendedorismo na sua origem. Se ela não conseguir superá-lo, será um refluxo dos grandes – cantado como vitória.
Por fim, tenho sérias dúvidas políticas sobre a solução estatal. Experiência própria com os mutirões autogeridos: embora só com a intervenção estatal tenha sido possível a escala da experiência, ela mesma impôs limites políticos à autogestão, que teve que se adequar a uma universalização contraditória com a prática imediata. Terminamos com o MCMV Entidades… que fez movimentos virarem empreiteiras e gestores de demanda… Enfim, talvez eu seja ainda mais pessimista que você neste ponto…
Olhando ao redor, tudo me leva a crer, assim como o outro Leo, que a discussão sobre cooperativismo surge como expressão do refluxo após a ascensão da luta dos entregadores de aplicativo, e não me parece que seria muito diferente se o debate girasse ao redor de plataformas públicas… Na autogestão ou na gestão pública, a gestão e, com ela, a exploração continuam em jogo. Mas isso pode ser assunto para outra hora, porque não era exatamente o que pretendia discutir.
A segunda parte do artigo levanta algumas hipóteses interessantes sobre a forma (ou a falta dela) do trabalho uberizado. Entendo muito pouco de tudo isso (cheguei a lembrar da análise de José de Souza Martins sobre o funcionamento dos escravos na economia colonial como uma espécie de renda capitalizada do trabalho), mas gostaria de colocar algumas questões.
Embora boa parte delas não tenha lucro — e portanto não distribua dividendos aos investidores —, faz sentido pensar que a mais-valia nessas empresas não assuma exatamente a forma de lucro, e sim a forma de renda. Acho que o próprio Leo V já apontou em algum lugar que o maior patrimônio delas na verdade é a multidão de clientes — uma espécie de monopólio da demanda. Elas cobrariam, assim, sua fatia do trabalho excedente produzido nos restaurantes e pelos entregadores, pelo acesso à demanda de fluxos na cidade, o que não deixa de ser uma espécie de renda pelo uso da cidade (que também é isso: fluxos reais e em potência).
Do lado dos trabalhadores, parece um caminho interessante investigar o descolamento entre preço e valor da força de trabalho. É o trabalho deles que gera aquela renda; mas será que o que eles recebem também é renda? Será que isso que pode aparecer como renda (ou mesmo como lucro do empreendedor) não é uma nova forma aparente do preço pelo qual ele vende sua força de trabalho (ainda que o primeiro esteja descolado do valor da segunda — parece que atua inclusive forçando esse valor para baixo, à medida que se desfaz a profissão de “motoboy” e suas qualificações)?
A ideia é que o entregador (assim como o aplicativo) está cobrando do cliente um pagamento pelo acionamento produtivo dos meios de deslocamento (da moto à rua)? Mas isso não encobre que esse acionamento se dá justamente com trabalho e que ele está sendo pago por esse trabalho? E o entregador que usa gratuitamente a bicicleta do Itaú: não é o banco que deveria receber a renda pelo uso dessa propriedade?
Talvez a renda seja a forma aparente da remuneração dos entregadores, mas ainda parece tratar-se de um pagamento pelo tempo de trabalho, cujo preço flutua quase tanto quanto os preços de ações, obedecendo uma espécie de lógica financeira mesmo. Só que no meio de tudo isso, mesmo que totalmente descolado do preço do trabalho e dos juros dos investidores, há trabalho e mais-valia. No capitalismo, a renda é uma forma assumida pela mais-valia na sua distribuição, não?
Enfim, talvez nenhuma dessas categorias seja muito adequada para pensar a falta de forma do trabalho uberizado. Temo apenas que o trabalho desapareça no meio dessa descrição em que resta apenas a propriedade acionada, na voz passiva. Será que essa forma de renda não representa mais uma camada, ou um novo momento, da mistificação da exploração que já ocorre na “forma salário”? Estamos falando em uma transformação da “forma salário”?
De resto, é muito importante a questão levantada sobre a necessidade de vincular a remuneração aos custos — isso teria a ver com pressionar contra aquele descolamento entre o preço flutuante e valor real da força de trabalho e combater essa espécie de “forma renda” do salário.
Leo C,
Realmente eu posso estar me apegando a uma forma aparente e comprando a ilusão do empreendedorismo, achando que não tem salário envolvido numa relação evidente de trabalho controlado (como colocou o Leo V). Mais um fator corrobora o seu argumento: o salário não são os custos objetivos de reprodução da força de trabalho, mas sim custos socialmente e historicamente determinados. Ou seja, também são suscetíveis à concorrência, ao rebaixamento geral devido à autopromoção de elementos essenciais à vida, à formação de monopólios etc. Podem, portanto, não corresponder ao custo real de reprodução da força de trabalho, como eu respondi ao Alan. E, então, de onde viria o milagre? A “viração” é parte do milagre latino americano, mas, o que quero frisar é que ela não se resume aos bicos: não podemos esquecer as rendas somadas a eles, que muitas vezes os possibilitam. A laje alugada, a informação privilegiada, o domínio de um território, o carrinho de pipoca, o aluguel da moto, o aluguel da arma.
Quero chamar a atenção que pelo menos PARTE destes rendimentos dos trabalhadores uberizados é renda sobre a propriedade dos instrumentos de trabalho. Por que isso é relevante? O empreendedorismo não é uma ilusão (uma fantasmagoria): ele se apoia em elementos bem concretos instalados nas relações de produção. As lutas precisam jogar luz nesses elementos, criticá-los e invertê-los. Se o foco for apenas o aumento da possível parcela “salarial” dos rendimentos, as lutas não conseguem atingir o cerne do empreendedorismo: perdem a vinculação com as condicionantes concretas da produção, entre elas, o fato de que os entregadores são – de fato! – donos dos instrumentos de trabalho. São proprietários sem poder de barganha, pois não tem acesso autônomo ao mercado dominado pelos aplicativos. Como trabalhadores rurais com suas foices, tendo que vender seus serviços ao latifundiário local. Mas e se as foices, as motos e as armas estivessem sob domínio coletivizado dos trabalhadores? Talvez esse poder de barganha fosse diferente…
Esse ponto é importante também em outro sentido, que você também levanta. A força de trabalho existe, mas só é ativada na medida em que dá vida ao “trabalho morto”: precisa estar embutida na parte constante do capital, se misturando a ele como coisa sua, como continuidade do seu corpo – a moto, a rua. A mistura é tão forte que o trabalho perde sua dimensão humana, parecendo máquina que não precisa voltar para casa. Não tem nem custos de reprodução, só desgaste! Ludmila chamou de “redução do trabalhador à força de trabalho”. Esse motor – a perna do moleque na bicicleta – é destituído de controle sobre o próprio trabalho, dos seus saberes e habilidades. Como você disse, uma espécie de “desprofissionalização”, uma enorme simplificação. Isso também me parece um indício de que essa remuneração é composta de elementos diversos, que disputam entre si predominância, ao menos.
Talvez, a melhor questão não seja se é ou não salário. Mas vale perguntar: qual o limite entre a remuneração de trabalho vivo e a reposição de trabalho morto? Ou ainda quem tem mais poder, a disputa pelos custos de reprodução, ou a captação de renda de propriedade… da força de trabalho (já como coisa)? O limite está na capacidade do ser humano de se adaptar à condição de máquina. De sair da condição de empreendedor e se ver como trabalhador, que só pode sair desse lugar de maneira coletiva. Recusando o individualismo da “minha motoca, minhas regras”, que também é, em outra medida, “minha rua, minhas regras”. Daí a importância das lutas…
Minha provocação foi no sentido de olhar para determinantes para além do trabalho abstrato, entendendo a especificidade de uma condição de trabalho – trabalho, sim!! – ligada a rendas, da moto à rua, do trabalho empreendedor à cidade e suas conexões. Fazendo o paralelo com a luta pela moradia: uma das grandes derrotas da autogestão com o MCMV Entidades foi a compra dos terrenos se darem no mercado, o que já determinava parte das condições da mercadoria final. Por melhor que viesse a ser o processo, produzia-se uma anticidade pelas mãos dos trabalhadores/moradores. Olhar apenas para as condições de trabalho abstrato, no caso da uberização ligada à mobilidade, não me parece que vá avançar.
Só pontuando uma coisa. Falou-se em bicicleta gratuita do Itaú, mas os entregadores que usam a bicicleta do Itaú alugam ela também. Mesmo tendo que pagar, consideram mais vantajoso usar a bicicleta do Itaú do que comprar uma própria, porque não precisam arcar com gastos de manutenção ou risco de roubo. É bom poder largá-la em qualquer lugar; por outro lado, limita as áreas de retirada (você tem que esperar no bicicletário).
Já no sistema de OL do iFood, é frequente que sejam os intermediários (líderes ou empresas) a possuírem uma frota de patinetes ou bicicletas e cobrarem uma quantia fixa semanal pelo uso desses veículos pelos seus entregadores.
Um PS interessante é lembrar que bicicleta só se tornou “viável” como um veículo para trabalho numa metrópole São Paulo graças a um investimento em infraestrutura empreendido por uma gestão Haddad que tentava recuperar sua imagem no campo da mobilidade urbana pós-2013. Obras viárias, campanhas, isenções, parcerias com bancos, etc. pavimentaram as ciclofaixas pelas quais fluem hoje as encomendas dos aplicativos.
Leonardo Cordeiro,
A multidão de usuários (consumidores finais e restaurantes) como um dos ativos principais dessas empresas de entrega por aplicativos.
Há uma outra perspectiva de encarar esse fenômeno, não incompatível com essa anterior, como tem autor que apresenta: uma economia de escala a partir da demanda, e não da produção. Tem sido chamado de ‘efeito em rede’ (network effect) nessa economia das plataformas, que na verdade é uma economia da multidão. O efeito em rede é a produção, construção, captura, a palavra que se queira dar, de uma multidão.
Continuo achando que para o que interessa à luta dos trabalhadores, que é a luta pelo controle do processo produtivo, faz sentido o conceito de salário e não de renda. Num arrendamento o dono pode ficar com um excedente, mas não apita sobre o processo de trabalho. Não é o caso com esses aplicativos. Trata-se de empresas como outras quaisquer, em cujo cerne do negócio está a organização do trabalho de modo a aumentar a extraçao de mais-valia, como numa empresa capitalista qualquer. Muda a forma de organização do trabalho em relação a m fábrica, mas o controle e gestão do trabalho estão presentes. Não há portanto muito sentido em se falar de ficar com um excedente como se os trabalhadores fossem arrendatários.
ABRACADABRA
Se, por excedente, designamos o sobretrabalho ou mais-trabalho (eis a fonte da qual jorra a mais-valia!), não tem sentido dizer que o trabalhador ficou com o excedente. Isso equivaleria a dizer que a exploração do trabalho pelo capital foi abolida, juntamente com a mais desigual das trocas: a da vida pela sobrevivência.
As polêmicas são importantes não como espetáculo, ou como jogos de competição, mas como forma de construirmos coletivamente um entendimento mais aprofundado sobre o mundo e as relações humanas. Agradeço a todos os companheiros que colocaram aqui questões para o debate, e de outros que me mandaram mensagens pessoais.
Uma coisa que acho importante ressaltar é que estas questões surgiram da necessidade de pensarmos as lutas, não ficarmos elocubrando sobre o sexo dos deuses. Não acho que seja apenas uma questão de nomenclatura de conceitos abstratos, mas de pensarmos as condicionantes das relações de trabalho e reprodução das classes populares num momento histórico de grandes transformações.
Assim, queria dizer que há aqui algumas imprecisões conceituais (inclusive de minha parte, que não quis aprofundar algumas questões para deixar o texto fluido) e também de observação das relações concretas. Renda não se confunde com juros (ver a Fórmula Trinitária em Marx). E trabalho continua sendo o único que gera mais-valia. A questão é entender a forma específica do empreendedorismo dentro disso, pois a mistificação tem base concreta e, ignora – la não ajuda nas lutas que, se assim o fizerem, não terão base social e histórica e perecerão.
Desta perspectiva, avanço na minha hipótese. Esta forma de rendimento do trabalho ligada à uberização talvez se pareça mais com o aluguel. Aluguel não se confunde com renda. O aluguel, para Marx, é uma combinação de três partes: 1. A renda da terra; 2. Os juros sobre o capital adiantado nas construções e/ou instalações e/ou melhoramentos e investimentos na terra; e 3. Depreciação. Se estou observando corretamente essa nova forma de relação de trabalho, me parece que se trata de um aluguel da força de trabalho — inclusive por conta de sua natureza intermitente, “Just in time”. A parte da renda se refereria ao uso da cidade, o meio (no caso do setor da mobilidade); a parte dos juros se refereria ao uso dos instrumentos de trabalho alheio (as motos e bicicletas); e a parte da depreciação poderia ser algo como o salário no sentido que cobre a reprodução (ou parte dela). A uberização não se trataria, portanto, de compra e venda da força de trabalho, mas de aluguel da mesma.
Quem acompanha mais de perto esse setor sabe que os trabalhadores passam por enorme percalço para poderem entrar nele. Precisam investir não apenas na moto ou na bicicleta, mas também virarem MEI (Micro empreendedor individual). Se não tiverem tais instrumentos, seus rendimentos não serão os mesmos que outros, pois terão que pagar tais custos extras (o aluguel da bicicleta ou da moto de outro). Dependendo da cidade ou da região da cidade que se faz a entrega, o serviço é mais ou menos rápido. E então podemos, nos dois casos, inclusive falar de rendimentos diferenciais.
Vejam que a coisa é mais complexa do que a simples exploração da mão de obra na acumulação industrial.
Obs.: Não vou me estender por aqui no assunto, mas vale pontuar que a Renda da Terra, em Marx, é um enorme quebra-pernas dos Ricardianos na medida que insere a mais-valia e, portanto, o trabalho e a lei do valor no centro das relações rentistas. Quando coloco aqui essas hipóteses, portanto, estou olhando sim para o trabalho, não o deixando de lado. Muito pelo contrário. Mais do que isso, estou relacionando as relações de trabalho com o urbano, como deixo claro em todas as minhas colunas. Acho fundamental, entre outras coisas, para afastar as perspectivas pós-modernas que reificam a cidade “per se” e, sem surpresa nenhuma, exaltam o empreendedorismo. Podemos observar essa tendência de maneira acentuada principalmente nas “novas esquerdas”, que não olham para a negatividade das relações de trabalho no capitalismo.
Isadora,
Vou discordar. Não é mais complexo que a exploração industrial.
Desde que o capitalismo é capitalismo os capitalistas buscam conseguir a maior quantidade de trabalho por unidade de tempo pago ao trabalhador. É buscando isso, fundamentalmente – numa dialética com a luta dos trabalhadores – que eles refazem, inventam, modificam a organização do trabalho.
Trabalhadores que têm que levar seu próprio instrumento de trabalho não é novidade, principalmente no setor de serviços. Esses entregadores de aplicativos não são obrigados a ser MEI. Mas isso não importa, temos muitos trabalhadores que são obrigados a serem PJ, para exercer a mesma função na empresa que exerciam antes. Isso não altera a relação de exploração.
Os trabalhadores em home office terão que arcar com seus instrumentos de trabalho. Externalização dos custos da empresa para os trabalhadores, apenas isso. Algo que será incorporado no custo de reprodução da força de trabalho.
A tecnologia e um contexto histórico possibilitou essa forma de organização do trabalho via aplicativos, em que o patrão paga o trabalhador por tarefa. O patrão organiza o trabalho, distribui as tarefas, ranqueia, coloca as regras e extrai a maior quantidade de trabalho possível na menor unidade de tempo paga. Isso é capitalismo como sempre foi: uma empresa organizando uma força de trabalho e a explorando. Nada novo no horizonte a esse respeito. Tanto que esses trabalhadores lutam contra essas empresas como o operário luta contra o patrão, e com demandas muito parecidas.
Como alguém vai olhar para um entregador OL do ifood, que tem que cumprir horário e tem um supervisor (chefe) humano e não ver ali a mesma exploração patrão-empregado de sempre? A diferença é que, no Brasil, esse trabalhador não tem direito trabalhista e nem direito a salário, apesar da subordinação igual a de um empregado industrial. A novidade, no Brasil, é o nível de poder que os capitalistas conseguiram, de excluir na prática o salário fixo como direito trabalhista até mesmo quando obriga o funcionário a cumprir horário.